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CRÔNICA | O Estado versus as professoras: o que queremos (e como podemos) com a educação

Crônica de um estágio em ensino remoto.

MaréProfessora designada na rede estadual de MG

sábado 27 de março de 2021 | Edição do dia

Duas professoras com sobrecarga. Uma delas trabalha em duas escolas e faz outras incontáveis coisas. A outra é professora de dança, tutorada pela primeira no estágio da licenciatura em biologia, sua primeira experiência prática com a educação. Trágico: a tarefa é observar e descrever, mas o quê? Não há alunos, não se pode os ver, os ouvir.

O que existiu foram reuniões da escola entre professores e outros profissionais, lives de “formação” (promovidas por um governo que não garantiu e segue sem garantir o básico para um Ensino Remoto minimamente eficiente, mas quer ensinar aos professores valores como a paciência e a empatia), e e-mails... muitos e-mails.

Nos e-mails, documentos e mais documentos, orientações e planilhas, às vezes incompreensíveis. Tudo isso recebido pela professora que trabalha em duas escolas. Todos por parte de uma só escola. Com que tempo ler tudo? Como avaliar e criar critérios para filtrar o que é indispensável? Talvez se ela fosse uma máquina, como essas que estão mediando o processo de educação entre professores, escola e estudantes; talvez se ela tivesse algoritmos como a plataforma de e-mails; talvez assim ela pudesse.

“Rindo de nervoso”, ela disse.

A outra professora ri pelo mesmo motivo, lamentando: “e eu ainda nem pude observar o processo de ensino/aprendizagem dos estudantes”. No meio disso tudo, uma atividade não feita. Era para fazer? Aliás, que atividade? Ela relê todos os e-mails, revisita a plataforma da universidade... Não encontra. Será que está naqueles anexos de 65 ou 220 páginas não abertos por falta de tempo? Não sabe. A outra professora também não sabe. Os colegas também aparentemente também não sabem. Alguém sabe? Os estudantes talvez saibam. Será? Evidente que não, eles mal puderam receber os PETs impressos devido à "onda roxa".

Ninguém sabe.

Sorte da orientanda de biologia já ter conseguido desromantizar a educação há alguns anos. Do contrário, estaria ainda mais frustrada. Ela se lembra das aulas de política educacional: como surge a escola, qual o contexto da educação como política de Estado, que Estado é esse (neutro? quais interesses e premissas o regem?). Retoma na memória um curso começado - mas nunca terminado - e aquela outra palestra: a educação é pensada pelo Estado (no sistema vigente) como elemento disciplinador, papel também cumprido pela família.

Os estudantes são, para o Estado, objetos que precisam aprender a ser peças de uma engrenagem, ficar em fila, falar pouco, obedecer as autoridades. A depender da época e das necessidades da classe dominante daquele país, também aprender contas básicas, ler e interpretar manuais, talvez saber um pouco sobre química, física, o elementar sobre saúde, etc. Mas na primeira grande crise, que voltem às contas básicas, aprendam a operar as novas tecnologias e coloquem-nas para gerar lucro.

Para as professoras não. Para elas os estudantes são o futuro, têm direito a ter contato com todo o conhecimento que existe no mundo, podem e devem ser sujeitos da sua própria libertação. O Estado versus as professoras.

A futura professora não conheceu os estudantes ainda, mas conheceu um pouco a professora, a escola, os demais professores e funcionários. Sobretudo, ela experimentou a forma como o Estado (mais especificamente, o governo do estado de Minas Gerais) lida com todos envolvidos no processo de ensino e aprendizagem.

A educação poderia ser libertadora, mas está presa sob mil amarras a uma lógica de manutenção das escolas como extensões dos gabinetes empresariais, aprofundando isso ainda mais nos últimos anos.

A educação tem sido uma máquina de estafar as pessoas, é isso que ela sente.

Há anos atrás, a jovem futura professora, para atuar contra essa lógica, destruiu em si toda visão idealizada da educação, mas sem soterrar toda confiança no potencial das peças dessa engrenagem.

Muitas pessoas têm desacreditado da humanidade, logo se vê. Ela, diferentemente, acredita nas professoras, nas auxiliares da educação, nas trabalhadoras e trabalhadores mais precários, negros e negras, nos estudantes, com sua juventude tolhida por uma tragédia social, com suas famílias em situações vulneráveis, todos que seguem trabalhando sem auxílios digitais, equipamentos de proteção individual e salários decentes. Essas pessoas e tantas outras, horas mais horas menos, não aceitam o papel de objetos. São sujeitos e têm em si a capacidade de transformar tanto a sociedade como a educação, num processo dialético.

A universidade, como extensão da sociedade e pelo papel social que lhe é atribuído, cobra dos jovens licenciandos respostas concretas. Mas essa estudante aqui se nega a oferecer fórmulas mágicas, de “soluções” parciais que no fim perdem sua concretude nos meandros de uma estrutura rígida demais. São meros placebos, uma vez que não analisam as estruturas mais profundas e intocáveis, cujas contradições geraram essa mesma crise em que nos encontramos. Quem tem propostas não pode decidir pra onde vai a verba, qual plataforma vai ser, qual o plano de retorno diante da vacina... Nem mesmo podem efetivamente dar aula, agora é a TV quem faz isso.

Mas a jovem futura professora se permite inalar a brisa de ar fresco que corre cada vez que uma nova ideia aparece. Isso faz crer que, assim como ela, há esperançosos e otimistas. “Como implementar?" - eles sempre discutem - "Não sei, mas seria bom.” - às vezes concluem. Seria mesmo... Ah, se essas ideias tivessem mais espaço para serem implementadas. Ah se fossem os trabalhadores da educação e os estudantes a definir as regras do jogo, e não os altos funcionários dos vários governos, há anos separados do “chão de fábrica” da escola, se negando a enxergarem as mazelas da educação com a mesma sensibilidade do batalhão de pessoas que as sentem na pele todos os dias.

Talvez a burocracia universitária considere “político demais”, utópico ou impossível. Mas a proposta que essa licencianda de biologia traz é que a comunidade escolar se auto-organize em cada escola e cada região, elegendo representantes de professores, ASBs, estudantes, familiares, etc. E que, com a força da mobilização de tantas pessoas envolvidas, imponham o seu conteúdo e a sua forma de gerir as escolas e a educação. Não há dúvidas de que somente essas pessoas poderiam responder às demandas mais complexas, como os problemas de acesso a tecnologias digitais, a alimentação de estudantes carentes, os currículos pré-estabelecidos, os novos problemas de saúde causados pelas horas de trabalho em frente a um computador, dentre tantos outros.

O horizonte das futuras professoras e professores não pode ser o de ler inúmeros e-mails, implementar o mesmo conteúdo para todos os estudantes de um estado tão extenso, tirar dúvidas dos estudantes por mensagens que nunca chegam e temer pela própria saúde, dos colegas, estudantes, familiares, etc. Os estudantes de universidades como a UFMG precisam se insubordinar quanto à perspectiva de trabalho cada vez mais precário, e usar todas as suas qualidades para cumprir um papel social muito superior ao que determina o Estado: o de contribuir para que as pessoas vivam em todo o seu potencial.

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(Agradeço à colega e camarada Júlia Santana pela contribuição na crônica.)




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