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TURQUIA | O dia seguinte ao golpe de estado fracassado na Turquia

Nas primeiras horas de 16 de julho, o governo turco declarou a vitória sobre a tentativa de golpe de estado que havia posto em xeque o país e ao mundo na noite anterior.

Claudia CinattiBuenos Aires | @ClaudiaCinatti

domingo 17 de julho de 2016 | Edição do dia

Foto: EFE/ Tolga Bozoglu

Segundo as informações da imprensa, as ruas amanheceram quase vazias, apenas alguns grupos isolados de simpatizantes do Partido do Desenvolvimento e da Justiça (AKP) do presidente Recep Tayyip Erdogan continuavam protestando. Porém, as marcas da batalha nas ruas na noite anterior ainda estavam visíveis, como os impactos de explosivos no edifício do parlamento.

O saldo da sangrenta jornada na qual se viu enfrentamentos entre as forças de segurança, setores golpistas do exército e civis que saíram a mobilizar-se aos milhares contra os militares sublevados está em torno de 200 mortos e 1500 feridos. O primeiro ministro, Binali Yildirim, informou que foram presos uns 3000 membros das forças armadas e de segurança, além de 2700 juízes e 9 membros do tribunal supremo que foram destituídos, todos suspeitos de ter organizado e formado parte da conspiração.

Erdogan assinalou como chefe dos golpistas o clérigo Fethullah Gulen, que passou de aliado a pior inimigo do presidente turco e que vive no exílio na Pensilvânia, o que lhe agrega uma parte a mais de dramatismo nessa situação. Desde antes da tentativa fracassada de golpe, Ankara buscava a extradição de Gulen. Agora, acusado de conspiração e atentado contra um governo democraticamente eleito, a ordem visa diretamente aos Estados Unidos.

Se tomadas como as conspirações anteriores – reais ou imaginárias – o mais provável é que Erdogan lance uma nova purga no exército. Não casualmente considerou que o golpe havia sido uma “oportunidade dada por Deus”. O presidente já prometeu que os responsáveis pagarão um preço alto.

No imediato, o resultado desse golpe fracassado é um fortalecimento de Erdogan. No plano interno, conseguiu o apoio da maioria do exército, dos principais partidos da oposição – desde os nacionalistas kemalistas do Partido Republicano do Povo até ao de centro-esquerda e pró-curdo Partido Democrático Popular – e das centrais patronais. Além disso, mostrou que o AKP conta com uma base popular que se mobilizou contra os golpistas e que na hora da retirada abandonou as ruas de maneira ordenada.

No plano externo se confirmou como o aliado incômodo, mas aliado no fim, das potências ocidentais. Barack Obama, Angela Merkel e depois deles os principais líderes lhe deram apoio. A última coisa que os governos imperiais precisam é uma crise na Turquia, membro da OTAN, com um exército de milhões de efetivos (o maior da aliança depois dos EUA). Ainda que por afinidade, ao menos os Estados Unidos se entenderiam melhor com o exército, nem a União Europeia nem o governo norte-americano poderiam tolerar um golpe em um país aliado.

E em última instância, o presidente Erdogan garante que a Turquia segue exercendo a função de estado-tampão para a União Europeia. Isso se viu no acordo que fechou com a chanceler alemã para frear a onda de refugiados que se aglomeravam nas fronteiras da UE.

O que fará Erdogan com esse capital político se verdadeiramente confirma-se possuir tal capital?

As opções parecem estar à vista: terminar de domesticar os opositores internos, sobretudo a minoria curda que obstaculiza a concreção do giro autoritário que se propôs ao menos desde 2013, isto é, construir um regime bonapartista de direito baseado na autoridade presidencial, liquidando o caráter parlamentarista que até agora tem a república turca.

Um passo até essa direção foi a reposição de seu primeiro ministro em maio desse ano, uma espécie de golpe branco dentro de seu próprio partido, pelo qual saiu Ahmet Davutoglu e logo substituído por Binali Yildirim, um homem de provada lealdade ao presidente.

Mas, como se sabe, em curto prazo tem mais miragem que realidade. E dificilmente essa vitória de Erdogan alcance por si mesma para resolver as profundas contradições que rasgam o país.

O “modelo turco” com o que o atual presidente ganhou as simpatias do ocidente há muito tempo está quebrado. Quando o AKP assumiu o poder em 2002 e se colocou como a possibilidade concreta de um partido islâmico moderado a frente de um regime democrático burguês, capaz de pôr fim a história recorrente de golpes militares e ao mesmo tempo mantendo o papel do exército como “estado profundo”, alcançar um acordo pacífico com a minoria curda e conduzir a Turquia a integrar-se na União Europeia.

Seu demorado ciclo foi possível porque no início Erdogan foi capaz de deslocar a contradição que havia marcado a história turca entre “islamismo” e “república secular” pela de uma democracia burguesa normal versus o militarismo encarnado pelo exército. Enquanto isso, durante os primeiros oito anos de seu mandato, governou uma economia robusta que lhe permitiu impor reformas neoliberais profundas e dar lucros recorde às patronais locais e europeias.

Sobre a base da confiança interna se animou inclusive uma espécie de diplomacia “neo-otomana”. Sua estratégia era projetar o papel da Turquia, não apenas como potência regional, mas também até ao mundo árabe sunita, “exportando” seu modelo como saída aos processos da “primavera árabe”. O golpe do exército contra o governo de Mohammad Mursi e por essa via contra a Irmandade Muçulmana no Egito, foi um golpe que derrubou esse projeto.

O ano da crise foi 2013. Assim como aconteceu no Brasil e em outros países emergentes que começavam a acusar a recepção da crise capitalista internacional, Turquia viu o desenvolvimento de um imponente movimento de oposição a Erdogan e seu autoritarismo, com base nas classes médias, na juventude e também nos trabalhadores sindicalizados.

A rebelião da Praça Taksim foi seu símbolo. E como as desgraças não partem de apenas uma, nesse mesmo ano houve uma crise sem precedentes do governo por escândalos de corrupção, na qual três ministros tiveram que renunciar. Nesse momento, a paranoia do regime levou a acusar como instigadores de ambos os processos os seguidores de Fethullah Gulen, o mesmo acusado agora pela tentativa de golpe.

O governo de Erdogan passou de ser um ”modelo” a ser uma fonte de instabilidade e políticas erráticas para as potências ocidentais. Suas aspirações de liderança prejudicaram a níveis históricos as relações com Israel.

Porém onde mais incerteza gerou é na Síria. Não é um segredo para ninguém que o governo turco manteve uma política ambígua em relação ao Estado Islâmico: formalmente como oposição e como conteúdo de utilização para combater as aspirações nacionais da minoria curda, sobretudo sua fração radical formada pelo Partido dos Trabalhadores do Curdistão na Turquia e o Partido da União Democrática (e suas milícias) na Síria.

O acordo nuclear entre Estados Unidos e Irã encorajou ainda mais a Turquia a perseguir seus próprios interesses nacionais que nesse momento passam por enfrentar tanto aos aliados iranianos como ao nacionalismo curdo. Sabe-se que o exército era contrário aos planos de uma intervenção ativa na Turquia na guerra civil síria. Mas também que vê com bons olhos a nova “guerra suja” que Erdogan habilitou contra os curdos dentro de suas fronteiras.

No entanto, a onda de atentados terroristas na Turquia, o último no maior aeroporto de Istambul, e a deterioração de alianças de importância, como a Rússia, mostra que desde um tempo a Síria já é um problema interno turco.

Por último, o golpe fracassado na Turquia não é um acontecimento isolado. Não se trata de somar feitos de natureza e consequências distintas, esse método conduz a conclusões equivocadas, mas sim de buscar as linhas de falha.

Os atentados terroristas na França, a crise aberta pelo Brexit, a emergência de partidos de extrema direita que disputam governos nos países centrais com uma mistura de xenofobia, racismo e demagogia nacionalista dirigida aos losers da globalização; o golpe institucional no Brasil, não parecem ser obra da casualidade, mas com toda sua singularidade, a expressão de que a institucionalidade burguesa das últimas décadas está desmoronando-se depois de longos anos de crise capitalista, guerras e decadência da “ordem liberal” hegemonizada pela liderança norte-americana.

Isso abre a porta a fenômenos berrantes, como Donald Trump nos Estados Unidos, a Frente Nacional da França e os populismos de extrema direita, e também o Estado Islâmico e seus brutais métodos terroristas. Mas ao mesmo tempo, e de maneira confusa, cria as condições para uma eventual erupção vulcânica das massas trabalhadoras e populares.




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