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REALISMO SOCIALISTA | O realismo socialista revisitado – parte IV (a “ortodoxia inatingível” [1934])

O braço direito de Stálin, Andrei Jdanov, afirmou, em seu discurso para o Congresso dos escritores soviéticos (o mesmo que promulgou o realismo socialista), que o escritor era um “engenheiro das almas”. Tal definição, realizada previamente por Stálin, foi reiterada em diversas outras intervenções no Congresso.

quarta-feira 27 de maio de 2015 | 00:00

O braço direito de Stálin, Andrei Jdanov, afirmou, em seu discurso para o Congresso dos escritores soviéticos (o mesmo que promulgou o realismo socialista), que o escritor era um “engenheiro das almas”. Tal definição, realizada previamente por Stálin, foi reiterada em diversas outras intervenções no Congresso.

Jdanov apontava duas condições para que o escritor pudesse construir as “almas soviéticas”: em primeiro lugar, ele deveria estar imbuído de um “elevado espírito comunista”; em segundo lugar, deveria desenvolver um alto nível de maestria técnico-linguística. O “espírito comunista” correspondia, como era subjacente ao discurso, à adoção da linha partidária oficial e à mobilização dos signos forjados durante a construção do regime bonapartista, tais como a heroicização da força de trabalho e dos líderes bolcheviques, bem como das forças produtivas (ver o segundo artigo desta série). O que seria, no entanto, o alto nível técnico-linguístico ou, melhor, quais obras literárias tomar como o parâmetro deste “alto nível”? Jdanov não respondia tal questão.

Ele afirmava, entretanto, que, a partir destas duas condições, o escritor estaria apto a desenvolver o “realismo socialista” como o estilo oficial da URSS. O que seria, então, tal realismo socialista? Jdanov afirmou:

Em primeiro lugar, [ser um engenheiro das almas] significa conhecer a vida a ponto de descrevê-la verdadeiramente nas obras de arte. Descrevê-la, no entanto, não de maneira escolástica e morta, não apenas como “realidade objetiva”; mas descrever a realidade em seus desenvolvimentos revolucionários. Conjugada à veracidade e concretude histórica do retrato artístico deve-se encontrar o esforço didático de modelar ideologicamente os trabalhadores no espírito do socialismo. Tal método nas belas letras e na crítica literária é o que chamamos do método do realismo socialista.

O realismo socialista era, assim, definido como um método que articulasse a representação da “realidade em seus desenvolvimentos revolucionários” com a necessidade da instrução do proletariado. Tal método deveria promover, portanto, uma reflexão histórica que fosse facilmente compreensível para as amplas massas camponesas e operárias. Tal definição era, com efeito, bastante vaga, e era a única realizada no discurso.

Maxim Gorki, em seu discurso no Congresso, definia tão vagamente quanto Jdanov o realismo socialista:

Uma das principais tarefas da literatura é desenvolver a autoconsciência do proletariado, nutrir o seu amor pelo lar que ele criou e defender este lar contra os ataques.

Em outros discursos realizados no Congresso , também, o realismo socialista não era definido como uma série de procedimentos estéticos rigorosos a serem adotados pelos escritores, mas como um método impreciso, capaz de reproduzir a linha soviética oficial e atuar sobre o psiquismo das massas.

A “plasticidade” destes discursos aparentava funcionar politicamente como um organizador dos dispositivos de censura: justamente por não estabelecer com clareza os pressupostos da arte “realista” soviética, eles permitiam que tais pressupostos fossem reelaborados continuamente pelo Partido e mobilizados por ele para justificar as censuras efetuadas.

Aqui, o caso do compositor Dmitri Shostakovich (1906-1975) é emblemático: após dois anos de boas críticas quanto à ópera “Lady Macbeth do distrito de Mtzensky” (1935), bastou que Stalin e Viatcheslav Molotov (1890-1986) assistissem a obra para que todos os dispositivos discursivos oficiais anteriormente utilizados para qualificá-la fossem transformados no seu reverso. A ópera, então, que era “proletária” e “revolucionária”, passou a ser taxada de “pequeno-burguesa” e “formalista”.

Tal processo de inflexão na recepção crítica, no caso, coincidia com a radicalização das políticas anti-feministas promovidas pelo governo, como a proibição da pornografia e do aborto, em 1935. Tais políticas foram claramente criticadas por Shostakovich na ópera e os frutos desta crítica efetuada pelo compositor foram uma implacável perseguição política.

As resoluções do Congresso, tampouco, determinavam procedimentos estéticos ou práticas artísticas específicas; elas previam, no entanto, a criação da União dos Escritores Soviéticos e afirmavam o papel educativo desta na formação dos escritores. Constituía-se, assim, uma espécie de rede de delação e perseguição.

Assim, talvez a promulgação do realismo socialista em 1934 possa ser interpretada não apenas como a fixação de normas estéticas e de conduta, ainda que efetivamente também o fossem , mas, primeiramente, como a construção de um corpo discursivo flexível que pudesse justificar, reiteradamente, as políticas de censura soviéticas. Em termos lacanianos, tal medida tomada pelo governo equivaleria à construção social de um novo grande Outro, ao qual os artistas deveriam ininterruptamente prestar contas e com o qual estariam sempre em débito.

A mitologia stalinista, deste modo, funcionaria fundamentalmente a partir de uma relação neurótica estabelecida com a estrutura simbólica.

Não seria, por exemplo, a seguinte afirmação presente no discurso de Gorki a formulação exata de tal relação neurótica preconizada pela burocracia estatal? O escritor soviético disse, conforme a transcrição de sua intervenção:

A liderança partidária deve, em todos os seus aspectos, ser uma força de autoridade moral [morally authoritative force]. Tal força deve imbuir os trabalhadores literatos com a consciência das suas responsabilidades coletivas por tudo o que acontece em seu meio.

A “força de autoridade moral” do Partido, no entanto, impunha-se no Congresso dos Escritores como uma forma sem conteúdo, ou seja, impunha-se muito mais como um chamado vago para a responsabilidade coletiva dos escritores do que como um dispositivo de interdição e padronização das obras.

Ela seria, ao que parece, uma espécie de forma capaz de ser preenchida por múltiplos e contraditórios conteúdos. Tal aspecto salta aos olhos nas análises das obras soviéticas pós-Congresso: ainda que a maioria delas, ao que parece, recorra a procedimentos tradicionais (romance e pintura a óleo), boa parte (inclusive as propagandas oficiais) apresentam uma espécie de ecletismo quanto ao uso dos materiais, recorrendo à fotografia e fotomontagem, suportes consagrados nas mãos da vanguarda artística construtivista.

Seria o realismo socialista, assim, um aspecto crucial da construção do que o filósofo esloveno Slavoj Zizek (1949-) chamou, posteriormente, de uma sociedade “saturada semanticamente”? Isto é, seria tal “método artístico” um dos dispositivos do processo social de instauração do “império dos sinais” stalinista; ou seja, de uma sociedade em que cada enunciado seria esvaziado de seu sentido denotativo direto? A proposição do realismo socialista como uma linguagem bonapartista, estruturalmente ambígua, trás, assim, uma nova problemática para o estudo das obras de arte soviéticas do decênio de 1930. Como compreendê-las, já que, consolidada a reação stalinista, a linguagem “transparente” e anti-fetichista – que fora uma das bandeiras da LEF e uma marca dos debates públicos e conselhos de trabalhadores – perdera-se, dando lugar a obras carregadas de sentidos e ambiguidades?

No próximo – e último – artigo desta série serão analisadas concretamente algumas obras soviéticas que poderiam indicar a existência de uma nova sátira do poder e da cultura stalinista, que se aproveitaram desta saturação semântica para radicalizar a crítica ao processo bonapartista.

1. “O camarada Stálin chamou nossos escritores de engenheiros das almas”. Cf. JDANOV, Andrei. Soviet Literature - Richest in Ideas, Most Advanced Literature. Disponível em https://www.marxists.org/subject/art/lit_crit/sovietwritercongress/. 15/04/2015.
2. Grifo meu. Cf. JDANOV, op cit.
3. GORKI, Maxim. Soviet literature. Disponível em https://www.marxists.org/archive/gorky-maxim/1934/soviet-literature.htm. 08/05/2015.
4. Foram consultados os discursos de Jdanov, Gorki, Bukharin, Karl Radek (1885-1939) e A.I. Stetsky.
5. Para o detalhamento do processo de produção e da recepção crítica da ópera “Lady Macbeth...”, ver FITZPATRICK, Sheila. The cultural front. Londres: Cornell University Press, 1992.
6. Ver https://www.marxists.org/subject/art/lit_crit/sovietwritercongress/resolutions.htm. 10/05/2015.
7. Tais normas estéticas estavam pressupostas no combate ao “formalismo” e no retorno à “arte de cavalete” e ao romance. Elas não foram apontadas explicitamente, no entanto, em nenhum dos discursos, como normas ideais para a criação do realismo socialista.
8. LACAN, Jacques. “Função e campo da fala e da linguagem”. In: Escritos. Trad. Vera Ribeiro. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998.
9. GORKI, Maxim. Soviet literature, op cit.
10. ZIZEK, Slavoj. Em defesa das causas perdidas. Trad. Maria Beatriz Medina. São Paulo: Boitempo, 2011, p. 225. A noção de “saturação semântica” da sociedade soviética stalinista, desenvolvida por Zizek no livro citado, refere-se a uma espécie de dinâmica da circulação dos discursos oficiais na qual os sujeitos têm como pressuposto que o que é dito não possui significado efetivo, mas funciona como uma máscara para as reais intenções daquele que enuncia, derivando daí uma “atividade de interpretação frenética” sobre os discursos, que sempre significam mais do que aparentam. Cf. idem, ibidem.
11. Idem, ibidem.
12. A ambiguidade do regime bonapartista de 1930 não se dava apenas no campo da linguagem. Era, primeiramente, uma ambiguidade estrutural e totalizante da vida soviética. O melhor exemplo desta ambiguidade talvez esteja na política da “frente popular” contra o nazismo, construída pelo governo soviético a partir de 1934, assim como o realismo socialista. Tal política externa significava a formação de frentes parlamentares dos comunistas com a social democracia e com partidos liberais. Se, então, na política interna o governo soviético adotava medidas supostamente anti-burguesas, na política externa era um dos aliados da burguesia internacional. Ver TROTSKY, Leon, A revolução traída, op cit.




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