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RACISMO | O relato de uma universitária negra do Complexo do Lins que ouviu “você não tem cara de médica” antes de ingressar na Uerj

sexta-feira 15 de julho de 2016 | Edição do dia

Foto: reprodução/internet

"Por isso, principalmente nos espaços acadêmicos, eu faço questão de afirmar que sou do Complexo do Lins. Esse lugar faz parte da minha identidade”, disse a estudante.

Nos últimos dias, o relato de uma estudante negra de medicina da Uerj (Universidade Estadual do Rio de Janeiro) repercutiu no facebook. A jovem escreveu sobre as condições sociais em contrates com o ambiente acadêmico. A narrativa foi publicada na página Boca de Favela.

No texto, a aluna Mirna Moreira, de 22 anos, escreveu também sobre preconceito enfrentado antes de ela ingressar na universidade, onde cursa o quarto período após passar pelo sistema de cotas. "Lembro que quando me perguntavam o que eu queria cursar e eu falava medicina, tinha gente que virava e falava: ’ah, mas você quer isso mesmo? Você não tem cara de médica", escreveu a estudante.

Residente do Complexo do Lins, na zona norte do Rio, Mirna Moreira afirmou que seu "maior acerto" foi ter assumido a estética de mulher negra, nos cabelos soltos. "Antes de entrar nesse espaço da universidade, eu entendi que é muito importante estar ali porque existe a questão da representatividade, que se estende para fora da academia também. Quando eu visto meu jaleco branco e subo o Morro dos Macacos representando a instituição Uerj, como fiz em uma ação sobre sexualidade na adolescência numa escola pública, e as meninas negras dessa escola pedem para tirar fotos comigo, elogiam meu cabelo crespo, e de alguma forma me veem como referência, eu só tenho mais certeza disso", falou a universitária.

"Por isso, principalmente nos espaços acadêmicos, eu faço questão de afirmar que sou do Complexo do Lins. Esse lugar faz parte da minha identidade. Sei da onde eu vim, quem me ajudou a chegar até aqui, e não foi nenhum médico de formação, foi minha mãe que trabalhou como diarista por muitos anos, meu pai que já trabalhou como pedreiro, e que sempre priorizaram meus estudos. Eu sei quem são os pretos que construíram a base para que hoje eu esteja aqui hoje", escreveu.

Mirna Moreira quer "devolver à sociedade" com projetos sociais e médica do SUS

A estudante contou que já passou por situações nas quais ela vê um viés racista. Em 2015, ainda no primeiro semestre, ocorreu um espanto de alguns “colegas” quando ela tirou nota máxima em uma prova de anatomia prática. "Apenas duas alunas gabaritaram: eu e uma colega, branca. Houve uma surpresa muito grande da sala somente em relação a mim, e com perguntas do tipo: ’Você escondeu o jogo?’, já que era o primeiro mês, ainda, de aula. Mas a outra aluna passou pelo mesmo processo de seleção e não houve esse tipo de questionamento; não tenho dúvida de que foi racismo", descreveu.

Mirna estudou o ensino fundamental em escola pública, mas prosseguiu as aprendizagens em colégio particular graças ao apoio da madrinha, que vive nos Estados Unidos. "Já questionaram minha cota, já alegaram que eu tenho um tablet... como se eu não tivesse o direito de ter, me esforçando para isso", fala a jovem. A estudante de medicina milita na causa negra também em um coletivo da universidade. É ali é o espaço onde várias outras narrativas parecidas ao que ela diz ter ouvido são apresentadas, mas de outros cursos. "Isso de ’não ter cara’ de uma profissão’ é quase unânime entre os negros da faculdade que estão nos cursos considerados tradicionais".

Futuramente, a estudante de medicina quer "devolver à sociedade" o que ela chama de investimento, seja por projetos sociais ou trabalhando no SUS (Sistema Único de Saúde). "Eu tenho noção de que o meu estudo sai do bolso da sociedade", justificou. Na atualidade, a mãe de Mirna é telefonista, e o pai, bombeiro. Mirna Moreira integra um grupo de dez negros em uma classe de 104 alunos na medicina.

Relato completo da estudante negra de medicina Mirna Moreira

"Quando você mora na favela, é mulher preta, e você quer chegar num determinado lugar, você precisa planejar, porque se não você perde muito tempo batendo cabeça, e a gente não tem nem tempo, nem dinheiro, para ficar na experimentação.
Lembro que quando me perguntavam o que eu queria cursar e eu falava medicina, tinha gente que virava e falava: ’ah, mas você quer isso mesmo? Você não tem cara de médica’. Uma vez numa aula no pré-vestibular, um professor entrou em algum tema de redação, que eu não lembro qual foi, e falou: ’olha pro lado e me diz quantos negros tem nessa sala. Foi aquele momento que todos os olhares da sala se viraram pra mim.’

O meu maior acerto foi ter assumido minha estética enquanto mulher negra antes de entrar nesse espaço da universidade, eu entendi que é muito importante estar ali porque existe a questão da representatividade, que se estende para fora da academia também. Quando eu visto meu jaleco branco e subo o Morro dos Macacos representando a instituição UERJ, como fiz em uma ação sobre sexualidade na adolescência numa escola pública, e as meninas negras dessa escola pedem para tirar fotos comigo, elogiam meu cabelo crespo, e de alguma forma me veem como referência, eu só tenho mais certeza disso.

No dia dessa ação na escola eu voltei no mesmo ônibus que uma aluna, e quando eu desci no mesmo ponto que ela aqui no Complexo, ela perguntou: o que você tá fazendo aqui?

Ela não esperava que eu descesse aqui na favela. Eu chorei muito. Isso me marcou demais, até porque eu nunca tive uma representação física e próxima que eu pudesse me espelhar nesse campo profissional, essa mulher, negra, médica. Sabe?
Por isso, principalmente nos espaços acadêmicos, eu faço questão de afirmar que sou do Complexo do Lins. Esse lugar faz parte da minha identidade. Sei da onde eu vim, quem me ajudou a chegar até aqui, e não foi nenhum médico de formação, foi minha mãe que trabalhou como diarista por muitos anos, meu pai que já trabalhou como pedreiro, e que sempre priorizaram meus estudos. Eu sei quem são os pretos que construíram a base pra que hoje eu esteja aqui hoje.”

Aumentou o número de jovens negros e pardos nas universidades

Segundo os dados da SIS 2015 (Síntese de Indicadores Sociais), pesquisa produzida pelo IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística), divulgada em dezembro passado, revelaram que, nos últimos 10 anos, foi constatado um crescimento na proporção de universitários na faixa etária de 18 a 24 anos - de 32,9%, em 2004, para 58,5%, em 2014 -, com ressalto para o recorte por cor ou raça, de acordo com as normas de classificação do instituto.

Do total de estudantes pretos ou pardos de 18 a 24 anos, 45,5% estavam na universidade no ano passado. Há dez anos, essa proporção era de 16,7%. Entre os brancos, também houve aumento —de 47,2%, em 2004, para 71,4%, em 2014.
No ano passado, outra pesquisa do IBGE revelou que os negros representavam apenas 17,4% da parcela mais rica do país, em 2014 – apesar de a população que se identifica como preta ou parda ter crescido entre a parcela 1% mais rica da população brasileira, cuja renda média é de R$ 11,6 mil por habitante. De acordo com o IBGE, os negros (pretos e pardos) eram a maioria da população brasileira em 2014, representando 53,6% dos cidadãos. Os brasileiros que se declaravam brancos eram 45,5%.




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