Este é o quarto conto de uma série que leva o título de Histórias do proletariado digital.
Afonso MachadoCampinas
segunda-feira 12 de agosto de 2019 | Edição do dia
Pedro ainda sente dores no pulso direito. Seu rosto de cinquenta anos parece o de um homem de setenta anos. Já faz mais de dois anos que uma usina açucareira do interior de São Paulo, o mandou embora. As mãos com machucados eternos denunciam que Pedro trabalhou como cortador de cana de açúcar. Foram anos em que com sua única camisa de flanela cinza, com a bermuda jeans mais surrada do planeta, com o descolorido boné azul e com os maltratados “ chinelos amarelos de dedo “, Pedro adentrava diariamente por um labirinto verde. A pele do rosto machucada pela fumaça das queimadas, o pomo de Adão da garganta magrinha subindo e descendo como um pequeno elevador e os olhos sempre apertados por causa do sol endiabrado, formavam naqueles anos a figura de um homem que golpeava todos os dias com seu facão os pés de cana.
O tempo passou e Pedro vende agora água mineral e pipocas doces num terminal de ônibus em Campinas. Apesar do cenário ser outro, o canavial do passado não sai da cabeça de Pedro. Não é saudade, não é nostalgia. É sempre uma marca cortante da sua vida. Até parece que os golpes do facão foram dados na sua própria carne, tamanha é a dor e a sensação de uma grande perda de tempo. Á noite, quando adormece, Pedro tem sempre o mesmo pesadelo: o canavial surge na sua cabeça. Todos os trabalhadores cortando cana. Um gavião gigantesco sobrevoa Pedro e os outros. Pedro larga o facão e corre para dentro do canavial. Mas não tem jeito: o gavião sempre o encontra, o derruba com as duas garras, bate com as asas no rosto de Pedro e em seguida começa a bicar a sua barriga, a bicar o seu peito, até que com o bico todo sujo de sangue começa a devorar os órgãos internos da presa.
Pedro trabalhou entre os anos de 2010 e 2017 naquela usina. Naquele primeiro ano, a usina possuía centenas de trabalhadores cujos salários estavam atrelados á quantidade diária de cana de açúcar cortada. Ele se lembra da velha Maria do Olho Furado, incansável cortadora de cana, que dizia numa voz debochada:
Pedro se lembra com raiva dos funcionários da usina. Eram eles quem contabilizavam as montanhas de cana cortada e nunca os trabalhadores. Era uma ansiedade tremenda quando todos que ali trabalhavam com os facões, começavam a cortar a cana no início da manhã; afinal quem cortasse mais ficava e quem cortasse menos era mandado embora da usina. Ele se lembra ainda de um rapaz chamado Zezinho , que cortava, cortava e cortava os pés de cana, olhando de modo hostil para quem estivesse pelos lados, competindo com ele. Mas foi então em 2017 que a usina, atenta aos lucros do etanol, substituiu os trabalhadores pelas colhedeiras. Caminhando agora pelo terminal com suas garrafas e suas pipocas, Pedro exclama bem alto sem abrir a boca, berra no silêncio da sua mente:
Agora no canavial não se ouve mais as brincadeiras da Maria do Olho Furado. O olhar colérico do Zezinho não está mais lá. O espaço foi tomado pelas colhedeiras, pelas máquinas sofisticadas que somente técnicos e engenheiros podem operar. Máquinas que num único movimento valem mais do que mil braços e mil facões. Agora são esses moços estudados, que sabem fazer contas e sabem programar as máquinas, aqueles que vendem o seu trabalho para a usina. Hoje quase ninguém compra as garrafas de água mineral e nem mesmo um único rosado saquinho de pipoca doce, que Pedro tenta vender o dia inteiro. Pedro só não morre de fome porque a filha mais velha trabalha como funcionária de telemarketing e o filho mais novo carrega e descarrega caixas de refrigerantes de um caminhão, abastecendo armazéns e pequenos mercados de alguns bairros de Campinas.
Diante do pesadelo constante com o gigantesco gavião que lhe devora a barriga, Pedro costuma levantar-se no meio da noite. Rememorar sua vida, procurar dar algum sentido ao seu passado, são coisas difíceis para ele. Parece que o seu passado é habitado apenas por um monstruoso gavião, que o tortura através das madrugadas. O ex cortador de cana se levanta após o pesadelo, vai até a única janela da sua minúscula casinha de tijolos descarnados e acende um cigarro de palha. Ele então pensa o que pode ter acontecido com os outros trabalhadores daquele canavial. Se as colhedeiras estão desligadas ou com insônia, assim como ele:
Sempre quando amanhece, lá naquele canavial em que Pedro trabalhou, um gavião sobrevoa a plantação em busca de carne e sangue.
Observação: Esta é uma pequena obra de ficção. Apesar do pano de fundo ser inevitavelmente histórico, personagens e lugares foram inventados.