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Nélio Bizzo: "O terraplanismo não é ciência, o criacionismo não é ciência"

Nélio Bizzo: "O terraplanismo não é ciência, o criacionismo não é ciência"

Entrevista com o professor Nelio Bizzo, formado no curso de Licenciatura e Bacharelado em Ciências Biológicas no Instituto de Biociências da Universidade de São Paulo, onde realizou seu mestrado (1984), no mesmo IB-USP. Atualmente Bizzo é Professor Adjunto do Instituto de Ciências Ambientais, Químicas e Farmacêuticas da Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP), campus de Diadema, ministrando aulas na graduação e na pós-graduação.

1) O criacionismo como contra-discurso em relação ao evolucionismo sempre teve seu espaço nos cientistas ligados as igrejas. Como o senhor vê a sua localização dentro de instituições educacionais com tanto poder político, em especial com um criacionista na direção da CAPES?

A CAPES deveria estar em sintonia com a comunidade científica das universidade que realizam pesquisa, que têm programas de mestrado e doutorado bem avaliados, responsáveis pela maior parte da produção cientifica do país. A CAPES tem uma história neste país e o desenvolvimento científico e tecnológico brasileiro deve muito a ela. As opiniões que foram divulgadas pela imprensa, sobre impor o criacionismo como conteúdo obrigatório na educação básica, chocaram a comunidade científica, e não apenas no Brasil, mas repercutiram muito no exterior. A Nota Oficial do EDEVO-Darwin foi visualizada por centenas de milhares de pessoas em poucos dias. O segundo país que mais a visualizou foram os Estados Unidos. Um presidente da CAPES que defende a imposição do criacionismo no ensino fundamental equivaleria a um diretor do INPE externando sua concordância com os seguidores do chamado terraplanismo.

2) O criacionismo nega o evolucionismo. Você pode falar um pouco sobre isso? Existe método científico e bases materiais para afirmar o criacionismo como possibilidade?

A NOTA OFICIAL do Núcleo de Apoio à Pesquisa em Educação, Divulgação e Epistemologia da Evolução “Charles Darwin”, reproduzida pelo portal Esquerda Diário, a quem muito agradeço, enfatiza que não existe nenhum tipo de apoio científico para o criacionismo. Alguns religiosos o chamam de “científico” apenas como tentativa desesperada para contornar obstáculos legais, devido ao fato de os Estados Unidos serem constitucionalmente laicos, impedidos incluir aulas de religião nas escolas públicas. Sua constituição se inspirou nas ideias iluministas que estiveram na base da Revolução Francesa, uma marca das revoluções burguesas, que demarcou um limite muito claro entre Igreja e Estado. No caso norte-americano, havia a necessidade de desvincular a colonia independente da religião estatal anglicana; no caso francês, de desvincular o Estado da Igreja Católica, grande apoio da aristocracia do antigo regime. Um detalhe interessante: o avô de Charles Darwin era anti-monarquista, e apoiou, inclusive financeiramente, a Revolução Francesa.

3) A educação pública - que já era preenchida de precarização em distintos níveis - passa por um desmonte profundo, com uma perseguição contra distintas perspectivas científicas, sociológicas e filosóficas. Como você vê a relação entre o desmonte e a negação do método científico? A universidade que nega a ciência está mais vulnerável a privatização?

O sonho dos correligionários das denominações religiosas do chamado “cinturão evangélico” dos Estados Unidos (“Bible Belt”), agrupadas na Convenção Batista do Sul, começou a se radicalizar em 1979, com disputas internas que deram supremacia aos fundamentalistas. Houve defecção de quadros políticos importantes, como Jimmy Carter e Bill Clinton e conquista de apoio financeiro de grandes capitais, ligados às petroleiras texanas e congêneres. Hoje eles são o grande apoio do partido republicano pro-Trump. Eles passaram a reivindicar espaço nas escolas públicas de seus estados para difundir suas ideias e angariar adepto. É dessa época o uso recorrente da expressão “criacionismo científico” procurando travestir como ciência formas de doutrinação religiosa. Mais recentemente a expressão passou a ser “projeto inteligente” (“intelligent design”). Tais iniciativas foram sucessivamente barradas nos tribunais estadunidenses. É interessante que, mesmo laica, a educação pública dos Estados Unidos não admite aulas de Filosofia e Sociologia na educação básica, o que conta com o apoio desses fundamentalistas. Não por acaso, vimos essas disciplinas serem atacadas publicamente entre nós há poucos meses. É essa a lógica que está sendo imposta no Brasil, na qual quem quer estudar no ensino superior deve pagar – e não se paga pouco lá. A universidade está sendo atacada não só porque tem credibilidade junto ao público, mas sobretudo porque faz concorrência ao ensino privado. Não acho que queiram comprar a USP ou as federais. Basta destruí-las, aliás, como anunciado sem papas na língua.

4)A nota do Núcleo Charles Darwin menciona a importância da laicidade no ensino público. A ameaça à laicidade pode ter quais impactos na ciência?

A laicidade do ensino público, como disse, é do século dezoito e, entre nós, ganhou força com a República. No entanto, na década de 1930 tivemos uma reversão importante, analisada em detalhe por Carlos Roberto Jamil Cury, em seu livro “Ideologia e Educação Brasileira: católicos e liberais” (Cortês, 1978). Com a atuação dessas organizações norte-americanas entre nós, estamos enfrentando cada vez mais a pressão para inserir conteúdo religioso na escola pública, o que já é uma realidade lamentável. Apostilas distribuídas pelo estado, livros didáticos e parâmetros curriculares nacionais falam de criacionismo e reproduzem trechos de livros religiosos. Não é possível chamar o criacionismo de “teoria”: ele simplesmente não é testável, é apenas uma questão de fé, ou seja, faz parte de religiões. Ensinar que criacionismo de evolucionismo são ideias igualmente válidas equivale a falsificar o seu significado epistemológico. A religião não é equivalente à ciência. O terraplanismo não é ciência, o criacionismo não é ciência. O evolucionismo é ciência e sem ela não entenderíamos, por exemplo, a irrupção de epidemias virais como essa do novo tipo do coronavírus. A teoria da evolução nos permite entender o surgimento e atuar na contenção de epidemias virais. Para o criacionismo é de se perguntar quem está criando esses novos vírus, e porque não o havia feito antes!


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