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RELAÇÕES RÚSSIA, CHINA E EUA | O quebra-cabeças norteamericano na reconquista da Ásia

André Barbieri São Paulo | @AcierAndy

quinta-feira 14 de maio de 2015 | 00:01

A cenificação da “Marcha da Vitória” em comemoração à vitória contra os nazistas na Praça Vermelha de Moscou, organizada pelo presidente Vladímir Putin, que destacou os avanços da indústria da defesa russa e que contou com a participação de militares chineses e os navios do Exército de Libertação do Povo junto à Frota russa do Mar Negro, conseguiu o efeito desejado por Moscou.

Por um lado, apesar do boicote das potências ocidentais ao evento, o secretário de Estado John Kerry entendeu esta mensagem direta às potências ocidentais e se reuniu no dia seguinte com Putin para tratar de problemas geopolíticos na Ucrânia, na Síria e no Irã.

Por outro, o evento estreitou ainda mais as relações comerciais entre Moscou e Pequim. Os dois principais bancos estatais russos, o Sberbank e o VTB, abriram linhas de crédito com o Banco Estatal de Desenvolvimento da China no valor de 9 bilhões de yuans (US$1,4 bilhões), além da construção da primeira ferrovia de alta velocidade da Rússia, que cobrirá o trajeto Moscou-Kazan, por 6 bilhões de dólares. Em troca a Rússia fixou as condições para o abastecimento de 30 milhões de metros cúbicos de gás à China durante 30 anos, além do envio de 100 aviões Sukhoi SuperJet-100 através da companhia russa OAK.

Ainda que isto gere uma maior dependência das empresas russas ao capital chinês, a desigualdade na relação é contrabalançada pela necessidade chinesa da tecnologia militar russa. Uma cooperação que duplica as preocupações de Washington diante das ameaças militares chinesas na Ásia-Pacífico e seu crescente orçamento de defesa.

Conflitos sem perspectivas de solução

A apresentação de Kerry se fez com o objetivo de, enquanto deixa aberta a via diplomática para resolver a crise no leste, desencorajar a Rússia de transformar a demonstração de força militar em atitudes agressivas contra a Ucrânia e outros países da antiga zona de influência da ex-URSS (os países bálticos), depois das manifestações separatistas no leste ucraniano, que resultaram na ocupação de prédios públicos em Donetsky, Lugansk e Kharkov, por manifestantes pró-russos defendendo um referendo de secessão.

Logo depois de Rússia e China demonstrarem sua intenção de modernizar todo o exército de seus países, a Estônia, membro da UE e da OTAN que faz fronteira com a Rússia, mobilizou 13.000 militares para exercícios de combate na fronteira, simbolizando o grande alarme que a anexação da Criméia e a intervenção na Ucrânia por parte da Rússia causam no leste europeu.
Depois dos acontecimentos da Criméia e o conflito ucraniano, os Estados Unidos trataram de isolar Moscou (com sanções conjuntas com a Alemanha). Entretanto, fortaleceram a sensação russa de que, apesar dos graves problemas econômicos da Rússia e sua clara inferioridade militar diante do colosso imperialista norteamericano, Washington não pode ignorar o que acontece em Moscou. Menos ainda pode prescindir da Rússia para estabilizar os dois principais conflitos geopolíticos mundiais em curso, a crise da Ucrânia e a instabilidade regional no Oriente Médio.

Tanto assim que Kerry ensaiou novas discussões sobre a saída para o problema sírio (nunca é demais lembrar que a Rússia tirou Barack Obama da embaraçosa situação de não cumprir sua ameaça de intervir militarmente na Síria se Bashar El-Assad usasse armas químicas contra a população). Mas ambos mostraram a distância entre as soluções previstas pelo governo de Washington e de Moscou: enquanto Obama preferiria a “transferência de poder” para um aliado mais próximo do imperialismo, Putin é favorável à manutenção de Assad no poder e um diálogo entre as partes, aproveitando-se das decisões imperialistas na Síria para manter em “carne viva” problema do Estado Islâmico para os EUA.

Acerca do Irã, os Estados Unidos se encontra em clara disputa de influência com a Rússia. O regime do Teerã é um antigo aliado de Moscou na região, em função da hostilidade política e as sanções econômicas mantidas pela Casa Branca ao governo iraniano desde a revolução de 1979. A reaproximação dos Estados Unidos do Irã, fruto do reconhecimento do peso político da ala xiita do islamismo no Oriente Médio depois da queda de Sadam Hussein no Iraque, a influência do Irã sobre o Hamas na faixa de Gaza e o Hezbollah no Líbano e que agora ameaça a própria Arábia Saudita no Iêmen, é funcional aos interesses de estabilização da região para que Obama possa “apontar o pivô” para a Ásia.

Entretanto, a venda de mísseis russos antiaéreos S-300 ao Irã (e a promessa de envio de mísseis balísticos, tanques T-14 Armata e veículos de infantaria de última geração produzidos na Rússia) não permitem que os EUA descartem a influência russa no regime iraniano.

Nem é preciso mencionar a desigualdade de interesses entre as duas potências na Ucrânia. O Ministro de Relações Exteriores da Rússia, Serguei Lavrov, desqualificou a estratégia ocidental das sanções, dizendo que “a instigação do confronto e as tentativas de pressão por meio de sanções sobre a Rússia não levarão a lugar algum. Não se conseguirá que a Rússia renuncie a seus interesses nacionais e a suas posturas de princípio em questões vitais”. Putin reafirmou que uma tarefa importante é “continuar o programa de substituição de importações de produtos de empresas ucranianas e dos países da União Europeia. Elevaremos o nível de nossas próprias empresas e ampliaremos sua independência”.

A deterioração as condições no terreno, nas últimas semanas, as contínuas provocações de Washington e seus aliados em Kiev e a demonstração de forças de Moscou vislumbram não apenas novas escaladas no teatro de operações ucraniano, mas também que os choques entre as grandes potências continuarão ocorrendo em níveis desconhecidos desde a implosão da ex-URSS.

A Rússia, incomparavelmente mais débil econômica e militarmente que os EUA, se empenha entretanto em prolongar os problemas norteamericanos herdados da administração Bush, servindo-se da agressividade imperialista no leste europeu para recompor sua zona de influência e buscar saídas econômicas à sua dependência da Europa, buscando posicionar-se estrategicamente vislumbrando o declínio hegemônico dos EUA.

A própria debilidade dos EUA (que desde o fim da Guerra Fria nunca esteve tão longe da capacidade de estabilizar conflitos com a Rússia como agora) distorce a capacidade russa de intervir no tabuleiro geopolítico, ampliando a figura de um Putin altamente dependente dos recursos energéticos e com escassa base industrial e financeira.

Mais difícil se torna à Casa Branca converter a Ásia num terreno de conquista favorável quanto mais a dupla China-Rússia ocupa o espaço continental, base segura de grandes conflitos e processos geopolíticos no próximo período.




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