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Argentina | O caos pela Lei Omnibus na Argentina e o ataque aos bolsos por trás das negociações

Após o anúncio do Ministro da Economia da Argentina e o “parecer-gate”, haverá novas alterações na lei omnibus como resultado de negociações entre os funcionários de Milei, os governadores e os deputados colaboracionistas. O grande complexo exportador ganha e os aposentados perdem. O que fica? Quais são os pontos que permanecem em disputa? Por trás das intersecções entre a Nação e as províncias, um acordo perigoso que vai contra os salários e aposentadorias. A greve e a mobilização que contrastam com a narrativa governamental.

segunda-feira 29 de janeiro | Edição do dia
Javier Milei e a soma de debilidades no Congresso argentino para tratar da lei omnibus. Foto: Telam.

A soma das fraquezas

“O governo de Javier Milei enfrenta um desgaste em tempo recorde. Em apenas 60 dias já há um mal-estar crescente nas ruas que se fez sentir com a greve e os protestos, e um escândalo no Congresso devido ao jogo de toma lá da cá entre o poder executivo e as províncias. Após o “parecer-gate” da lei omnibus, o oficialismo já teve que recuar em vários artigos e capítulos inteiros. E promete mais.

Os blocos colaboracionistas, no seu desespero por ajudar o governo, foram manchados e sua expertise parlamentar foi questionada “por um grupo de improvisados”, como se ouve nos corredores do palácio sobre o partido de Milei, La Libertad Avanza. “Foram feitas modificações que ninguém sabe quem ou como foram feitas, após um parecer já estar assinado”, escreveu no X o cordobês Carlos Gutiérrez do Hacemos Coalición Federal que lidera Miguel Angel Pichetto. O oficialismo lhes alterou o texto depois de o assinarem.

Em paralelo, foram reveladas reuniões em um departamento de Recoleta onde o governo propunha reescrever o parecer com os blocos aliados. Aceitaram o convite o PRO e a UCR. O deputado Oscar Agost Carreño, outro cordobês do bloco de Pichetto, mas que responde ao governador do PRO Rogelio Frigerio (Entre Ríos), compareceu, mas desistiu de participar. Revelou em entrevistas no rádio que ao se deparar com a presença de Federico Sturzenegger, decidiu se retirar da reunião no charmoso bairro portenho.

Os deputados da Frente de Esquerda fizeram uma apresentação em frente ao Congresso detalhando todas as irregularidades da tramitação da lei e pedem que se declare sua anulação

O anúncio do Ministro da Economia Luis Caputo, na noite de sexta-feira, de que retirarão a seção tributária do projeto coroou o revés para Milei. Os “dialoguistas” do peronismo insistem nas negociações: apesar do escândalo, das manobras, das ameaças de deixar as províncias sem dinheiro, das acusações de suborno, estão determinados a salvar a lei omnibus de Milei. Nas próximas horas serão anunciadas novas alterações no projeto, e na segunda-feira haverá reuniões entre os governadores do Juntos por el Cambio de Macri, seus blocos de deputados – que estão fragmentados – e o bloco presidido por Pichetto. Podem se somar inclusive Osvaldo Jaldo, de Tucumán – eleito pelo Unión por la Patria de Kirchner e Fernández – e Martín Llaryora, de Córdoba. O governismo pretende reunir-se na terça-feira. A convocação ainda não foi oficializada, mas do jeito que está, tudo pode acontecer.

Ser e parecer

Foi uma semana difícil para o presidente liberal-libertário: apesar de todos os seus esforços para esvaziar a greve e a mobilização massiva no Congresso, não conseguiu esconder as suas consequências.

A diferença entre ser e aparecer. O discurso do governo de que as urnas lhe davam legitimidade para fazer o ajuste esbarrou na última quarta-feira com metade do país que não votou nele e rejeita as medidas de Caputo, passando pelo DNU (com capítulos como o laboral suspensos pela justiça), até a lei omnibus.

A falta de “consenso social” chegou ao ponto de obrigar a direção sempre pró-governamental da CGT a parar de hibernar, mesmo que por pouco tempo. O que quer dizer muito. A mobilização massiva deixou um aviso a todos: aquele curto período de 12 horas de greve e uma chamada ao Congresso foi suficiente para que o mundo dos precários, informais, aposentados, desempregados, muitos agrupados em assembleias de bairro, tivesse poder para sair e mostrar na rua sua disposição de enfrentar o plano de ajuste de Milei. O comentário do dia foi que naquele mundo estavam os mais desafiadores e combativos da jornada.

O problema do governo (e de todos os blocos que o ajudam hoje no Congresso) é que a cada dia que passa pioram os efeitos do plano de Milei contra as massas. No bolso: uma inflação que não diminui, novos aumentos nos transportes, tarifas de energia, contas pré-pagas, mensalidades escolares, aluguéis, queda no consumo. Uma dinâmica que vai no sentido de decantar novos setores (que votaram nele), de aumentar as fileiras do descontentamento social.

O presidente argentino também não se saiu bem no Congresso. Negociou “com a casta” (política) o mais arduamente que pôde e, ainda assim, caminhava para uma dura derrota da sua “lei de bases”. Agora buscará deixar algo de pé, ao mesmo tempo em que continuará negociando com aqueles que ele mesmo chama de “coimeiros”.

Milei compra sua própria narrativa. Acreditou na ilusão do segundo turno, uma ferramenta típica das democracias capitalistas degradadas para fingir uma legitimidade que não existe e uma maioria fictícia. Os blocos do Congresso que hoje se oferecem para colaborar com o governo escondem-se atrás da mesma história, embora queiram condicioná-la às suas próprias reivindicações. De costas para as forças vivas que se desenvolvem fora do Palácio, o governo, os governadores e os seus deputados movem-se como se estivessem encerrados na bolha do violento algoritmo do TikTok.

Uma lei depenada… pelos grandes exportadores

Neste combo de rua e Congresso, a Lei Omnibus está sendo depenada e seu fim é incerto. Começou como um ambicioso projeto de 664 artigos e delegação de competências para quase tudo e durante praticamente os 4 anos do mandato. Com o primeiro filtro da política parlamentar, resultou num questionado parecer de 525 artigos e restringindo áreas e prazos para a delegação de poderes. Depois do anúncio de Caputo, se eliminarem estritamente o capítulo fiscal (que não contém as alterações na mobilidade das aposentadorias, embora o ministro tenha dito que as retiraria), cai para 424 artigos. Apenas 60% do original. E ainda precisamos saber as novas mudanças que estão sendo escritas neste momento.

Resta mais um filtro: o do recinto e dos novos protestos no Congresso que já estão sendo convocados para quando a lei for votada. Poderia sofrer ainda mais podas e ser reduzida à metade do projeto inicial. Ou menos.

A poda não é apenas quantitativa, mas qualitativa. O capítulo que Caputo teve de retirar foi o coração do seu plano fiscal para atingir a meta anunciada e imposta pelo FMI de reduzir o déficit fiscal para 0%. Em suas palavras “não gastar mais do que entra”. Na vida real e material: ajuste fiscal nos bolsos da maioria. O roteiro do governo é reduzir despesas liquidando aposentadorias e salários (daí a mobilidade e tantos ataques ao serviço público que procuram disciplinar), e aumentar a arrecadação através de retenções (não partilháveis). Além das retenções, os pontos que ficariam de fora caso retirassem o capítulo tributário são: a generosa lavagem de dinheiro e as modificações no imposto nacional (os governadores estão negociando sua manutenção para participar de ambos e ficar com uma parte), a redução de bens pessoais, moratória impositiva, modificação de impostos sobre cigarros (onde há disputa com grandes empresas de tabaco).

Caputo afirmou que também iriam fazer alterações na mobilidade (reajustes) das aposentadorias, o que terá de ser visto quando o governo decidir detalhar o texto final. Caso essas modificações se confirmem, o grande complexo exportador ganha com a eliminação do aumento das retenções, já que espera uma ótima colheita para este ano. São os mesmos que já estão lambendo os lábios para pedir uma nova desvalorização. Os aposentados vão continuar a perder poder de compra: se a atual mobilidade se mantiver, também será uma má notícia. Para Milei, não é mau retirar esse artigo: a liquefação das aposentadorias poderá continuar com a mobilidade herdada do governo do agora Unión por la Patria.

Restam ainda na lei pontos nada menores. Nicolás del Caño, deputado da Frente de Esquerda, alertou após o anúncio de Caputo: “estão vindo atrás dos aposentados, liquefazendo salários por causa da inflação. Pelo salário, o FGS, as empresas públicas, o direito de protesto, a reforma trabalhista (DNU), superpoderes para o monarca. Devemos derrotar este plano nas ruas”. Outro dos capítulos que restam é o da energia, que contém as bases para aprofundar o modelo de roubo das massas. Que um serviço essencial seja o butim dos grandes lucros e que os usuários sofram com mais tarifaços. Continua também a tentativa de endividar novamente o país e em piores condições, o ataque aos trabalhadores do Estado, à cultura, às leis ambientais, e até à escandalosa lei eleitoral para dar rédea solta ao financiamento privado. Isso implicaria que apenas os candidatos escolhidos pelo poder econômico mais concentrado poderiam competir.

Mas nem todos os pontos estão garantidos para o governo. Existem vários artigos que correm o risco de cair no legislativo também, caso não façam parte das alterações acordadas com os dialoguistas. Uma delas é a privatização de 40 empresas públicas. Os blocos colaboracionistas não se opõem completamente: não querem aprovar em “pacote”, mas sim que seja lei por lei, reeditando a legislação menemista. Os únicos que propõem um pacote são “os lilitos”: incluem 8 empresas públicas.

O capítulo da cultura também não está assegurado ao governo, tal como o capítulo eleitoral. Nestas áreas, boa parte dos dialoguistas preferem que esses temas sejam discutidos em sessões ordinárias após 1º de março. A poupança dos aposentados (o Fundo de Garantia de Sustentabilidade, FGS) depende da evolução da negociação: Milei quer liquidá-la e que os “frutos” do leilão vão para a Nação. As províncias pedem uma parte para os seus fundos de pensões.

Os únicos que rejeitam totalmente todo o projeto são o Unión por la Patria e a Frente de Esquerda.

Outro ponto que vai gerar muita polêmica é a delegação de poderes legislativos a Javier Milei. Inicialmente o governo solicitou-a em 11 áreas, depois reduziu para 9. Mas de acordo com as próprias opiniões dos blocos dialoguistas, bastaria que conseguisse em apenas 4 áreas: econômica, financeira, fiscal e administrativa. O governo também quer receber plenos poderes em matéria de energia, tarifas, segurança, previdência e saúde.

Myriam Bregman , que vem sendo a protagonista da rejeição, alertou que se derem emergência e delegação de poderes a Milei, mesmo que por três dias, “não será um gatinho fofinho, será um macaco com uma faca”. A esquerda é a única que sempre se opôs à delegação de poderes, em todos os governos. Uma polêmica com os blocos dialoguistas que negociam áreas e prazos.

Nação vs províncias?

Milei e sua tropa vieram a público dizer após a coletiva de imprensa de Caputo que “o ajuste fiscal não se negocia”. O que quer dizer? Que eles vão aplicar a tesoura por outro lado. Hoje o debate público centra-se na disputa entre o governo nacional e os governadores provinciais. É verdade, o executivo ameaça reter fundos e cortar obras públicas nas províncias. Mas o maior golpe da ameaça de Milei recairá nos ataques aos bolsos dos aposentados e dos trabalhadores públicos (com dissídios muito inferiores à inflação); em cortes em programas sociais, na educação, saúde e cultura. Um plano que se baseia na decisão de prolongar o orçamento de 2023 para este novo ano, o que por si só lhe confere ferramentas discricionárias sobre os recursos do Estado.

Os governadores (e os deputados que lhes respondem diretamente) estão em disputa com o governo porque defendem os seus próprios interesses políticos (está em jogo a continuidade dos mandatos e a legitimidade nas suas províncias) e os interesses econômicos dos setores empresariais. É o caso dos grandes proprietários de terras, empresas cerealíferas e exportadores de soja (que não queriam aumentos nas retenções) de Córdoba ou Santa Fé, liderados pelo Juntos por el Cambio. Ou do governador de Tucumán, Osvaldo Jaldo, do Unión por la Patria, que ordenou seus deputados a que apoiassem a lei omnibus e constituíssem o seu próprio bloco, depois de conseguirem mudanças a favor do grupo Ledesma (da família Blaquier) ao retirar impostos sobre o açúcar, e outras a favor dos exportadores de limão. Milei tem um sim fácil quando se trata de beneficiar o poder econômico, como demonstra a sua própria lei desenhada para que, entre outras, ganhem as grandes petroleiras e o grupo Techint.

Sem ir mais longe, Milei repete “não há dinheiro”, mas recusa a tocar nos benefícios fiscais dos grandes empresários que representam quase 5% do PIB. Daí saem grandes subsídios para setores como a mineração ou o Mercado Livre de Marcos Galperín.

Vários governadores saíram comemorando o anúncio de Caputo e abriram novamente os telefones com o Poder Executivo. Rogelio Frigerio (PRO-Entre Ríos) garantiu: “vamos apoiar as ferramentas que o governo necessita”. E encarregou-se de esclarecer: “Concordamos com o Ministro da Economia que o objetivo de atingir o déficit zero não pode ser uma meta negociável ”.

Maximiliano Pulllaro (UCR-Santa Fé) disse “saudamos a medida do Governo e nos comprometemos a colaborar na busca de uma saída para o país, disponibilizando nossas equipes na busca de pontos de consenso”. O governador radical também esclareceu que a atitude do governo “nos permitirá trabalhar juntos para equilibrar as contas da Nação e das províncias”. Martín Llaryora (Peronismo de Córdoba) declarou estar convencido de que a lei geral “tem que sair”, e apontou as diretrizes de por onde vem sua negociação: “Parece-me que retirar o pacote fiscal na íntegra é um erro”, disse ele neste domingo. O foco está na disputa pela coparticipação na lavagem de dinheiro e no imposto nacional com as províncias.

Os governadores vão negociar mais ou menos para levar uma parte para os seus cofres provinciais, mas as suas declarações mostram que estão alinhados com a meta do ajuste fiscal do governo, o que implica o ataque aos bolsos das massas. É o mesmo caminho que já escolheram para as suas próprias províncias, tanto as amarelas (do PRO de Macri) como muitas das lideradas pelo Unión por la Patria.

Não é um artigo, é todo o plano

A disputa entre a Nação e as províncias, as negociações do La Libertad Avanza com os blocos colaboracionistas do Congresso, são a confirmação de que não se trata de reconfigurar este ou aquele artigo da lei omnibus que já não é omnibus. Para aqueles que vivem do trabalho ou trabalharam a vida inteira para sofrer uma aposentadoria de fome, o foco do problema está no plano econômico do governo. Com uma motosserra e uma liquefação do poder de compra, combinada com um ataque aos direitos trabalhistas e aos protestos sociais, Javier Milei e aqueles que o ajudam estão tentando fazer novas mudanças estruturais contra as massas.

Por outro lado, há forças sociais em movimento que pretendem confrontar as medidas de Caputo, o DNU e a lei omnibus. Os protestos prometem continuar e já aparecem vozes com uma conclusão e uma mensagem de ação. “Esta greve não será suficiente, precisamos de uma greve geral” foi uma das canções do dia na quarta-feira (24). As dificuldades que tanto o governo Milei como o Congresso já demonstram, poderão acelerar os tempos, fazendo com que a rejeição ao plano econômico avance e ganhe protagonismo.




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