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TRIBUNA ABERTA | O (Des)acordo sobre a Lei - Uma Reforma Trabalhista para temer

domingo 7 de maio de 2017 | Edição do dia

A função do Direito do Trabalho numa política econômica liberal é clara: interferir minimamente na relação entre capital e trabalho de modo a garantir a competitividade empresarial sem, contudo, levar a um estado limite em que a classe trabalhadora não veja outra saída senão a revolta.

Esse lugar restrito reservado aos direitos trabalhistas foi anunciado no Programa "Uma Ponte para o Futuro" [1], de 2015: "(...) é fundamental (...) na área trabalhista, permitir que as convenções coletivas prevaleçam sobre as normas legais". A formalização da proposta veio em dezembro de 2016, com o encaminhamento ao Congresso Nacional do Projeto de Lei nº 6787/2016, mais conhecido como PL da Reforma Trabalhista, que alterava 7 (sete) artigos da CLT.

Dentre outras, destaca-se a seguinte justificativa: a "(...) valorização da negociação coletiva (...) vem no sentido de garantir o alcance da negociação coletiva e dar segurança ao resultado do que foi pactuado entre trabalhadores e empregadores." Ainda, o referido PL atribui à falta de diálogo a existência de conflitos trabalhistas:

(...) temos um nível elevado de judicialização das relações do trabalho (...). Na grande maioria das ações trabalhistas a demanda reside no pagamento de verbas rescisórias. A falta de canais institucionais de diálogo nas empresas que promovam o entendimento faz com que o trabalhador só venha a reivindicar os seus direitos após o término do contrato de trabalho. Com isso, problemas que poderiam ser facilmente resolvidos no curso do contrato de trabalho vão se acumulando, para serem discutidos apenas ao término do vínculo empregatício, na Justiça do Trabalho.

Em 26 de abril de 2017, foi aprovado na Câmara dos Deputados o novo teor do PL nº 6787/2016, com a alteração de 200 (duzentos) dispositivos celetistas.

Defensores da medida alegam que ela ajudaria a ’desafogar’ o sistema judiciário e proporcionaria a valorização da autonomia da pessoa. Segundo o ministro do trabalho, "a atualização das leis trabalhistas representa um "momento histórico" para o país" [2].

No entanto, a trajetória das práticas trabalhistas no Brasil contradiz as expectativas explicitamente expressas pelo segmento político-patronal. Isso porque a análise da atuação dos órgãos de regulação do trabalho - Ministério do Trabalho (MT), Justiça do Trabalho (JT) e Ministério Público do Trabalho (MPT) - permite constatar que direitos fundamentais já são negociados entre as referidas instituições e empresas há décadas, sem queda do número de ajuizamento das reclamações.

Na esfera executiva, as transações de direitos são feitas diretamente pelos inspetores do trabalho quando das subautuações e da omissão em embargar obras e em interditar máquinas e equipamentos que apresentam riscos graves e iminentes à saúde e à vida dos trabalhadores. Da perspectiva política, os valores ínfimos das multas [3], bem como o reduzido quadro de auditores-fiscais do trabalho [4], entre outros, também são incentivos para o descumprimento das obrigações trabalhistas. Na esfera judicial, direitos são renunciados por meio de acordos e concessões promovidas, inclusive, pelo Conselho Nacional de Justiça [5] e, no âmbito do MPT, destaca-se o baixo número de Ações Civis Públicas ajuizadas em contraposição aos milhares de Termos de Ajustamento de Condutas pactuados.

Esses acordos sobre as leis, ao contrário de promoverem o entendimento, geram maior distanciamento entre segmentos patronal e operário, eis que implicam em perdas substanciais para as classes trabalhadoras e em estímulo para reincidência e recalcitrância em cumprir obrigações consideradas como mínimas existenciais por parte dos empregadores. A opção política de transacionar direitos visa privilegiar a segurança jurídica da empresa e a manutenção do status quo em detrimento da garantia aos trabalhadores dos direitos social-trabalhistas legalmente estabelecidos.

Nesse contexto, a prevalência da lei sobre a negociação lato sensu, isto é, entre Estado, sindicatos, empregados e empresas, funciona de modo a estabelecer patamares mínimos que servem de balizadores a indicar e a limitar maiores transgressões legais.

É necessário enfatizar que as convenções coletivas - acordo normativo pelo qual os sindicatos estipulam condições de trabalho aplicáveis à categoria a que se referem - são amplamente praticadas. No entanto, em tese, apenas são consideradas válidas as cláusulas mais benéficas ao trabalhador em relação àquelas já previstas na legislação, de modo a assegurar a existência de direitos mínimos indisponíveis que poderão ser garantidos pela atuação dos agentes estatais.

Invertendo a lógica, a prevalência do negociado sobre o legislado significa um inédito retrocesso social-trabalhista no país e se traduz na desregulamentação do Direito do Trabalho por via indireta. Isso porque, sem revogar a legislação, permite que ela seja desconsiderada e descumprida com o aval do Estado, que se exime da obrigação de resguardar direitos existenciais conquistados ao longo de anos. O trabalhador é colocado à mercê das condições de trabalho que forem acordadas com o empregador.

A referida lógica parte da premissa de que empregado (representado pelo sindicato ou por um grupo de representantes na empresa) e empregador teriam igualdade de condições de negociação. Desconsidera, pois, o princípio da hipossuficiência do trabalhador, basilar do Direito do Trabalho e justificado pelo fato de o empregado ser desprovido dos meios de produção e, portanto, necessitar da venda de sua força de trabalho para sobreviver. Esta a razão única pela qual o trabalhador se subordina a condições exteriores e adversas impostas pelo empregador, que possui meios de subsistência, superioridade econômica e jurídica.

A hipossuficiência se estende aos sindicatos, que enfrentam as mais diversas dificuldades nas tentativas de negociação com as empresas, como a fragmentação das representatividades políticas, o imposto sindical, a pulverização ocasionada pela terceirização, a despolitização dos trabalhadores, a corrupção, dentre diversas outras. Destarte, o elevado número de convenções coletivas contendo cláusulas que restringem ou mesmo retiram direitos, mormente quanto às matérias específicas previstas como passíveis de negociação no PL da Reforma Trabalhista, em especial as horas extraordinárias.

Destaca-se ser essa - as horas extras - a matéria que teve maior incidência na segunda instância e no TST (Tribunal Superior do Trabalho) em 2015, originando um total de 95.725 reclamações trabalhistas só naquele ano [6]. A jornada diária de 8 (oito) horas assenta-se não só numa conquista político-social da classe trabalhadora pelo direito de viver para além do trabalho, mas também no fato de que a sobrecarga consiste em causa de aumento dos índices de acidentes do trabalho [7], de modo que a flexibilização da lei nesse quesito traz consequências para toda a sociedade [8].

Os assuntos mais recorrentes na primeira instância em 2015 - Aviso Prévio (892.488 processos), Multa Rescisória (710.989 processos) e Multa de 40% do FGTS (616.245 processos) [9] - tratam de verbas atinentes ao término da relação de emprego, de modo que de nada adiantaria a implementação dos referidos "canais institucionais de diálogo nas empresas". Ressalte-se que os Termos de Rescisão de Contratos de Trabalho devem ser homologados no sindicato da categoria ou no órgão do Ministério do Trabalho [10], ocasião em que há nova oportunidade de quitação das verbas devidas.

Entre os anos de 2005 a 2015, a média de conciliações no país foi de 42,5% [11] e, em 2015, foram pagos a reclamantes mais de 17 bilhões de reais, dos quais mais de 8 bilhões ou 48,15% foram quitados em acordos ou pagos "de forma espontânea" pelos empregadores [12][13]. No mesmo ano, apenas 6,4% das ações em fase de conhecimento foram consideradas improcedentes [14]. Esses números indicam que grande maioria das reclamatórias propostas na Justiça do Trabalho decorrem de valores devidos e não pagos pelos empregadores, que necessitam do incentivo do poder judiciário para cumprirem suas obrigações trabalhistas pecuniárias.

Observa-se, pois, que grande parte dos conflitos trabalhistas são originados pela ausência do adimplemento das obrigações por parte das empresas, numa verdadeira síndrome da violação dos direitos, em oposição à "síndrome da reivindicação dos direitos" alegada pelo então presidente do TST no VIII Encontro Nacional do Poder Judiciário em 2014 [15].

A composição amigável entre empregado e empregador e consequente redução da judicialização dos direitos defendida pelo segmento político-patronal somente pode ocorrer a partir da mudança de comportamento das empresas. Alternativas outras, como a flexibilização das leis por meio da legalização da prevalência do negociado sobre a lei, ao mesmo tempo incentivam e mascaram as infrações, intensificando os conflitos.

Nesse sentido, a omissão do Estado em tutelar direitos básicos dos trabalhadores e em aplicar sanções que impliquem em prejuízos reais às empresas também se traduz em incentivo para a continuidade da prática irregular, pelo fato de o valor pago pela infração legal ser inferior àquele que deveria ser pago a título de cumprimento das normas de legislação e de saúde e segurança do trabalho. Exemplificativamente, cita-se a penalidade administrativa imposta quando da ausência de pagamento da multa em valor equivalente ao salário ao trabalhador por ocasião do descumprimento do prazo legal de pagamento das verbas rescisórias. A multa é de R$ 402,53 [16] independentemente do número de empregados prejudicados. Ainda, pode ser paga com 50% de desconto [17].

Em um caso real ocorrido em 2015, a empregadora atrasou o pagamento da rescisão de 47 (quarenta e sete) empregados. Supondo que cada um recebesse o salário mínimo nacional de R$ 788,00 vigente à época, o montante que ela deixou de pagar foi R$ 37.036,00. Em novembro de 2016, ela recorria administrativamente, de decisão que lhe impunha penalidade no valor total de R$ 805,06 [18][19] , valor 46 (quarenta e seis) vezes menor do que o devido.

Ainda, em todas as esferas trabalhistas, não há, via de regra, imposição do pagamento de indenização pelos danos causados ao trabalhador, que precisou reclamar legalmente para ter seu direito adimplido, às empresas concorrentes cumpridoras das obrigações, que sofreram concorrência desleal, e à sociedade, que arca com o custo da existência e da manutenção do poder judiciário trabalhista. A consequência lógica é o aumento das ações reclamatórias.

A importância da prevalência teórica da lei reside no fato de ela indicar limites mínimos que devem ser assegurados aos trabalhadores, inclusive no que se refere a normas de saúde e segurança do trabalho. A supressão desse limite legalmente imposto significa a radicalização da política liberal e coloca em risco o próprio status quo.

Em suma, a análise da política de Estado adotada quanto ao Direito do Trabalho demonstra que a prática trabalhista não só já privilegia a segurança jurídica do segmento patronal, como também promove, em última análise, a desigualdade social. O operariado já não tem, a despeito de lei, a garantia de seus direitos previstos constitucionalmente.

Nesse contexto, os direitos conquistados e reunidos na Consolidação das Leis do Trabalho - CLT devem ser considerados como irrenunciáveis e indisponíveis, com status de cláusulas pétreas, sendo que alterações e negociações poderão ser admitidas desde que delas decorram benefícios ao trabalhador. Caso contrário, a legalização do descumprimento deliberado da legislação num país com cerca de 11,8 milhões de pessoas desempregadas (PNAD, 2016) e, portanto, sem meios de auto sustento, significa obrigar sua submissão a qualquer condição imposta, fazendo retroceder às épocas ápices da miserabilidade da classe trabalhadora no país..

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[1] Obtido em http://pmdb.org.br/wp-content/uploads/2015/10/RELEASE-TEMER_A4-28.10.15-Online.pdf. Acesso em 31 de Janeiro de 2017.
[2] Obtido em http://trabalho.gov.br/noticias/4094-ministerio-do-trabalho-apresenta-propostas-de-modernizacao-da-legislacao-trabalhista. Acesso em 11 de Janeiro de 2017.
[3] que não têm seus valores atualizados desde 1997.
[4] Atualmente, são 2477 auditores-fiscais do trabalho para todo o país. Em 2014, esse número era de 2463, o que correspondia a 1570,8 empresas por inspetor.
[5] Sob o lema ’Conciliar é Legal’, o Conselho Superior da Justiça do Trabalho aprovou, em setembro do ano passado, resolução que normatiza os procedimentos de mediação e prevê a criação de Centros de Conciliação, o que indica o caráter predominantemente conciliatório do órgão, em detrimento a uma política de enfrentamento da ilegalidade.
[6] Relatório Geral da Justiça do Trabalho 2015.
[7] “[...] a sobrecarga de trabalho é um das mais importantes causas de acidentes do trabalho em todo o mundo. Estudos realizados na Europa e nos Estados Unidos comprovam o aumento de acidentes com a elevação do número de horas de trabalho, chegando ao máximo por volta das 11h e caindo por volta do meio-dia, com a mesma distribuição no período da tarde. Além disso, há casos de diminuição em 60% do número de acidentes quando se reduziu em determinada fábrica de 12 para 10 horas a jornada de trabalho”. Disponível em: <http://www.conjur.com.br/2009-out-2...> . Acesso em: 18 jul. 2016.
[8] A exemplo da oneração da Previdência Social.
[9] Idem 5.
[10] Obrigação devida para todos os contratos de trabalho com duração superior a um ano.
[11] Obtido em http://www.tst.jus.br/conciliacoes1. Acesso em 24 de Janeiro de 2017.
[12] Mais especificamente, R$17.444.524.839,77 e R$8.399.803.923,45.
[13] Obtido em http://www.tst.jus.br/documents/10157/4a29c1b4-1aa4-4ed2-8645-af8f4c66d689. Acesso em 24 de Janeiro de 2017.
[14] Relatório Geral da Justiça do Trabalho 2015. Seção 4.
[15] Obtido em: http://www.tst.jus.br/home?p_p_id=15&p_p_lifecycle=0&p_p_state=maximized&p_p_mode=view&_15_struts_action=%2Fjournal%2Fview_article&_15_groupId=10157&_15_articleId=11392200&_15_version=2.1 Acesso em 30 de Janeiro de 2017.
[16] Portaria nº 210 do MTb.
[17] Todas as multas administrativas podem ser pagas com esse desconto, se recolhidas no prazo de 10 (dez) dias a contar do recebimento da notificação.
[18] Valor dobrado, ante a condição de reincidente da empresa infratora, nos termos da supracitada Portaria nº 210 do MTb.
[19] Processo administrativo nº 46258.002917/2015-12.




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