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PODEMOS | O impasse hegemônico de Pablo Iglesias

O artigo de Pablo Iglesias no portal Publico.es “Guerra de trincheiras e estratégia eleitoral” é uma função da crise atravessada pelo Podemos a alguns meses das eleições.

André Barbieri São Paulo | @AcierAndy

sexta-feira 8 de maio de 2015 | 00:01

Fruto dos discursos cada vez mais “nem de esquerda nem de direita” promovidos por Iglesias na tentativa de conquistar um eleitorado à direita, a queda nas pesquisas (diante do “Ciudadanos”, formação da direita liberal) e as eleições em Andaluzia mostraram um limite ao “momento populista” do fenômeno Podemos. Na última semana, a renúncia da direção do co-fundador da organização junto a Iglesias, Juan Carlos Monedero, (dizendo-se “desapontado e traído pela partidocracia”, depois de ser acusado de receber 425 mil euros por serviços de assessoria aos governos da Venezuela e do Equador) incrementou a crise entre Pablo Iglesias e seu “número dois”, da ala centro, Iñigo Errejón.

Pela primeira vez, Iglesias se vê confrontado com o problema de ser “confundido exatamente com aquilo que quer substituir”, nas palavras de Monedero, ou seja, com o tradicional bipartidarismo europeu entre liberais e conservadores que atravessa uma histórica crise de representatividade. É fato que o Podemos não vem conseguindo aproveitar esta crise como o fenômeno reformista do Syriza pôde fazer na Grécia, mas participando desta crise. A série de reflexões de Iglesias, e esta última apoiada em Gramsci, um claro referente da esquerda revolucionária, mesmo para justificar sua política eleitoral reformista, dá mostras da necessidade de se “desidentificar” um pouco com o centro, o que contrasta com suas últimas “performances”, como a foto com o Rei Felipe VI, os aplausos ao Papa Francisco, a moderação de seu programa social, a entrevista com o embaixador dos Estados Unidos na Espanha, com empresários e fundos financeiros, a reivindicação dos militares e com representantes da “casta” do PSOE como Zapatero e Bono.

A crise prematura do Podemos move a cúpula a pensar em retomar o discurso “irreverente”, presente nos inícios do movimento (antes de Iglesias e Monedero anularem a participação efetiva das bases do Podemos na política), na busca de um “projeto político de irrupção plebéia” e de defesa dos direitos do Estado de Bem-Estar do segundo pós-guerra.

Nossos amigos Juan Dal Maso e Fernando Rosso abordaram o debate com Iglesias desde a ótica da recuperação do pensamento de Gramsci da degradação sofrida pelas “mãos eleitorais” de Iglesias. Queremos abordar desde o tema aberto por Iglesias sobre as origens do debate sobre hegemonia, pois, sem ouvir-se a si mesmo, confunde hegemonia com a conquista de votos para chegar ao aparato de estado.

A disputa por hegemonia é uma disputa de classes

Pablo Iglesias diz que “diferentemente do que muitos pensam, Gramsci não idealizou o conceito de hegemonia, já que estava presente nas reflexões dos socialistas russos que Gramsci conheceu, e inclusive em alguns textos da Internacional Comunista”. Certamente. Mas Iglesias “se esquece” de mencionar o sentido deste termo na tradição comunista, fazendo parecer que se assemelha ao seu, segundo o qual a hegemonia seria “uma guerra entre chefes pela imposição de um relato”.

A idéia de “hegemonia” foi uma das consignas políticas mais enfatizadas nos debates do movimento socialdemocrata russo de 1908 até 1917, sendo utilizada por mencheviques e bolcheviques (as duas tendências do POSDR, pequeno burguesa e proletária revolucionária, respectivamente).

A idéia, codificada primeiramente por Plekhanov em 1883-84, insistia na necessidade da classe operária russa de apresentar um luta política, e não somente econômica, contra o czarismo. Argumentando que a burguesia na Rússia era demasiado débil para tomar a iniciativa da revolução democrático-burguesa (derrubada do absolutismo e a conquista dos direitos democráticos republicanos), em 1889 enfatizou que “a liberdade política seria conquistada pela classe operária ou não seria”, ainda sem colocar em dúvida a dominação capitalista na Rússia.

Esta “orientação totalmente nacional” que poderiam adotar os trabalhadores russos foi rapidamente abandonada por Plekhanov e outros escritores mencheviques, que sugeriram uma aliança entre os trabalhadores e a burguesia liberal (de fato, a subordinação dos trabalhadores à burguesia, que deteria o poder) nos processos revolucionários anteriores à primeira revolução russa. Alegando que o czarismo, depois da derrota em 1905, havia efetuado uma transição do estado feudal ao capitalismo, a hegemonia do proletariado ficara obsoleta na medida em que a revolução burguesa se havia realizado na Rússia.
Lênin (que ainda adotava a fórmula de uma “ditadura democrática do proletariado e do campesinato em 1905) denunciou vivamente este abandono da idéia “hegemônica” do proletariado por parte dos mencheviques, em função de sua subordinação à burguesia. “Como única classe consistentemente revolucionária da sociedade contemporânea, a classe operária deve ser a dirigente na luta de todo o povo por uma revolução totalmente democrática, na luta de todo o povo trabalhador e democrático contra os opressores e exploradores. O proletariado é revolucionário apenas na medida em que é consciente e torna efetiva a idéia de sua hegemonia”.

Os debates se desenvolveram durante toda a década da repressão czarista, e retornaram com força em abril de 1917, quando Lênin retorna à Rússia modificando seu ponto de vista, defendendo agora a necessidade da “ditadura do proletariado” baseada nos organismos democráticos de massas, os soviets. Em 1918, polemizando contra os ataques de Karl Kautsky, maior expoente do marxismo na II Internacional até 1914, à Revolução de Outubro, Lênin desenvolve mais uma vez a idéia: “o proletariado é a classe de vanguarda de todos os oprimidos, o foco e o centro de todas as aspirações de todos os oprimidos a sua emancipação”.

Antes como depois da tomada do poder na Rússia, trata-se para Lênin de refletir como quebrar a hegemonia da burguesia sobre as massas e substituí-la pela hegemonia dos trabalhadores organizados enquanto classe dominante (seu instrumento foi o Partido Bolchevique), como passo no período de transição do capitalismo ao comunismo.

Apesar de ser improvável que Gramsci tenha conhecido todos os arquivos e os debates anteriores na socialdemocracia russa sobre a hegemonia (segundo Perry Anderson), durante sua estadia em Moscou em 1922-23 conheceu as resoluções da Internacional Comunista e participou do Quarto Congresso de 1922 (antes da burocratização stalinista de 1924), o que influenciou sua abordagem (apesar de sua subvalorização do problema da insurreição no ocidente e a ambigüidade na integração questão da guerra de posição e da guerra de movimento, o que não o torna menos importante como líder revolucionário da III Internacional).

Ao contrário do que diz Iglesias, ainda que Gramsci enfatizasse a necessária ascendência cultural dos trabalhadores sobre as classes aliadas, utilizou este conceito como a aliança de classe do proletariado com outros grupos explorados (o campesinato, sobretudo), “Se não há dúvida que a hegemonia é ético-política, também deve ser econômica, deve basear-se necessariamente na função decisiva exercida pelo grupo dirigente no núcleo decisivo da atividade econômica”.

Isso é parte daquela “tradição ortodoxa” da qual Iglesias assumidamente se afasta, aproximando-se da maneira pragmática de fazer política da elite: uma máquina de guerra eleitoral.

A hegemonia de Pablo e a nossa

Apesar da grande oportunidade aberta pela história, estes debates de estratégia não estão presentes nos discursos destes fenômenos reformistas de massas na Europa, como Syriza e Podemos. Muito menos a problemática de qual classe fundamental pode dar uma saída progressista à crise mundial, ou mesmo o temário da luta de classes como motor da história (em pleno aniversário do velho Marx!). Os anos de neoliberalismo e da restauração burguesa, por mais abalados que estejam na realidade da crise mundial, conservam sua “hegemonia” nos discursos do Podemos e do Syriza.

Entretanto, nota-se como o debate de hegemonia era inseparável do problema de “que classe triunfará?”, e no caso dos bolcheviques Lênin e Trotsky, de saber por quais vias a classe trabalhadora, única classe social revolucionária em nossa época, conquistará predomínio político sobre as amplas massas exploradas e oprimidas como “dirigente dos interesses dos explorados de toda a nação em todos os momentos de sua vida política”, com uma estratégia para destruir o poder instituído dos exploradores.

Muito distinto das colocações de Iglesias, onde a hegemonia aparece como “luta entre chefes pelo melhor relato”... para sustentar uma regeneração democrática nos marcos do Estado burguês, (“a última esperança dos povos”, como disse a Chantal Mouffe), ou seja, sem quebrar a hegemonia da burguesia sobre as massas exploradas e os recursos econômicos. O programa de “resgate da cidadania, com emprego e inovação tecnológica” é um programa de passivização das forças sociais, sem cuja mobilização é impossível alterar a relação de forças hegemônicas entre as classes.

Portanto, a crise do Podemos não é produto da sua capacidade discursiva, mas da inconsistência de sua estratégia. Iglesias admite que o grande serviço “hegemônico” do Podemos é utilizar a linguagem política para chamar a elite espanhola de “casta”. Esta concepção, de infrutífera busca de transformações políticas e econômicas sem a intervenção da classe trabalhadora como sujeito político, não se diferencia do “possibilismo eurocomunista” que critica, nem da moderação de um Partido Socialista (PSOE) que poderia “ter ido muito longe”.

Enquanto se prepara para as eleições, o Podemos disputa “relatos hegemônicos” à maneira dos governos pós-neoliberais da América Latina, hoje em crise: assimilar passivamente as massas à democracia dos ricos, funcional à recomposição da hegemonia daqueles que já detêm o poder.




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