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TRIBUNA ABERTA | Mooca: a revitalização possível a partir da memória operária

sábado 10 de outubro de 2015 | 17:23

Intervir na paisagem arquitetônica como condição indispensável para pensar as relações sociais de determinado espaço da cidade pode parecer óbvio para os urbanistas. Pelo menos para os que se preocupam com o indivíduo na coletividade e sua história, e não com o utilitarismo capitalista da especulação imobiliária.

As coisas ficam pouco claras, porém, para os que não compreendem que morar num determinado bairro não quer dizer apenas fixar-se para garantir descanso após o trabalho e reproduzir a própria vida. Significa muito mais – talvez um conjunto de elementos que conferem significado mais amplo às várias dimensões da vida das pessoas.

É essa reflexão que talvez esteja subjacente à proposta do livro Renovação urbana em São Paulo - Moóca: lugar de fazer casa (Saarbrücken, Deutschland / Niemcy, 2015), da arquiteta e professora da Universidade de São Paulo Rosana Helena Miranda.

Dentre outras atividades de planejamento e reformulação, a autora faz propostas interessantes e bem concretas para a revitalização do bairro que marcou a formação da capital paulista como local de moradia da classe operária na primeira fase de industrialização da cidade e do país nas primeiras décadas do século XX.

Nesses tempos atuais em que expressões de significação duvidosa, tais como pós-modernismo e outros tantos relativismos se tornaram mantras de certo senso comum, a memória torna-se emblemática não apenas para a simples preservação de elementos históricos para fins memorialísticos, mas também como alimento transformador para o presente e o futuro. Ainda mais porque o bairro ainda abriga trabalhadores de baixa renda de diferentes setores.

Resultado de sua tese de doutorado na Universidade de São Paulo, o trabalho sugere uma série de intervenções para fazer do bairro local de moradia, convivência, lazer e atividades culturais. Assim, casas degradadas pelo processo de proliferação dos cortiços seriam preservadas, e não demolidas, assim como outros equipamentos urbanos adjacentes e diversas vilas em quarteirões com espaços internos abertos. Os prédios das antigas grandes fábricas que viveram seu apogeu nas primeiras décadas do século XX seriam outro elemento paisagístico a sofrer intervenção e preservação para se tornarem locais de atividades culturais, de lazer e outras.

Além disso, a autora propõe a reformulação do projeto do canal do Rio Tamanduateí, um dos rios mais importantes da cidade. A proposta, certamente, faz torcer o nariz dos que defendem interesses imediatistas do rodoviarismo e da especulação imobiliária, pois aponta para a necessidade de destampar o rio, a fim de promover outro tipo de convivência da população local consigo mesma, bem como com as ruas, o próprio rio e os bairros vizinhos, ao viabilizar uma nova circulação viária e pedestre mais arejada.

O paulistano que conhece hoje as imediações do Rio Tamanduateí canalizado, num ambiente marcado pela fumaça e o barulho de automóveis e caminhões da Avenida do Estado, sem falar da insegurança, talvez não consiga imaginar mais a possibilidade de suas margens servirem como calçadão de passeio e lazer. Entretanto, a transformação da vida e das coisas só é possível a partir da vontade e da prefiguração de utopias. Uma longa caminhada só pode começar com o primeiro passo.

Este passo, pelo menos potencialmente, está nesse livro. Além do rigor técnico, em termos metodológicos de pesquisa e das propostas urbanísticas, o livro tem a marca da paixão, condição indispensável para sonho e ação de qualquer transformação na vida. Mesmo na ciência, além da política, somente com paixão as coisas andam.
E não poderia ser diferente no caso de Rosana Miranda. Com longa experiência como arquiteta do poder público na área de arquitetura e projetos urbanos, a hoje professora da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo (FAU) viveu parte de sua infância com a família na Rua Odorico Mendes, paralela à Avenida do Estado, e uma das que sempre eram mais afetadas pelas enchentes do Rio Tamanduateí no início da década de 1960.

Espantoso e suposto desenvolvimento esse da cidade em que, passados mais de meio século do nascimento da autora, o rio ainda continua provocando enchentes em outros locais do bairro e da região. Se algo de ruim se preserva ao longo do tempo, sobretudo para a população de baixa renda, certamente não são os sonhos e a paixão, mas sim políticas mal formuladas para atender a interesses certamente desprovidos de amor pela cidade e sua população.




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