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DOSSIÊ 20 DE NOVEMBRO | O Modernismo, o lugar do negro e o racismo como (não)opção analítica

sábado 21 de novembro de 2015 | 00:00

Seus escritores, seus poetas, com uma incrível paciência, tentaram explicar-nos que nossos valores não colavam com a verdade da vida deles, que eles não podiam rejeitá-los nem assimilá-los completamente. Em geral, isso queria dizer: vocês fazem de nós monstros, o seu humanismo nos afirma como universais e as suas práticas racistas nos particularizam. (SARTRE, Jean-Paul, 1961).

O contexto social do modernismo de 1a. fase

Durante o início da década de 30, motivados pelo desenvolvimento industrial e pela necessidade de incorporação dos negros ao mercado de trabalho nas grandes metrópoles, a burguesia brasileira careceu de desenvolver uma série de ideias que colocassem um lugar ao negro na cultura nacional. Entretanto, não era apenas a contribuição cultural da população negra que permanecia ausente do conjunto de ideias formadoras da nação. A própria ideia de nação ideia de nação bebia sua imagem de fontes europeias e não conseguia, portanto, construir um cenário cultural e ideológico autônomo que desse lugar a um desenvolvimento parcialmente autônomo da própria sociedade.

Do fim da escravidão em 1898 à década em questão, a localização do negro seguia submetida a um conjunto de ideias que legitimavam uma manutenção velada de escravidão, com um regime de trabalho que se mantinha em séculos distante do trabalho assalariado.
No campo das ciências sociais, os primeiros autores a delegarem uma localização a população negra que a responsabilizasse por aspectos culturais da nação brasileira o faziam ao descrevê-la como de passiva servidão, safadeza ou malandragem. É comum em "Casa Grande e Senzala" de Gilberto Freyre, encontrar referências aos negros como um povo que se permitiu a"miscigenação" como por vontade própria, que não se revoltou e aceitou seu destino de braços abertos. Consequentemente, o autor é capaz de afirmar em vários momentos de sua vida que, na medida em que a sociedade se miscigenou, o racismo deixa de existir, pois todos tem sua influência negra, judaica, árabe, etc., e portanto se interrelacionam de maneira igualitária.
Bastam alguns relatos da escravidão para provar o estupro como originário dos negros mestiços e as revoltas constantes como constitutivas da recusa a uma vida escrava.


São muitos os setores do movimento negro que desde a década de 1960 atacam as ideias de Freyre. Porém, pouco se analisam o conjunto das ideias constitutivas do grupo ideológico ao qual Freyre se remetia. Freyre compunha, ainda que distante do eixo São Paulo, o Movimento Modernista brasileiro.

Um importante autor do Modernismo brasileiro, aliás, seu fundador, foi Mário de Andrade, poeta e romancista brasileiro. Sabe-se que Mario jamais foi um poeta autônomo, e que a publicação de suas obras dependiam de financiamento por parte de importantes setores da elite nacional. Sua obra seguiu importantes movimentos subjetivos, que cabe analisar para compreender de maneira mais profunda o véu cultural inaugurado pelas diferentes vertentes do modernismo brasileiro.

Análise do poema “Garoa do meu São Paulo”


Garoa do meu São Paulo,


  •  Timbre triste de martírios
  •  Um negro vem vindo, é branco! Só bem perto fica negro, Passa e torna a ficar branco.
 Meu São Paulo da garoa,

  •  Londres das neblinas fina
  •  Um pobre vem vindo, é rico! Só bem perto que fica pobre, Passa e torna a ficar rico. 
Garoa do meu São Paulo,

  •  Costureira de malditos
  •  Vem um rico, vem um branco,
    São sempre brancos e ricos...
Garoa, sai dos meus olhos.
    
A., Mario in: Lira Paulistana, entre 1930 e 1945.

    Numa análise imediata, o poema trataria de uma característica da São Paulo dos anos 1930, envolta em uma garoa real que geraria uma confusão de sentidos óticos e mentais, onde se passa a confundir negros e brancos, pobres e ricos. É possível, entretanto, que se aprofunde essa análise para um ponto de vista da teoria das raças e da"miscigenação".
Essa garoa passa, num primeiro momento do poema, a ser portadora de dotes característicos ao canto triste, canto que ganha ritmo e timbre pelo uso dos “ti”s, sonoridade comum aos tambores e pandeiros que aparecem na música

    “Tristeza e Pé no Chão”1. É característica comum a esses sambas que possuam um ritmo vigoroso, que denota sua tristeza pelo timbre agudo dos pandeiros e tamborins e a letra de lamento. Neste momento, da garoa entristecida, “de martírios”, o negro confunde-se em branco, de perto volta a ser negro, e de longe volta a se confundir. Dentre as possíveis referencias que todo poema pode trazer, a depender de seu leitor, não é possível que se desassocie a relação entre o samba miscigenado e o negro miscigenado, tese defendida comumente pelo modernismo e pela cultura brasileira posterior, como chega a citar Vinícius de Moraes e Baden Powell na famosa letra de “Samba da Bênção (1967)2 - “Porque o samba nasceu lá na Bahia e se hoje ele é branco na poesia, ele é negro demais no coração”. Tanto na referência musical quanto na referência poética, ocorre uma distância entre as características negras e brancas desses sujeitos (música ou homem que se aproxima). Para a persona de Lira Paulistana essa distância é visual, pois perto e longe se enxergam etnias diferentes. Para a persona de Samba da Bênção é uma distância entre a palavra e a emoção (poesia e coração). Em ambos, essa distância existe porém dentro de um mesmo corpo. O mesmo homem que de longe é branco, de perto é negro, e apenas de perto. A poesia, ou seja o aspecto latente da música, é branca, enquanto apenas de perto – na emoção, subjetiva e pessoal – é negro.
No segundo momento, o sujeito passa a ser a cidade em lugar da garoa. A humanização gerada pela comparação à voz e ao timbre, perde lugar para a comparação entre metrópoles, para a qual Mario escolhe especificamente a que mais enriqueceu por trás da colonização do Brasil. A “São Paulo da garoa” se assemelha a “Londres das neblinas finas”.

    Aqui volta a aparecer o paradoxo da diferenciação da metrópole. Ao mesmo tempo que se busca criar um caráter nacional, referencia-se na trajetória das vanguardas europeias. Ao mesmo tempo que se visa a descoberta dos hábitos e da cultura nacional, se encontram marcas fundamentais da influencia cultural europeia. Nessa estrofe todos querem ser ingleses, de longe parecem ricos, tentam mostrar-se assim, mas de perto as evidencias invisíveis ao olhar distante se escancaram, e todos se provam novamente pobres habitantes de uma colônia latina.
A garoa volta a aparecer como o sujeito da última estrofe. Nesta, se cria uma imagem. Homens e mulheres se cruzam na cidade com seus guarda-chuvas de diferentes cores, se costuram em meio a seus caminhos individuais. O tecido é maldito por não ser original. O que se tece é o que se vê de longe. Torna-se um tecido maldito de aparências superficiais

    Muito distante da tese de Freyre de que a negritude desaparece ao passo que se miscigena, Mario cogita a possibilidade de que a força da opressão ideológica colonial submetesse o negro ao querer ser branco, mas que sua raça fosse impossível de se esconder de perto. O modelo europeu criaria um aprisionamento imaginário onde apenas aquele tipo de ser humano fosse possível, ainda que esse homem fosse irrealizável não pela falta de vontade do indivíduo de tornar-se ele, mas pelas características impossíveis de se esconder a um olhar atento. A raça não desaparece, portanto, como em Freyre. Ela não existe como uma referência a um período passado da escravidão, mas como um dilema da modernidade, apenas tentando se esconder por trás da tentativa coletiva e individual de tornar-se branco, rico, europeu.
Ainda que em sua análise das relações raciais presente no poema citado, Mário avance em relação a concepção apresentada sociologicamente por Freyre, o negro mantem-se, nesse paradigma, como uma vitima inaudita de sua opressão. Não existe nele revolta à maqueação coletiva, manifestações de reivindicação cultural ou momentos de escape em que se reivindica negro. A sua posição de vitima o coloca em uma posição de quase reprodução de sua própria opressão.
Não era segredo para Mário, tampouco para Freyre (no qual o negro escravo era também uma vítima amedrontada apenas), que na mesma década do auge de sua produção cultural, organizavam-se massas negras em movimentos identitários fortíssimos, representados por diversos jornais da década de 1920, como

    O Alfinete e o A Voz da Raça, este último que se mantém massivo até meados da década de 1970. Na década de 1930 é também fundada a Frente Negra Brasileira, que ainda que de direita, reivindicava elementos importantes de identidade negra e que apenas no Estado de São Paulo já contava com mais de 30 mil membros.

    Obviamente, nesta fase de sua poesia, 
Mário realizou importantes movimentos subjetivos. Passou do autor do “véu arlequinal”, exultante da modernidade brasileira, para uma importante denúncia do caráter racista objetivo da nação que se fundava, de maneira profundamente crítica aos novos ditames do Estado Novo. Em suas correspondências com Drummond, Mário afirma veementemente seu arrependimento em ter participado do movimento paulista de 1932, que visava a federalização do Estado de São Paulo separado do Brasil. O movimento subjetivo que “gira” Mário de uma posição elogiosa à modernidade (Pauliceia Desvairada, 1922) à uma posição crítica dela (Lira Paulistana, 1946) tem para esse autor uma conexão intrínseca com a visível manutenção do racismo na mais avançada metrópole brasileira.

    O negro que finge ser branco, apesar de representar uma compreensão passiva da maneira como o negro lida com o racismo que sofre, apresenta uma visão clara que rompimento com as teses defendidas por Paulo Prado, por exemplo (um dos financiadores de sua primeira fase poética), ou de Freyre, onde a miscigenação prima como ótica de análise da realidade.

    Cabe, agora, identificar o avanço desse movimento em outros “cânones” brasileiros. Afinal [1].

    [1] Esse texto é parte de um artigo desenvolvido pela autora que ainda não está disponível na íntegra.




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