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ENTREVISTA | Mercantilização da educação e experimento social no Contrato de Impacto Social da SEE/SP

O Esquerda Diário entrevistou o professor Evaldo Piolli, da Faculdade de Educação da Unicamp e membro do Grupo de Estudos Trabalho, Saúde e Subjetividade (NETSS), sobre o projeto de Contrato de Impacto Social (CIS) que o governo Alckmin (PSDB) quer implementar nas escolas paulista.

terça-feira 3 de abril de 2018 | Edição do dia

Esquerda Diário: O que é o Contrato de Impacto Social (CIS) e quem está por trás dele?

Evaldo Piolli: Primeiramente gostaria de dizer que essa é mais uma das tentativas que a Secretaria da Educação de São Paulo (SEE/SP) comandada pelo PSDB, empregada para tentar emplacar uma política fracassada de 23 anos centrada em avaliações e indicadores de qualidade que até hoje só produziram maior responsabilização dos professores e não melhoria na qualidade das escolas. O CIS é uma tentativa desesperada de tentar justificar sua política centrada no SARESP que agora será empregada por meio de uma parceria com o setor privado lucrativo.

O CIS é fruto de uma ação da qual integram o BID (Banco Interamericano de Desenvolvimento), a ONG britânica SOCIAL FINANCE e o Insper, representado por uma consultoria denominada Metricis e a SEE/SP. O CIS é um dos braços do Programa Gestão em Foco da Secretaria que conta com a participação da ONG empresarial Parceiros da Educação. É parte integrante do Programa Educação- Compromisso SP, criado em 2011, também pela SEE/SP, que envolve um conjunto significativo de empresas privadas e Fundações Empresariais.

O CIS institui uma nova modalidade de parceria público-privada, inédita nas escolas paulistas. Pelos termos da minuta apresentada pela SEE/SP, o que se pretende é contratar, via licitação, pessoa jurídica, com ou sem fim lucrativos, para o desenvolvimento de “ações pedagógicas” voltadas ao controle da evasão e aprovação dos alunos. Ou para utilizarmos os termos da minuta do contrato, o que se pretende é melhorar os indicadores de fluxo escolar (aprovação, reprovação, evasão e conclusão do ensino médio) e indicadores relativos ao aprendizado do aluno durante o Ensino Médio. Mas o que fica evidente no documento é que o foco central do CIS será o desempenho do aluno nas provas padronizadas do Estado.

ED: Como funcionará o contrato?

Evaldo Piolli: Primeiramente, é bom que fique claro que não se trata de uma privatização direta que envolve repasse de recursos públicos para instituições privadas, ou a entrega das escolas, por exemplo, para uma ONG ou empresa privada. Na verdade, é um tipo específico de transferência de risco. O investidor privado adianta o recurso para o Estado e esse só paga se os resultados forem atingidos. Trata-se de um modelo no qual o Estado, para economizar dinheiro, transfere responsabilidades para o investidor privado, isso por um prazo de 4 anos e meio (54 meses).

As organizações privadas contratadas (Provedor Master) selecionadas atuarão em 61 escolas do Estado as quais estão sendo dentro do denominado “grupo de tratamento”. Pelo que está expresso na minuta de contrato disponibilizada pela Secretaria da Educação, a empresa privada terá autonomia para promover ações de intervenção junto aos estudantes e suas famílias. Nesses mesmos, outras 61 escolas (grupo de controle) não receberão nenhum apoio financeiro e serão observadas com a finalidade de “comprovar cientificamente” o êxito das escolas geridas por esse novo modelo. Trata-se de um experimento social com seres humanos e isso, é algo grave e precisa ser compreendido pela população do Estado. Essas escolas do tal grupo de tratamento receberão recursos de investidores privados, enquanto que os do grupo de controle ficarão sem receber aporte de recursos.

ED: O senhor diz que é um experimento social e que isso é grave? Poderia explicitar melhor?

Evaldo Piolli: O Estado fará um pareamento construindo um grupo um grupo de tratamento e outro de controle, cada qual com 61 escolas. Cada escola do grupo de tratamento teria um par no grupo de controle para verificar qual seria o seu resultado sem os investimentos, ou melhor, sem as intervenções. Isso caracteriza um experimento social feito com jovens que estudam nessas escolas consideradas vulneráveis, o que eu considero grave. Há que se verificar se tal experimento segue os critérios éticos que envolvem pesquisas com e em seres humanos. Toda pesquisa com Seres Humanos é regulada por comitês de ética de acordo com a Resolução nº 466 de 2012, do Conselho Nacional de Saúde.

Agora não precisa ser cientista para saber que uma escola que tem uma empresa de olho nos ganhos que pode obter para os investidores e aplicando recursos para obter resultados de aprovação e evasão terá mais chances de atingir os objetivos e metas do que as que não irão receber nada.

No entanto, a meu ver há um outro problema sério nessa história que é o da total desconsideração da experiência acumulada de muitos profissionais da rede estadual sobre a questão. Novamente a secretaria e o governo do estado, como no caso da proposta de reorganização de 2015, erram ao não dialogarem com as escolas e os profissionais da rede estadual que já trabalham em áreas de vulnerabilidade.

ED: No sistema estadual já existem experiências nesse sentido?

Evaldo Piolli: Há escolas que resolveram problemas de evasão, por exemplo, com projetos e ações de seus profissionais sem recursos e em condições muitas vezes adversas. Muitas dessas práticas apostaram na gestão democrática e no trabalho coletivo, envolvendo alunos, pais e a equipe escolar. Esse esforço dos profissionais da educação não encontra legitimidade nesse modelo gerencial esquizoide centrado em avaliações heterônomas. A verdade é que o pessoal da escola quase nunca é ouvido. A secretaria retirar a autonomia da escola e dar ouvidos aos homens de negócio que estão, na verdade, de olho nos fundos públicos.

ED: O que há de novo nesse programa?

Evaldo Piolli: É curioso notar que a quase totalidade dessas 122 escolas já estavam listadas no Programa de Escolas Prioritárias que foi implementado em 2011 criado pela SEE/SP a partir da parceria com o pessoal do Programa Educação: Compromisso de São Paulo. Na ocasião, esse programa foi apresentado como solução eficaz para essas escolas consideradas de maior vulnerabilidade. Na época, questionávamos sobre quais eram os critérios para a secretaria eleger essas escolas como prioritárias. Foi o baixo desempenho no SARESP a variável determinante. Essas escolas, recebiam da parte da secretaria uma marca negativa passando a receber maior atenção dos órgãos superiores, da supervisão, com a implementação de todos os programas da Secretaria. O modelo autoritário sofreu muitas críticas. Depois, esse programa passou a ser chamado, por um curto espaço de tempo, de “Aluno Prioritário”, para em seguida desaparecer nos corredores da Secretaria a partir de 2013.

No entanto agora – respondendo sua questão – a SEE/SP faz a lista de escolas e tenta a adesão delas com a aprovação dos seus respectivos conselhos. Há uma tentativa de dar uma roupagem mais democrática ao CIS. Isso foi feito no final do ano passado, não houve esclarecimentos sobre os detalhes do programa. Muitas escolas aprovaram e, agora, com a maior divulgação dos detalhes da proposta, algumas escolas estão revertendo sua decisão.

Outro aspecto interessante que diferencia essa proposta das anteriores é que dessa vez as estruturas da Secretaria e suas diretorias, equipe de supervisores, não foram acionadas para essa implementação. Temos apurado que essa proposta de intervenção nas escolas está sendo gestada no palácio do governo onde todas as informações do projeto estão centralizada. Não passou, portanto, pelas instâncias da Secretaria. Creio que apenas no gabinete do secretário.

ED: Como ficam as escolas desse grupo de tratamento? Haverá prejuízos maiores para as escolas quanto a sua autonomia?

Evaldo Piolli: Na prática, o CIS, se empregado nas escolas selecionadas tal como quer a SEE/SP, afetará diretamente as conquistas relativas a Gestão Democrática e a autonomia da escola fixadas na Constituição e na LDB. A luta dos profissionais da educação para efetivar relações democráticas no espaço da escola, com essa medida, fica comprometida.

O contrato prevê a implantação de uma estrutura organizacional paralela dentro da escola composta por profissionais estranhos e melhor remunerados que os profissionais da rede. Isso será, possivelmente, motivo para aprofundar as tensões e conflitos na escola.

Há que se destacar os possíveis constrangimentos às equipes escolares devido a presenças das equipes das instituições privadas nas escolas. Temo que essa intervenção - aliás essa é uma palavra que tem estado na moda – nas escolas poderá afetar o ambiente de trabalho e poderá elevar o já grave quadro de responsabilização e culpabilização dos professores e equipe gestora dessas unidades. É bom lembrar que esses profissionais são tratados como bodes expiatórios pelo suposto fracasso das escolas nos esquemas de avaliação.

Entendo que a presença dos agentes privados no dia-a-dia da escola será mais eficaz para deslegitimar e retirar a autonomia dos professores e dos atores escolares do que, de fato, resolver o problema da evasão e de melhoria dos resultados.

ED: Isso afetará o ambiente da escola?

Evaldo Piolli: Acredito que sim. Tenho a impressão de que a presença dos agentes privados na escola será um fermento para as animosidades entre pais, alunos e professores. Ou seja, afetará o já complexo e conflitivo ambiente escolar. Não está claro como será feita essa intervenção e quais as fronteiras e os limites dela, mesmo sabendo que as ações serão voltadas para uma abordagem junto aos alunos do ensino médio e seus familiares. Sabemos que os profissionais das empresas não entrarão em sala de aula, mas terão uma estrutura disponível e participarão, eventualmente, de reuniões com a equipe gestora e de professores.

Contudo, é preciso que se diga que todas as ações previstas no CIS voltadas para as famílias e os alunos – já estão previstas no guarda-chuva da gestão democrática da escola prevista na LDB e da Constituição. Acontece que nas escolas paulistas nunca houve investimentos para isso, tanto em recursos como em vontade política para reforçar essa autonomia. Aliás quando falam em autonomia é para responsabilizar professores e equipe gestora sobre os resultados. O Estado não investe e cobra resultados. Sob o gerencialismo empresarial empregado nas escolas paulistas a autonomia tem significado máxima responsabilização. Agora, no entanto, o governo se alia a investidores privados para fazer o que ele nunca fez concretamente.

ED: Como atuarão essas instituições privadas nas escolas?

Evaldo Piolli: Como disse, o CIS prevê o pagamento ao investidor privado pelos resultados atingidos nas unidades, ou melhor, pelo cumprimento de metas fixadas pela SEE/SP. Se atuarem como no modelo inglês, poderão captar investimentos de pessoas jurídicas e/ou físicas, ou seja, de investidores de risco com a finalidade de oferecer-lhes ganhos. Trabalharão para produzir os resultados a todo custo, pagar e oferecer ganhos aos investidores. Fico preocupado com isso, pois a educação dos nossos jovens que vivem em áreas de vulnerabilidade social e pobreza não podem se tornar fonte de lucro.

O governo paulista, transfere responsabilidades para investidores privados com objetivo de lucro em áreas e espaço onde ele fracassou. Em meu entendimento, escolas situadas em área de vulnerabilidade social, e que funcionam em condições adversas, não podem ser transformadas em fonte de lucro para investidores privados.

Fico pensando que chegamos ao extremo, ao ápice do projeto da Nova Gestão pública que é um projeto que está posto no Estado há mais de 23 anos. No caso da educação, esse projeto intensificou os programas de avaliação externas, metas, indicadores e bonificação e ao longo desse tempo se mostrou fracassado. Por que empregar um sistema de gestão empresarial nas escolas sem, contudo, melhorar a estrutura física das escolas e valorizar os profissionais que atuam no sistema?

A meu ver trata-se de mais uma medida da Secretaria para tentar provar que pode melhorar a qualidade da educação em São Paulo, sem aplicar os recursos necessários. Se observarmos com atenção, veremos que essa política centrada no SARESP/IDESP, não se mostrou eficaz ao longo do tempo. Não se melhora a qualidade com indicadores e responsabilização de professores.

ED: Por que escolheram as escolas do Ensino Médio?

Evaldo Piolli: O Ensino Médio tem se tornado a bola da vez. É sobre ele que tem recaído a atenção dos governos, tanto federal como dos estados, vide a Reforma do Ensino Médio, que foi anunciada logo após a divulgação dos resultados do IDEB. No caso, a SEE/SP tem divulgado os resultados negativos no Ensino Médio mas esquecendo de apontar para as condições concretas que contribuíram para a produção desses números negativos. Muitas das 122 escolas listadas pela SEE/SP, por exemplo, sofrem há muito tempo com a falta de professores, tem problemas de infraestrutura e materiais, superlotação de salas, isso para não falar da convivência diária com um quadro de violência dentro no seu entorno. Trata-se de um quadro negativo que é fruto da desresponsabilização do Estado. Vou na linha do sociólogo francês Christian Laval quando diz que o neoliberalismo cria os problemas para vender as “soluções”.

ED: O que mais o Sr. destacaria?

Evaldo Piolli: Primeiro é uma proposta diferenciada de parceria público-privada que precisa ser muito bem compreendida. A secretaria diz que não irá gastar nenhum tostão com isso e tenta convencer a opinião pública de que isso bom. Mas o que ela está fazendo de fato é transferir suas responsabilidades para um investidor privado. A meu ver isso é grave.

Agora, mesmo não se tratando de uma privatização direta, como disse, devemos ficar atentos ao que virá como decorrência dessa implementação. Quanto aos possíveis desdobramentos para um processo de privatização mais amplo e profundo. Nesse sentido, temos que resistir. Repassar informação, debater com os trabalhadores do sistema estadual, alunos e pais. Gostaria de registrar que o Estado de São Paulo, nesses últimos anos, tem assumido o papel de laboratório de experiências de programas educacionais desse tipo. O grupo que está hoje à frente do MEC está totalmente alinhado com esse tipo de projeto e pode disseminar essas experiências para outras unidades da federação e municípios. Temos que incentivar o debate público como tem sido feito pelos pesquisadores da Rede Escola Pública e Universidade (REPU) com quem compartilho algumas críticas ao CIS.

ED: No final da semana passada, o governo, via declaração da SEE/SP, acenou um recuo temporário em relação à implementação do CIS. Como o sr. vê esse recuo?

Evaldo Piolli: Apesar dessa suspensão temporária, devemos ficar atentos. Devemos continuar lutando contra qualquer forma de transferência de recursos e qualquer forma de privatização, afinal, “lição dada, é lição aprendida”. Lembrem-se da nossa luta contra a reorganização escolar que, embora tenha sido interrompida após as ocupações de escolas, depois foi implementada de uma outra forma, com os fechamentos de salas, fechamento de cursos noturnos, demissão de professores. Assim, não devemos comemorar tanto essa suspensão temporária, mas ficar atentos. Não podemos baixar a guarda agora e precisamos seguir o debate para enterrar de vez esse projeto, bem como tantos outros que apontam para a mercantilização e privatização da educação pública.




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