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TRIBUNA ABERTA | O coronavírus e a classe trabalhadora

O economista Jack Rasmus explica o porquê a classe trabalhadora estadunidense (e mundial) é a que mais sofrerá as consequências do Coronavírus.

quarta-feira 11 de março de 2020 | Edição do dia

O seguinte artigo foi publicado por Jack Rasmus em seu blog pessoal no dia 8 de março. Publicamos uma versão traduzida pelo Esquerda Diário.

Os políticos e os meios de comunicação dos Estados Unidos estão informando que existem aproximadamente 500 casos do vírus no país até o dia 8 de março. No entanto, o número real é quase certamente muito mais alto. Talvez até dez vezes este número, de acordo com algumas fontes. Por que?

Existe o problema de reportar apenas os casos comprovados até agora, e ainda existe uma falta de kits de diagnóstico disponíveis inclusive para testar e verificar todos os infectados sem sintomas. E inclusive aqueles que mostram sintomas podem ter sido determinados inicialmente como não infectados pelos testes, já que foi comprovado que muitos dos primeiros kits de teste eram defeituosos. Enquanto isso, aqueles sem sintomas ou pré-sintomáticos não estão sendo examinados de nenhuma forma.

A ficção da quarentena voluntária

Depois, existe a política de quarentena voluntária daqueles que entraram em contato com alguém que foi testado e se descobriu infectado. Não está funcionando muito bem. Aos que estiveram em contato com portadores do vírus lhes é pedido que simplesmente fiquem em casa. Mas o fazem? Não existe forma de sabê-lo, nem sequer de fazer com que se cumpra. O exemplo de caso no qual se pode ver que a quarentena voluntária não funciona é a Itália.

A maior parte da região norte de Lombardía, incluindo o centro financeiro de Milão neste país, está atualmente fechada. Isso significa quarentena voluntária. É pedido às pessoas que não deixem suas cidades ou sua região. Mas isso os impede de se mover pela cidade ou ir a lugares públicos? Ou viajar dentro da região? E de lá propagar o vírus? Aparentemente não. Segundo é informado, a infecção dos examinados aumentou para mais de 6.000 em apenas duas semanas no norte da Itália. A rede estadunidense NBC informa que, em apenas um dia deste fim de semana, este número aumentou em 1.200 casos! Demais para as quarentenas voluntárias. Não há forma, não existem equipes suficientes, nem sequer procedimentos aceitos, com os quais comprovar diariamente aqueles que estão em quarentena voluntária.

Os custos reais para os trabalhadores

A maioria da classe operária não pode se dar o luxo de se colocar em quarentena voluntariamente, ou ficar em casa e não trabalhar por qualquer motivo. Inclusive se tiverem sintomas, seguirão indo ao trabalho. Tem que fazê-lo, para sobreviver economicamente.

Considere o cenário típico nos EUA: existem literalmente dezenas de milhões de trabalhadores que não tem mais de 400 dólares para uma emergência. A metade de toda força de trabalho, de 165 milhões, ganha pelo dia. Não podem se permitir perder nenhum dia de trabalho. Milhões deles não tem licença paga por doença. Os Estados Unidos é a pior de todas as economias avançadas em termos de proporcionar uma licença paga por doença. Inclusive os trabalhadores sindicalizados com algumas faltas por doenças pagas em seus contratos tem, no melhor dos casos, uma média de apenas seis dias. Se ficam em casa, seu empregador lhes perguntará a razão de fazê-lo com o objetivo de descontar esta licença. E inclusive quando tem direito à licença por adoecimento, paga ou não, muitos teriam que apresentar um atestado médico que indique a natureza da doença. Mas os médicos se negam a atender pacientes que possam ter o vírus. Não podem fazer nada a respeito, assim não querem que estejam nos seus consultórios e possivelmente contaminem outros pacientes ou eles próprios. Desta forma, um trabalhador doente tem que ir para a emergência de um hospital.

Isso coloca outro problema. Uma visita a uma sala de emergências no EUA custa em média pelo menos 1.000 dólares. Ainda mais se tem que fazer exames especiais. Se o trabalhador não tem seguro de saúde (30 milhões não o tem) é um gasto com o qual não podem arcar. E sabem disso. Assim que não vão para uma sala de emergência de hospital, e não conseguem ir a uma consulta em um consultório privado. Resultado: não fazem os testes, se negam a fazer o teste e continuam trabalhando. O vírus se propaga.

Inclusive se tiverem a cobertura do seguro de saúde, os montantes passáveis da cobertura costumam ser de 500 a 2.000 dólares; tudo que supere esse montante deve ser pago pelo ou pela paciente. A maioria tampouco tem essa quantidade de poupança para gastar. Sem mencionar os co-pagamentos. Assim, há inclusive pessoas com seguro que optam por não fazer os testes no hospital, mesmo com sintomas.

Os meios de comunicação tampouco ajudam. Os informes costumam dizer que aqueles que são jovens, de idade média, que tem boa saúde e não apresentam outras complicações, não morrem. São as pessoas idosas, os aposentados com Medicare, ou com outras condições sérias, os que morrem pelo vírus. Os trabalhadores escutam isso e isso reforça sua decisão de não ir ao hospital para fazer o teste.

Depois existe a complicação adicional em relação ao emprego se vão ao hospital. O hospital lhes fará o teste. Caso estejam infectados os mandará para casa… Para uma quarentena voluntária de 14 dias! Aí começa a verdadeira crise financeira para as famílias trabalhadoras. O hospital informará seu empregador. Ficar em casa durante 14 dias resultará em um desastre financeiro, já que o empregador não tem a obrigação de continuar pagando seus salários enquanto não estejam no trabalho, somente caso tenham direito à alguma falta por adoecimento pago que, como sinalizado, a grande maioria não tem. O empregador tampouco tem a obrigação legal de mantê-los empregados durante 14 dias (ou inclusive menos) se determina que não é provável que voltem a trabalhar depois de 14 dias (ou inclusive menos). Portanto, são demitidos se vão ao hospital depois de informar o empregador que tem o vírus. Outra boa razão para não ir ao hospital.

Em outras palavras, existe aqui todo o tipo de desincentivos econômicos importantes para manter a posição de não identificar uma doença, para ir trabalhar, para não ir pro hospital (e não poder ir ao médico). Isso aumenta o risco de transmitir um vírus altamente contagioso para outros, o que tem acontecido e seguirá acontecendo.

Aqui existe outro golpe financeiro para a classe trabalhadora: o cuidado das crianças. As escolas estão começando a fechar. Inclusive onde ainda não existem casos confirmados. A Universidade de Stanford acabou de decidir interromper todas as sessões de aula e direcionar tudo para educação online. Mas o que acontece com o colégio primário e a pré-escola? Ou inclusive com as escolas de ensino fundamental e médio? Quando fecham, as crianças devem ficar em casa. Mas a maioria das famílias trabalhadoras não se pode permitir contratar babás. Nem todo mundo trabalha em uma função ou empresa onde possa “trabalhar de casa”. Mandam as crianças para a casa dos avós, que são mais suscetíveis ao vírus? Com seus filhos obrigados a ficarem em casa, devem faltar no trabalho e arriscar inclusive perder seus empregos. Estamos falando de milhões de famílias com crianças de 6 a 12 anos. E quem sabe por quanto tempo ficarão fechadas as escolas.

Em suma, os salários perdidos devido à auto quarentena voluntária forçada depois dos exames hospitalares, o custo das visitas às salas de emergência dos hospitais (independente de terem seguro ou não), o custo desconhecido dos testes em si (o governo diz que vai reembolsar, mas de cara os trabalhadores não tem esses 1.000 dólares, ou mais, nos seus bolsos), o custo de pagar babás para as crianças em idade escolar quando as escolas fecharem, ou seja, tudo isso resulta em um gasto massivo com o qual a maioria dos trabalhadores não poderá arcar.

Os trabalhadores se dão conta muito rápido de todas estas possibilidades de desastre financeiro e sabem que o vírus significará um grande custo se perdem um dia de trabalho, inclusive se não o fizerem. Assim que seguem trabalhando, esperando se recuperar sozinhos, se negando a fazer o teste dada a possibilidade de perda de trabalho, salários e ingressos, e cruzando os dedos para que os distritos escolares de seus filhos não fechem.

Canais de contágio econômico: cadeias de suprimentos, demanda, deflação de ativos, falta de pagamentos e restrição de crédito

É óbvio o que tudo isso significa para a economia dos Estados Unidos. O consumo dos lares já se estava debilitando no fim do ano passado. A maior parte do consumo foi impulsionado pela aceleração dos valores das ações, que afetam todos os que estão nos 10% superior que possuem ações, ou pela adoção de mais cartões de crédito, que afeta a classe média e baixa.

Mais de 1 bilhão de dólares em dívidas de cartões de crédito é o que impulsionou em grande medida o consumo dos setores de renda média e baixa. Os principais economistas sustentam que o não cumprimento da dívida dos cartões de crédito é somente por volta de 3%, e portanto não é um problema. Mas essa é a média bruta do total de 130 milhões de lares. Quando estes dados são destrinchados, as dívidas de cartões de crédito das famílias de rendas médias e baixas é ao redor de 9%, um número muito alto, mas parecido ao de 2007, quando começou a última recessão econômica.

Depois existe a dívida dos automóveis. Em 2018, é dito que 7 milhões de pessoas precisaram devolver seus carros comprados a crédito. Como no caso dos cartões de crédito, os não pagamentos das dívidas de carros também aumentaram em 2020. Depois também existe a dívida dos estudantes, mais de 1,6 bilhões de dólares. Os não cumprimentos de pagamentos são muito mais altos do que os reportados, já que os não cumprimentos reais (definidos como a alta de pagamento do valor ou dos juros) tem sido redefinidos para outra coisa que não é o não cumprimento real.

Além disso, a probabilidade de demissões a partir de abril é muito alta, devido à crise na cadeia de suprimentos global devido aos cortes de produção e comércio relacionados ao vírus. Mais perda de emprego significa menos renda e, portanto, menos despesas domésticas e mais incapacidade de lidar com os custos do vírus para a maioria das famílias da classe trabalhadora.

Não devemos esquecer também os aumentos de preços de determinados produtos que começam a aparecer agora, tanto na Internet quanto nas lojas. Isso reduz a renda real da classe trabalhadora e, portanto, o consumo também. Enquanto isso, algumas indústrias já estão sentindo a crise e demissões estão ocorrendo em empresas de viagens de todos os tipos (companhias aéreas, cruzeiros, hotéis, entretenimento). Em locais onde o efeito do vírus já é grande, também ocorre uma grande diminuição de frequentadores de restaurantes, esportes e shows, filmes etc.

Os dois principais canais de contágio econômico que afetam o emprego até agora são as reduções na produção e distribuição da cadeia de suprimentos e a demanda local por determinados serviços (viagens, varejo, hospitalidade etc.).

Mas um terceiro canal importante está começando a surgir: a deflação de ativos financeiros em ações, futuros de petróleo e commodities, títulos “tóxicos”, empréstimos alavancados e desvalorizações monetárias.

O colapso dos preços das ações leva a um declínio no investimento e até uma redução na produção. Isso significa mais perda de emprego, menor renda salarial, menos consumo e desaceleração econômica.

O colapso dos preços do petróleo e das matérias-primas também causou demissões no setor de energia. E, mais importante, isso, por sua vez, levará ao colapso do mercado de títulos “tóxicos” de energia, que potencialmente se estenderá a todos os títulos “tóxicos”, empréstimos alavancados e até títulos corporativos de qualidade BBB (que na verdade são títulos “tóxicos” redefinidos, sem bônus do grau de investimento).

Em outras palavras, o colapso das cadeias de suprimentos, da distribuição da produção e da demanda por indústrias nos EUA pode ficar ainda pior se o colapso dos preços do mercado financeiro levar a uma crise geral de crédito. E isso se traduz em uma contração econômica real e geral. Foi exatamente isso que aconteceu em 2008, em uma reação em cadeia semelhante, da crise financeira à crise econômica real.

Os trabalhadores sabem que tudo isso pode levar a tensões econômicas de longo prazo. A curto prazo, consideram os custos se falarem que têm o vírus ou se submetem ao teste: o custo dos cuidados médicos imediatos, o custo dos cuidados infantis, etc. Uma resposta típica e racional é que é melhor suportar e continuar trabalhando.

Isso já está acontecendo. Centenas de milhares de pessoas com e sem sintomas não estão se submetendo aos testes, nem a maioria se oferece de forma voluntária. Exceto aqueles que estão nos navios de cruzeiro e são forçados a serem testados (e na maioria são aposentados e idosos), poucos trabalhadores podem se permitir a esse luxo. Portanto, a taxa de infecção já é muito maior e continuará a aumentar. A quarentena voluntária não funciona muito (novamente, olhe apenas para a Itália ou mesmo para a Alemanha, onde em uma semana os casos analisados aumentaram de 66 para mais de 1000). Portanto, por necessidade econômica e para evitar a devastação econômica pessoal, continuam trabalhando. Mas isso não precisa ser assim.

A resposta política dos Estados Unidos: não há ajuda para a classe trabalhadora

A Política dos EUA foi, é e continuará sendo um desastre. Os cortes de Trump nos serviços sociais e de saúde no passado dificultaram seriamente a resposta inicial. Os testes tiveram que ser enviados para Atlanta e o CDC (Center for Disease Control, NdT) para serem processados. Os primeiros kits de teste costumavam falhar. Somente agora estão chegando aos estados, tarde demais para ter um efeito inicial positivo na contenção da propagação. Aqueles que eram suspeitos de serem expostos a outros infectados foram simplesmente enviados para casa por uma "quarentena voluntária". O orçamento inicial de 8.300 milhões de dólares que o Congresso acaba de aprovar prevê o "reembolso" dos testes voluntários, sem esclarecer se isso também cobre a visita ao hospital de 1.000 dólares ou apenas o custo do teste real.

No entanto, poderia haver uma resposta do governo que apoie os trabalhadores financeiramente e permita que sejam diagnosticados e tratados adequadamente.

Uma resposta política alternativa

Por que o governo simplesmente não diz "faça o teste de graça" e o hospital cobra do governo os custos? Em vez de o trabalhador pagar antecipadamente com dinheiro que ele provavelmente não tem. Por que não há legislação de emergência do Congresso ou dos estados que exija que os empregadores forneçam pelo menos 14 dias de licença médica remunerada, como em outros países? E a lei que garante que os empregadores não possam demitir um trabalhador doente com o vírus por qualquer motivo? Ou créditos fiscais para famílias da classe trabalhadora pelo custo total da assistência à infância - pago a uma babá ou ao trabalhador - se eles tiverem que ficar em casa no caso de um distrito escolar ser fechado?

Embora os cortes nos impostos das empresas e dos investidores sejam quase certamente a resposta oficial do governo, é improvável que sejam adotadas medidas favoráveis à classe trabalhadora, como as listadas acima. Nos Estados Unidos, a classe trabalhadora sempre fica com a pior parte da economia. O Congresso e os presidentes aprovam trilhões de dólares em cortes de impostos (15 trilhões de dólares desde 2001 para investidores, empresas e o 1% mais rico), mas os impostos da classe trabalhadora aumentaram. As empresas com bilhões de dólares em ganhos anuais não pagam nada em impostos e, na verdade, recebem um cheque de subsídio do governo para começar. Basta perguntar à Amazon, IBM, muitos grandes bancos, empresas farmacêuticas e outros!

Pode-se esperar que o vírus tenha um grande impacto negativo no padrão de vida e nos salários de milhões de famílias da classe trabalhadora. Elas terão que arcar com os custos com pouca ajuda do governo. Enquanto isso, empresas e investidores serão resgatados mais uma vez. Nesse processo, os gastos do consumidor, a única área que sustentou a economia em 2019, receberão um grande golpe. Isso significa que há mais de 50% de chance de a recessão começar no próximo trimestre.

De fato, o banco de investimentos Goldman Sachs acaba de prognosticar que o efeito sobre a economia dos EUA no segundo trimestre deste ano será um colapso do PIB para um crescimento de 0%.




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