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ARTE SOVIÉTICA | O realismo socialista revisitado - parte III (a resistência ao romance)

terça-feira 19 de maio de 2015 | 01:05

O romance como forma-mercadoria

O projeto de desenvolvimento do romance soviético, elaborado por diversos literatos de 1930, encontrava seu contraponto crítico no movimento factográfico, proposto pelo escritor produtivista Sergei Tretiakov.

Desde 1927, no artigo “O novo Leon Tolstói” (1) , Tretiakov posicionava-se pela reestruturação da prática literária soviética – uma reestruturação explicitamente distinta daquela aplicada, anos depois, pela burocracia partidária. Diferentemente dela, o produtivista partia do questionamento do romance e de sua função histórica, ao invés da valoração supra-histórica do romance efetuada pelos governantes. Para Tretiakov, a figura do escritor pertencia ao modo de vida burguês e a reivindicação de tal figura consistia na reposição da cisão entre trabalho intelectual e trabalho manual, bem como na manutenção do processo de produção literária individual, em detrimento de uma prática reflexiva coletiva.

As possibilidades da superação da figura do escritor encontravam-se, para ele, na criação de dispositivos a partir dos quais os próprios trabalhadores produziriam os seus relatos, documentariam, literária ou imageticamente, os processos sociais e criticariam o modo de vida soviético. A factografia (literalmente, “grafia dos fatos”), deveria tornar-se um movimento pela abolição da figura do herói e do líder e pela abolição do subjetivismo, da narrativa ficcional e do drama, característicos do romance, em prol de uma prática anti-fetichista e documental, cujo objetivo primeiro seria a autodeterminação do proletariado. A imprensa soviética deveria ser, conforme o produtivista, o espaço da publicação de tais relatos(2).

Tretiakov encarregou-se, entre julho de 1928 e o final de 1930, da gestão das comunicações administrativas entre a fazenda coletiva “O farol comunista” e as autoridades de Moscou, assim como da edição de um jornal, distribuído entre 16 fazendas e fundamentado no trabalho dos relatos dos camponeses. Ele procurou, assim, pôr em prática o movimento factográfico (3).

Walter Benjamin endossou a posição de Tretiakov sobre o redirecionamento da literatura à imprensa em seu conhecido artigo “O autor como produtor”, de 1934. Em uma citação de Tretiakov feita por Benjamin, a dimensão política do projeto factográfico ganhava contornos claros. Para Tretiakov,

"Várias oposições, na literatura, que em épocas mais afortunadas se fertilizavam reciprocamente, transformaram-se em antinomias insolúveis. (...) Assim, há uma disjunção desordenada entre a ciência e as belas letras, entre a crítica e a produção, entre a cultura e a política. O jornal é o cenário dessa confusão literária. Seu conteúdo é a matéria, alheia a qualquer forma de organização que não lhe seja imposta pela impaciência do leitor. Essa impaciência não é só a do político, que espera uma informação, ou a do especulador, que espera uma indicação, mas, atrás delas, a impaciência dos excluídos, que julgam ter direito a manifestarem-se em defesa dos seus interesses. (...) Com a assimilação indiscriminada dos fatos cresce também a assimilação indiscriminada dos leitores, que se vêem instantaneamente elevados à categoria de colaboradores. Mas há um elemento dialético nesse fenômeno: no declínio da dimensão literária da imprensa burguesa revela-se a fórmula de sua renovação na imprensa soviética. Na medida em que essa dimensão ganha em extensão o que perde em profundidade, a distinção convencional entre o autor e o público, que a imprensa burguesa preserva artificialmente, começa a desaparecer na imprensa soviética. Nela, o leitor está sempre pronto, igualmente, a escrever, descrever, prescrever. Como especialista, se não numa área do saber, pelo menos no cargo em que exerce suas funções – ele tem acesso à condição de autor. O próprio mundo do trabalho toma a palavra." (4)

Ecoaria nos textos seguintes de Benjamin a defesa da factografia? Em “O narrador”, texto de 1936, o filósofo alemão enfatizava a recepção individual inerente ao romance. Ele escreveu, investigando o psiquismo do leitor burguês:

"Quem escuta uma história está em companhia do narrador; mesmo quem a Iê partilha dessa companhia. Mas o leitor de um romance é solitário. (...) Em consequência, o romance não é significativo por descrever pedagogicamente um destino alheio, mas porque esse destino alheio, graças à chama que o consome, pode dar-nos o calor que não podemos encontrar em nosso próprio destino. O que seduz o leitor no romance é a esperança de aquecer sua vida gelada com a morte descrita no livro". (5)

Na primeira versão do célebre texto “A obra de arte na era da reprodutividade técnica” (1936), Walter Benjamin retomava as palavras de Tretiakov:

"Hoje em dia, raros são os europeus inseridos no processo de trabalho que em princípio não tenham uma ocasião qualquer para publicar um episódio de sua vida profissional, uma reclamação ou uma reportagem. Com isso a diferença essencial entre autor e público está a ponto de desaparecer. Ela se transforma numa diferença funcional e contingente. A cada instante, o leitor está pronto a converter-se num escritor. Num processo de trabalho cada vez mais especializado, cada indivíduo se torna, bem ou mal, um perito em algum setor, mesmo que seja num pequeno comércio, e como tal pode ter acesso à condição de autor. O mundo do trabalho toma a palavra. Saber escrever sobre o trabalho passa a fazer parte das habilitações necessárias para executá-lo. A competência literária passa a fundar-se na formação politécnica, e não na educação especializada, convertendo-se, assim, em coisa de todos. Tudo isso é aplicável sem restrições ao cinema, onde se realizaram numa década deslocamentos que duraram séculos no mundo das letras. Pois essa evolução já se completou em grande parte na prática do cinema, sobretudo do cinema russo". (6)

A alusão ao cinema soviético, feita por Benjamin, não deixa dúvidas quanto a seu apoio aos filmes produzido pelos cineastas vinculados ao movimento construtivista (como Sergei Eisenstein e Vertov). Filmes como “A sexta parte do mundo” (1926), de Vertov, utilizaram como procedimento básico a montagem de filmagens produzidas por correspondentes operários e camponeses.

A análise de Benjamin coincidia com a de Tretiakov acerca da crítica da forma individual de produção e circulação do romance. Subentendia-se, nos textos do filósofo alemão, a necessidade de superá-la.

a apologia do romance

Gyorgy Lukács, por outro lado, a partir do material que compilou e publicou com Lifschtz (ver artigo anterior), redigiu em 1935 um artigo de defesa do romance. O texto “Friedrich Engels, teórico e crítico da literatura” investigava as análises críticas de Engels sobre a literatura do século XIX e, neste texto, Lukács alinhou-se à política bonapartista ao fazer equivaler a posição de Engels com a posição de Stálin. Ele escreveu que

"Precisamente através desta aplicação do materialismo dialético aos problemas da literatura, [Engels] descobriu e elaborou – juntamente com Marx – aquela linha de desenvolvimento da literatura proletária que seus grandes discípulos, Lenin e Stalin, continuaram, defenderam contra toda deformação oportunista e desenvolveram e concretizaram ulteriormente. A luta de Engels por um grande realismo, enriquecida pela obra teórica de Lenin, é posteriormente desenvolvida e concretizada – em um período no qual o proletariado já triunfou, no período da construção socialista – pela palavra de ordem estaliniana do “realismo socialista”. (7)

Lukács definia (e defendia), assim, o projeto stalinista da construção de um “grande realismo”, calcado numa suposta recuperação do realismo crítico da literatura do século precedente (8) . Delineava-se, deste modo, duas posições sobre os rumos da literatura na URSS: a de Tretiakov e Benjamin, que visava o exercício reflexivo da autodeterminação dos trabalhadores a partir da reestruturação do sistema literário; e a de Lukács, que objetivava a manutenção da produção e da recepção individual dos romances, repondo, assim, a figura do “escritor”, combatida pelo movimento construtivista/produtivista.

(1) TRETIAKOV, Sergei. “The new Leo Tolstoy”. In: OCTOBER 118. Cambridge, MA, MIT Press, Fall 2006

(2)Tretiakov escreveu: “Hoje o jornal é para o ativista soviético o que o romance foi para a inteligência liberal russa ou o que a bíblia foi para os cristãos medievais: o guia para todas as situações da vida. Ele abarca os eventos, suas sínteses e diretrizes em todos os setores da vida social, política, econômica e do front do cotidiano”. Cf. TRETIAKOV, Sergei. “The new Leo Tolstoy”, op. cit., p. 49

(3) Ver DEL RIO, Victor. Factografia: vanguardia y comunicación de masas. Madrid: ABADA Editores, 2010, p. 157.

(4) Apud BENJAMIN, Walter. “O autor como produtor”. In: Arte, técnica, política e magia. Trad. Sérgio Paulo Rouanet. São Paulo: Brasiliense, 1987, p. 125-142. Benjamin não referia, no texto, qual o artigo de Tretiakov que citava ou o ano da publicação de tal artigo.

(5) BENJAMIN, Walter. “O narrador: considerações sobre a obra de Nikolay Leskov”. In: Magia e técnica, arte e política. Trad. Sérgio Paulo Rouanet. São Paulo: Brasiliense, 1987, p. 213-214.

(6) Cf. BENJAMIN, Walter. A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica. Disponível em http://www.mariosantiago.net/Textos%20em%20PDF/A%20obra%20de%20arte%20na%20era%20da%20sua%20reprodutibilidade%20t%C3%A9cnica.pdf. 06/05/2015.

(7) LUKÁCS, Gyorgy. “Friedrich Engels, teórico e crítico da literatura”. In: Marxismo e teoria da literatura. São Paulo: Expressão Popular, 2010, p. 47.

(8) O vínculo histórico e político entre a obra de Lukács do decênio de 1930 e a formulação do realismo socialista como política estatal são frequentemente denegados pela intelectualidade brasileira. Tal vínculo histórico, bem como as afirmações explícitas de Lukács em prol de Stalin, é tratado como fruto da pressão política conjuntural, enquanto as tímidas críticas do autor ao sistema de censura estabelecido na URSS são apresentadas como um vigoroso combate ao realismo socialista. Teria, assim, o lukacsianismo brasileiro omitido uma parte crucial das elaborações do filósofo húngaro? Para um exemplo nítido desta cegueira crítica (ou posição política), consultar a apresentação elaborada por Carlos Nelson Coutinho (1943-2012) aos escritos de Lukács, em LUKÁCS, Gyorgy, Marxismo e teoria da literatura, op cit, p. 7-11.




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