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CINEMA | "Nem um lugar para ir" ou do cinema político alemão

Trata-se de um filme duro, bruto, cruel e realista com a existência humana vivida pela protagonista da película e nos transmitida de maneira implacável.

Romero Venâncio Aracajú (SE)

terça-feira 23 de agosto de 2016 | Edição do dia

“Como pensar algo que é sempre mais abrangente do que nossa realidade e nosso pensamento?”(Leandro Konder. In: Marx e a morte)

Começo lembrando um pequeno ensaio do filósofo Paul Ricouer dedicado a peça de Sartre “O diabo e o bom Deus”. O pensador francês se pergunta: como é possível ser tocado mortalmente por um trabalho artístico que vai de encontro ao que lhe é mais caro, a saber, sua fé religiosa e mesmo assim manter-se convicto depois de tudo e de todo esse “furacão”? Cito este questionamento por entender que o filme alemão de 1999 “Nem um lugar para ir”, corresponde a algumas coisas que estão subliminares na pergunta de Ricouer. Trata-se de um filme duro, bruto, cruel e realista com a existência humana vivida pela protagonista da película e nos transmitida de maneira implacável. Sabe-se que o filme tem algo de biográfico vivido pelo diretor Oskar Roehler (o filme tem por base o suicídio de sua mãe, a escritora alemã Gisela Elsner em 1992). Sabendo disto, percebe-se o quanto o filme é mais delicado e difícil do parece ser… Vi numa sentada só e fiquei atormentado por toda a narrativa, do seu inicio ao desfecho trágico final. Um grande tema e um grande filme, sem dúvida alguma.

Berlin, novembro de 1989: queda do muro separou as duas Alemanhas por mais de duas décadas, muita festa nas ruas e a protagonista do filme (a escritora Hanna Flanders) é uma das poucas pessoas a não comemorar e ainda mais, lamenta a queda do muro e faz previsões tristes como consequências do fato. Descrição simples para uma história mais complexa e com sutilezas que engrandecem o filme. A queda do muro de Berlin cai sobre a vida da escritora de maneira implacável e cruel.

O processo de queda é a pedagogia da narrativa de maneira inexorável até o fim. O filme se apresenta todo o tempo como uma “crônica de uma morte anunciada” ou como se fossemos levados a perceber cena a cena a decadência de um ser por razões externas (as mudanças políticas radicais do país) e as fragilidades visíveis no comportamento da protagonista. O diretor Oskar Roehler conseguiu articular de maneira segura e sem maniqueísmos, uma situação dupla: a alegria coletiva e a tragédia pessoal. Ele nos convida a entender que não existe problema pessoal desvinculado das condições sociais e políticas e que estas mesmas relações têm impacto na vida pessoal de cada um de nós (no caso do filme, na vida da protagonista).

O filme já começa impactante: Hanna Flanders (escritora famosa da ex-Alemanha Oriental) com dois cigarros nos dedos e um vidro de barbitúrico falando em suicídio com alguém do outro lado do telefone enquanto ver na televisão as comemorações pela derrubada do muro de Berlim. Essa primeira cena poderia ser uma epigrafe do que todo o filme: uma velha mulher atormentada pelos acontecimentos que a atingem radicalmente e sem clemência. Ela sai pela rua para comprar um casaco caríssimo numa loja marcada por aquela frieza e hipocrisia burguesa mortal. Isto, um claro contraste com o que ela dirá a uma jornalista: a queda do muro de Berlim levará a antiga Alemanha oriental a um consumismo desenfreado. O percurso segue na forma de uma “epopeia negativa”, onde nada parece amenizar aquele sofrimento visível a cada cena. Os editores a abandonaram, um filho frio e calculista que trata o sofrimento da mãe de maneira distante; o encontro com o ex-amante que já comemora a queda do muro e o fim da Alemanha comunista; o ex-marido alcoólatra e sem rumo; os pais que a tratam como criança ou como irresponsável; a falta de dinheiro; a relação fria e cruel com um garoto de programa e o desfecho fatal no fim do filme.

Impressionante como o diretor soube montar uma vida sem sentido, uma luta inglória e necessidade de libertar-se pelo suicídio. Tudo imantado por um preto e branco estilizado e artificial. O filme nos sufoca do começo ao fim. O filme é implacável com a protagonista e nos deixa acuados tal qual faz com Hanna e nos antecipa todo o tempo de o que há apenas é “nenhum lugar para ir”.

Duas coisas merecem destaque no filme: a primeira é a forma como o diretor nos conduz a pensar que as “feridas pessoais” tem origem mais funda e alguma forma de sociabilidade quebrada, cindida e irrecuperável. A personagem foi atingida diretamente pelos acontecimentos de 1989 e não conseguia entender exatamente o que acontecia e paga um preço por isto. O mundo dela vinha abaixo por completo e ela relutava em criticas o desabamento sem perceber a inutilidade desta posição naquele momento. Ela vai se tornando um farrapo humano em franca decadência e não toma pé da situação e nem tem forças para mudar. E o mundo nem liga pra ela e toma a sua forma de mudança inexorável. A grande e famosa escritora é uma despreparada completamente para vida sem o sistema que a protegia. Ela era uma frágil mulher iludida com a sua condição e protegida por um Estado em ruinas.

A segunda coisa é a forma natural e consequente com que o diretor trata o tema do suicídio (sabe-se que a personagem do filme é uma adaptação da situação vivida pela própria mãe de Oskar Roehler e que na vida real também se matou por razões próximas as do filme). Somos levados a compreender o suicídio da personagem como o alivio de um tormento infindável e sem solução naquelas circunstâncias. Dentro da boa e realista tradição da filosofia existencial alemã, o filme nos coloca dentro do problema aos nos fazer “empatizar” com a condição da protagonista.

Como bem afirma Heidegger: “O tempo da noite do mundo é o tempo indigente, porque se tornará cada vez mais indigente. Ele tornou-se tão indigente que já nem é capaz de notar a falta de Deus que falta” (In: “Para quê poetas?”). Não há no filme um sinal possível de transcendência para a personagem, não é possível ver qualquer luz no fim do túnel… Sendo assim, o que resta a fazer é o eu foi feito: sair do mundo pelas próprias mãos e libertar-se de um sofrimento humanamente insuportável.


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