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HÁ 100 ANOS DA REVOLUÇÃO RUSSA | O romance da revolução

No ano que completa 100 anos da Revolução Russa conheça o romance “O Que Fazer?” de Nikolai Tchernichevski, uma das obras literárias que mais influenciou diretamente a sociedade russa anos antes da revolução.

Felipe GuarnieriDiretor do Sindicato dos Metroviarios de SP

terça-feira 3 de janeiro de 2017 | Edição do dia

O Que Fazer?

No momento em que nos deparamos com esse título muitos dirão que se trata da fantástica obra de Lenin contra os economicistas russos, para combater as aspirações reformistas dos intelectuais social democratas, as quais resignava a classe operária a luta econômica, separando- a da luta pelo poder, destinando o papel do Partido apenas a galgar avanços graduais, diante o regime czarista que predominava na Rússia. Lênin marcou a geração de revolucionários bolcheviques e de todo o mundo, e “O que Fazer?” se mantém atual no debate dentro do marxismo.

Entretanto, poucos conhecem da onde vem a inspiração de Lênin. “O Que fazer?” é nome do romance de Nikolai Gavrilovich Tchernichevski, escrito e terminado entre os anos de 1862 e 1863, na prisão de São Petersburgo. A literatura russa relativamente é bem difundida no Brasil. Nomes como Gogol (crítico atroz do czarismo), Tolstoi e Dostoievsky (mais ligados a defesa de setores aristocráticos, sendo que esse último apoiava o regime czarista), estampam artigos acadêmicos e suas fantásticas obras são facilmente encontradas em livrarias, até mesmo a preços populares. Não é o caso de Tchernichevski, onde os mais interessados também desconhecem esse nome que foi quem melhor narrou a transformação de valores que predominava na Rússia naquela época.

Um romance sem surpresas sempre alertado ao “leitor curioso” no decorrer do livro. Alguns podem afirmar que Tchernichevski não tinha o mesmo nível literário dos seus contemporâneos, porem também é verdade que nenhum deles teve que driblar a censura da inteligência czarista como ele e conseguiu impactar a sociedade russa de maneira tão intensa. A simplicidade foi a forma de colocar a ideia da revolução na sua obra e gerar um fervor para influenciar uma grande camada de intelectuais a abandonar o projeto reformista e aderir o caminho revolucionário. Conquistou corações de milhares de jovens, a mesma geração que, posteriormente, estaria de ouvidos e mentes abertas para compreender o que Lenin estava combatendo em suas obras.

Sobre o autor

Só a genialidade de Tchernichevski permitia, já então na própria época da realização das reformas camponesas (quando estas ainda não estavam suficientemente esclarecidas nem sequer no Ocidente), compreender com tanta clareza o caráter burguês fundamental destas reformas; para compreender que já naquela época reinavam e governavam na "sociedade" russa e no "Estado" russo classes sociais diretamente inimigas dos trabalhadores e que inevitavelmente sentenciavam a ruína e expropriação dos camponeses.”- Lenin em “Quem são os amigos do Povo?”

Tchernichevski não foi somente um romancista. A literatura foi um dos seus recursos para manter a difusão das suas ideias em situações extremamente severas como veremos. Nascido em 1828 na cidade de Saratov, ingressou na Universidade de São Petersburgo, onde teve a base da sua formação intelectual, ateu, filosofo materialista e influenciado pelas ideias do socialismo utópico. Militante, tornou-se um dos líderes do Movimento Democrático na década de 60. E, enquanto, muitos intelectuais viam mais avanços do que contradições nas propostas de abertura capitalista do Czar Alexandre II, após a Guerra da Crimeia (1853-1856), como a abolição da escravidão em 1861, Tchernichevski denunciou o caráter parcial das reformas no marco da manutenção do reacionário regime da monarquia absolutista russa.

Nas palavras de Marx, Tchernichevski, foi o “Grande sábio e critico russo”, porém contraditoriamente o nosso autor não teve um contato mais aprofundado com o materialismo dialético e o legado marxista. Foi influenciado e partidário do materialismo do filosofo alemão Ludwig Feuerbach. Com essas ideias, após sua graduação, foi editor e transformou a Revista Sovremennik (“O contemporâneo”) tornando- a mais de esquerda e consolidando sua transição completa para o projeto revolucionário.

Em 1862 foi preso político em São Petersburgo, onde ficou por 2 anos aguardando julgamento. E justamente nessa época que Tchernicheski encontra na literatura a maneira de ultrapassar a censura, já que havia sido proibido de elaborar ensaios filosóficos e artigos. Solicitou a permissão ao governo czarista para escrever um romance, que lhe foi concedido, e assim manteve a possibilidade de continuar exercendo sua atividade política, ainda que no campo literário. A simplicidade referida na obra, transforma-se nesse aspecto em um ato magistral, pois o quanto mais inócua torna-se a história de uma jovem mulher “Vera Pavlovna” em busca da felicidade, mais o autor engana a polícia czarista, conseguindo em 1863 a publicação da sua obra.

Aquilo que o czarismo quis evitar, ou seja a continuidade da militância política de Tchernichevsy, não aconteceu. “O que fazer?” agitou a sociedade russa, contagiou a juventude e criou o caldo cultural necessário o qual se desenvolveu a revolução anos depois. Infelizmente, o autor não pode presenciar o impacto do seu livro. No seu julgamento foi condenado aos trabalhos forçados e ao exilio na Sibéria, onde viveu praticamente o restante da sua vida, até 1889, quando foi liberado para voltar a sua cidade natal. Porém, com a saúde já muito debilitada, morreu no mesmo ano.

A emancipação das mulheres como temática principal

Quase todos os caminhos da vida civil estão formalmente fechados para nós mulheres. Para nós estão fechados na prática muitos, quase todos, mesmo daqueles caminhos de atividade social que não estão proibidos a nós por obstáculos formais. De todas as esferas da vida sobrou para nós nos apertarmos na esfera da vida familiar: sermos membro da família e só isso.” Capitulo IV- Segundo Casamento.

Não se pode confundir a trama simples com a ausência de temas profundos nos valores da sociedade russa. Assim como Tchernichevski transmite a ideia revolucionária, sem escrever ao menos uma vez a palavra “revolução” nas mais de 400 páginas, a história da trajetória de vida de Vera Pavlovna longe de ser algo meramente superficial, carrega consigo uma imensidão de fatos, que mostravam como nas ruínas do czarismo estava nascendo o embrião de um novo tipo de sociedade. Um mundo “realmente bom”.

Trata-se da história de um triangulo amoroso, após a jovem Vera Pavlovna se livrar do casamento forçado a qual sua mãe tentara a empurrar, com o filho da patroa do seu marido, como meio de alavancar sua vida social. Verinha encontra em Lopukhov (professor do seu irmão mais novo) o caminho para a sua libertação. Consegue sair do julgo da opressão familiar e vai morar com ele, entretanto se apaixona por Kirsanov, colega de medicina e melhor amigo de seu libertador. Aparentemente, o que o leitor imagina que a história se desenvolveria por uma rede de traições, ciúmes e disputas, não acontece.

Não à toa, Tchernichevski, coloca uma mulher como personagem principal de seu romance. Vera simboliza a opressão a qual as mulheres russas estavam submetidas na Rússia czarista. O casamento arranjado e obrigatório, a vida doméstica, impossibilidade de exercer diversas funções, combinada a exploração do trabalho, sempre menos ou nada valorizadas em relação aos homens. Fica evidente no romance que a emancipação das mulheres somente se dará com a construção de um novo tipo de sociedade. Uma sociedade que logicamente não é desvendada pelo autor, por motivos óbvios, mas que estavam descritas nos “livros de Verinha”, livros que passou a conhecer com as relações sociais que desenvolve.

A busca da felicidade, que poderia ser um clichê de qualquer romance comum, transcende a realização da vida amorosa de Vera. Não significa que a personagem não queira viver suas paixões, porém seus objetivos são outros. Quer um mundo justo, um mundo onde mulheres “possam também ser médicas”, ou assumir qualquer tipo de atividade. Para isso sabe que não precisa se enfrentar apenas com leis, mas sim com costumes e a moral de uma sociedade. A voz de Vera no livro é um grito de libertação não só das mulheres, mas de toda uma sociedade, que não quer mais viver da forma como viviam antes.

Um novo mundo é possível

Mas ele é obediente e ela aguenta, aguenta até que acabe se acostumando e se transformando em uma boa dama normal...É assim que era antes com excelentes moças e rapazes: todos se tornavam boas pessoas vivendo nessa vida apenas para passar o tempo...Assim, ou eles ficavam doentes ou se acostumavam com a mediocridade...Mas, hoje em dia, outras alternativas ocorrem: pessoas honestas cada vez mais começaram a se encontrar. Esse desenvolvimento é inevitável já que o número de pessoas honestas cresce a cada ano. Com o tempo essa opção vai se tornar a mais comum. Com mais tempo ainda, vai se tornar a única opção porque todas as pessoas serão honestas. Então o mundo ficará realmente bom.”- Inicio do capitulo 2 (“Primeiro Amor e Casamento legal”)

A luta de classes aparece no “O que Fazer?” através do confronto direto dos valores sociais. No questionamento que a vida pode ser organizada de outra maneira. Se na obra, o proletariado como classe social e política não aparece tomando o poder, a transformação radical da sociedade aparece explicitamente na forma a qual os personagens enxergam o mundo. Um exemplo disso é como Vera organiza o seu negócio. Contrariando aquilo que a sociedade impõe para a mulher, em ser dona de casa ou uma governanta, Vera monta o seu próprio ateliê. Se fosse qualquer romance, tudo poderia ser encaixado facilmente, uma mulher com uma vida “independente”, feliz com seu amor, sem precisar entrar nos acordos e atalhos que sua mãe arranjava para ela.

Mas não se trata de qualquer romance, pois o Atelie de Vera se transforma numa pequena fábrica controlada pelas trabalhadoras diretamente. Tudo isso de maneira tão natural, que a surpresa seria se não fosse dessa forma. A renda do ateliê é dividida igualmente entre as funcionárias, as mesmas que tomam as principais decisões: “No primeiro mês de administração, as moças decidiram que Vera Pavlona não deveria trabalhar sem remuneração. Quando lhe comunicaram isso, ela concordou que deveria ser assim. Queriam deixar-lhe uma terça parte dos lucros. Ela guardou essa quantia enquanto convencia as moças que isso ia contra o espirito do novo sistema. Elas por muito tempo não conseguiam entender isso, mas depois concordaram que Vera Pavlona recusava participação especial nos lucros não por orgulho, mas porque deveria ser assim no novo sistema.

Como falamos, Tchernichevski não possuiu um contato direto com o marxismo, que foi só começar a ser introduzido na Rússia em 1883 por Plekhanov. Vale notar nessa passagem da “sociedade tecelã” criada por Vera, a influência que o autor recebeu do socialista utópico Robert Owen, a partir da ideia de sociedades de trabalho comunal como “ilhas autônomas” por dentro da indústria capitalista. O marxismo vai criticar mais tarde na Rússia essa visão utópica, mas não deixa de ser um grande fermento para que se desenvolva a ideia de gestão operária da produção.

Os livros de Verinha” ganham assim materialidade, o espectro do comunismo ronda a rede de relações de novo tipo que se estabelece e põe em cheque os pilares do czarismo.

Se é verdade que Lênin, Trotsky e os bolcheviques russos precisaram durante os anos que antecederam a revolução travar uma luta sistemática para que o movimento operário adotasse a estratégia revolucionária, e não reformista. O romance de Tchernichevski também cumpriu esse objetivo, talvez em outro campo, assumiu na forma artística os traços para pincelar uma nova sociedade, sem classes, sem opressão e com novos costumes e valores, que permitissem a realização plena das pessoas nas suas mais diversas atribuições. Uma contribuição que pode não ser determinante, como a necessidade apontada pelo “O que Fazer?” de Lenin, mas que sem dúvida abriu o caminho para a principal revolução que mudou a história do século XX.




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