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Marxismo ou populismo? Um debate sobre a cultura proletária

Ariane Díaz

Marxismo ou populismo? Um debate sobre a cultura proletária

Ariane Díaz

Parte do debate que se abriu em 1920 no Partido Bolchevique sobre a organização do Proletkult foi também uma discussão entre os marxistas sobre as características da transição para o socialismo, além da prática efetiva das organizações do Proletkult que nem sempre coincidiam com as ideias de seus fundadores [1].

Muitos poderiam se perguntar o que faziam muitos dos mais importantes dirigentes partidários, numa situação que, mesmo deixando para trás a guerra civil, se apresentava como aguda a nível da URSS e internacional, discutindo questões literárias. Tentaremos responder a isso focando no debate teórico-político entre os marxistas.

A base de Bogdanov

A ideia original de Bognanov, principal promotor da noção de "cultura proletária", parte de seu balanço da derrota da Revolução de 1905, quando ainda era membro da fração bolchevique da social democracia russa: o proletariado não havia conseguido então se dar as ferramentas necessárias para hegemonizada, a partir de uma perspectiva própria, o conjunto das massas oprimidas da Rússia. Em parte por isso, afastando-se do bolchevismo após sucessivas discussões políticas durante a primeira década do século XX, Bogdanov dedicou boa parte de seus esforços para desenvolver toda uma visão de mundo do ponto de vista proletário.

Bogdanov traçava um paralelo entre a revolução operária e a revolução burguesa, observando que, antes de tomar o poder, esta havia implantado sua própria visão de mundo em todos os campos - do econômico e científico ao filosófico e artístico - o que hoje conhecemos como idéias iluministas. Bogdanov achava que a classe trabalhadora deveria fazer, moldando sua visão de mundo em uma "cultura proletária”. Ele chega a falar de uma “enciclopédia operária”, ao modo do projeto monumental da Enciclopédia de Diderot e D’Alambert, e de universidades e ciências proletárias [2]:

“Isso significa uma ciência que seja aceitável, compreensível e componente da missão de vida do proletariado, uma ciência que é organizada do ponto de vista do proletariado, que é capaz de conduzir as forças do proletariado em sua luta por implementar seus ideais sociais. [3]

A ausência dessa perspectiva é o que levou Bogdanov a se opor também à tomada do poder em Outubro, que considerou prematura, ainda que, assim que concretizada, ele colabore com o novo Estado sobretudo como dirigente do Proletkult, junto com uma grande maioria dos militantes do Partido Bolchevique.

Suas concepções encontraram eco em alguns destes, como Pletnev, para quem a ditadura do proletariado, como tal, "não existe" na medida em que os bolcheviques necessitam acordar e conceder em alguns casos seu programa com outras forças como os Social-revolucionários. Essas alianças podem ser necessárias no terreno político, mas, advertia, não se poderia confiar em outros setores de classe para a construção de uma nova cultura proletária, porque terminariam primando suas influências pequeno-burguesas. E por isso, corresponderia ao Proletkult a tarefa de defender esse eixo central na construção do socialismo [4].

No terreno artístico, propostas como a que esboça Bogdanov em 1918 se viram expressas em diversos pronunciamentos do Proletkult, e eram a base de sua insistência na ruptura com a tradição cultural prévia, que se considerava um veículo da ideologia burguesa com a qual era necessário romper - embora as propostas de Bogdanov, que exigiam um benefício de inventário em relação à tradição anterior, não compartilhassem o espírito iconoclasta que muitos membros do Proletkult manifestaram.

Como seria essa cultura proletária? No texto de Bogdanov, “Os caminhos da criação proletária” [5], ele diz que “os métodos de criação proletária se baseiam nos métodos do trabalho proletário, ou seja, o tipo de trabalho que é característico dos trabalhadores da indústria pesada moderna”. Daí, segundo ele, derivariam como características do trabalho proletário o coletivismo, produzido pela "colaboração massiva e pela associação entre tipos especializados de trabalho dentro da produção mecânica"; e o monismo, que na ciência e na filosofia havia encarnado o monismo metodológico do marxismo, em base ao qual deveria se desenvolver uma "ciência organizacional universal, unindo monísticamente toda a experiência organizacional do homem em seu trabalho e luta social", que chamará de tecnologia.

Essas hipóteses levantam dois problemas sobre a definição de cultura. O primeiro é que a base do trabalho da indústria moderna, mesmo se considerar mais sua versão fordista especializada do que a taylorista (como parece estar fazendo Bogdanov neste texto), não deixa de ser o trabalho alienado, cujo controle dos tempos e seus planos gerais não estão fora da alçada do trabalhador da linha. Seu objetivo é a produção de mercadorias em grande escala e barateada, o que está longe da noção de arte como trabalho produtivo não alienado que o marxismo soube usar como exemplo contraposto às formas de produção capitalistas. Poderia-se interpretar que uma forma que permita produzir mais em menos tempo liberaria tempo de ócio para outras atividades, e de fato, por isso, o fordismo teve certa atratividade para muitos marxistas da época. Mas não é isso que levanta Bognanov, que insiste na forma específica de organização de trabalho industrial.

Essa relação que ele estabelece entre desenvolvimento econômico e cultural padece, aliás, de um mecanismo que, salvo em suas versões mais vulgares, o marxismo nunca defendeu, pois tal relação não reconhece que a obra artística tem sua própria lei, algo que Trotsky insistia em Literatura e Revolução justamente em discussão com o Proletkult [6]. No debate de 1924, Trotsky fez uma crítica semelhante a seus interlocutores em torno do exemplo de Dante, que tomou de Labriola: “Só imbecis podem tentar interpretar o texto da Divina Comédia com base nas faturas que os comerciantes florentinos enviavam a seus clientes" [7].

Entretanto, como problema teórico mais geral, como assinaram aqueles que estudaram inclusive com simpatia as elaborações de Bogdanov [8], a analogia entre a revolução burguesa e a proletária perde de vista que a classe trabalhadora chega ao poder não como classe possuidora, mas como classe despossuída. Portanto, somente após a tomada do poder pode começar a desenvolver e implementar elementos ou perspectivas que a identifiquem como classe e consolidar sua hegemonia sobre as demais classes oprimidas.

Esse elemento aparece completamente subvalorizado em Bogdanov. E, apesar de frequentemente ser identificado com as alas ultraesquerdistas da socialdemocracia russa, esse tipo de reflexão parece aproxima-lo mais às ilusões da socialdemocracia europeia que acreditava poder avançar posições engordando su quantidade de membros e multiplicando suas próprias instituciones. Tal ilusão se viu rapidamente desmentida pela derrota da Revolução alemã (e que, por outro lado, na atrasada Rusia tsarista, eram mais ilusórias ainda).

O debate de 1924

Os dirigentes bolcheviques reunidos em 1924 para discutir a política do partido no campo da produção literária – entre eles Lunacharski, Bukharin, Averbakh, Raskolnikov, Radek, Riazanov, Pletnev e Trotski – colocarão o eixo do debate no período de transição [ao socialismo].

Os que defenderam na reunião a ideia de “cultura proletária” não necessariamente concordavam com todas as ideias de Bogdanov, mas Trotski já havia discutido com os teóricos dessa concepção em Literatura e Revolução a partir do ponto de vista dos objetivos da revolução socialista. Tais objetivos não são o reforço da dominação de uma determinada classe, mesmo sendo a classe oprimida e majoritária, na medida em que a construção do socialismo implica justamente a dissolução das classes.

Será precisamente no momento em que essa questão se desenrola dramaticamente na URSS, após a derrota da revolução alemã que deixará isolado o jovem Estado operário, que se abre a discussão sobre os tempos de duração desse período de transição.

Lunacharski define em suas memórias as diferenças que mantém com Trotski:

“A opinião de Trotski era que [uma cultura proletária] não era possível, porque enquanto o proletariado ainda não venceu, ele tem que manejar uma cultura alheia e não criará a sua própria; e quando vencer, não haverá cultura de classe, nem cultura proletária, mas uma cultura humana comum. Eu neguei então e nego agora. Nosso estado soviético, nossos sindicatos, nosso marxismo são realmente uma cultura humana comum? Não, essa é uma cultura puramente proletária; nossa ciência, nossa unificação, nossa estrutura política têm sua própria teoria e prática. Por que dizer que na arte isso é diferente? Como saberemos a gravidade e duração da NEP (Nova Política Econômica)? [...] Culturas separadas às vezes se desenvolvem por centenas de anos. E talvez nossa cultura ocupará não décadas, mas apenas anos, mas é impossível repudiá-la como um todo. [9]

Bukharin faz uma crítica semelhante:

Trotski cometeu um “erro teórico” exagerando el ‘grau de desenvolvimento da sociedade comunista’ ou, expressando de outra forma, a velocidade em que se dissolverá la ditadura do proletariado. [10]

Mas que significado tinham para Trotski as produções artísticas que, com as medidas democratizadoras que a revolução havia trazido, começavam a aparecer entre os trabalhadores? De um ponto de vista, seu valor era enorme - era tão significativo quanto o aparecimento de obras de Shakespeare, Molière ou Pushkin, explicará Trotski na reunião [11], na medida em que demonstra a incorporação de enormes setores sociais até então proibidos da produção cultural, o que seguramente dará frutos a longo prazo e que aponta, ainda que inicialmente, a superação da divisão entre trabalho intelectual e manual. Mas isso ainda estava longe de representar uma nova cultura, especialmente se definirmos cultura como uma visão total mais ou menos completa da vida social.

Um paralelo pode ser traçado entre a conceituação que faz Trotski, nesse mesmo período, sobre a situação da mulher em uma sociedade de classes: por mais que o Estado operário tenha garantido - em níveis que ainda hoje seguem sendo avançada - a igualdade perante a lei entre os gêneros, isso estava longe de representar a igualdade perante a vida. Essa seria uma tarefa que as gerações futuras teriam a oportunidade de desenvolver e desfrutar. Por essa razão, o Estado teve que tomar, em muitos casos, medidas transitórias que podiam parecer contrárias ao seu programa, como a promoção do casamento civil para combater a influência da Igreja. Não reconhecer essas contradições, em nome de princípios abstratos que não dão conta das condições reais, não ajuda a que desaparecem. Ao contrário, negá-las dificulta a formulação de uma política para encará-las em profundidade.

Os argumentos do Proletkult não tendiam a uma política revolucionária: o conhecimento, a crítica e a superação da tradição artística prévia, por exemplo, exigiam uma série de ferramentas que os líderes do Proletkult poderiam ter, mas que as massas trabalhadoras certamente ainda não tinham. Portanto, a demagogia pode rapidamente se transformar em condescendência e ausência de uma política verdadeiramente democratizante. Será contra essas idéias, que no fundo Trotski caracteriza como populistas disfarçadas de marxistas, que irá mirar suas críticas. Ele não escolherá o caminho mais fácil em seu argumento, ressaltando a origem ou a formação não proletaria dos dirigentes do Proletkult, que estavam.longe de serem trabalhadores no chão de fábrica na linha de produção. Isso teria sido adequado, em todo caso, pois essa foi a base dos ataques de muitos líderes do Prolekult contra seus oponentes. Em vez disso, Trotsky argumentou contra a concepção de marxismo que eles postulavam. E, surpreendentemente para algumas leituras superficiais, para defender o marxismo, Trotski apontou suas limitações.

Em primeiro lugar, Trotski insiste que não há razão para pedir ao marxismo que forneça respostas para todos os problemas artísticos - e científicos, agregará. Uma coisa é ressaltar a origem burguesa do romance como gênero, por exemplo, se apoiando em caracterizações feitas pelo marxismo. No entanto, outra coisa é determinar se a utilização da primeira ou terceira pessoa gramatical em um relato responde a uma determinação de classe e não a problemas da linguagem ou das formas de representação.

Mas também, as definições do Proletkult pretendiam se fundamentar em sua capacidade de ser compreensíveis para as masas, elemento que já estava presente nas definições de Bogdanov [12]. Mas, por acaso O Capital seria menos científico porque sua leitura supõe sem dúvida um trabalho árduo? Não, refutará Trotski, e de fato, se a revolução atinge seus objetivos e a existência de classes passa a ser uma má recordação do passado, esse livro fundacional de Marx se convertirá em um “mero documento histórico, como o programa de nosso partido” [13]. Apelar ao gosto das massas como medida de avaliação implica justamente não questionar a ideologia dominante que sem dúvida seguirá existindo por um período mesmo nos momentos em que se encontra mais debilitada, como é no meio de uma revolução. Quem acredita que a classe está livre de conservadorismo, preconceitos ou atrasos não está olhando de frente para a realidade e pensando em políticas para mudá-la em sua raiz, mas se contentando com esquemas impotentes.

Voltando então à questão inicial: por que os bolcheviques iniciaram essa discussão nesse momento com vários dirigentes do partido em uma situação que não era em nada calma?

Por um lado, porque a discussão cultural de então, que teve um de seus eixos a questão do que fazer com a tradição anterior na construção do novo, era um eco de debates abertos também em outros terrenos, inclusive mais dramáticos, desde o militar ao econômico - e sobretudo em um país atrasado como a URSS.

Por outro lado, porque o debate da “cultura proletária” entre os marxistas do Partido Bolchevique não era somente literário; estava baseado em conceitos como o de hegemonia, aliança de classes, tarefas históricas de classe, ou seja, problemas importantes da teoria e da política revolucionária para pensar a transição ao socialismo.

Ao que parece, esses dirigentes estavam resolvendo as divergências que tinham sobre a dinâmica da revolução e os desafios da transição, num terreno menos “agudo”, num período em que começam a delinear-se duas alternativas que em breve irão se chocar: a ideia da possibilidade de construção do "socialismo em um só país" que Stalin esboça em 1925, ou as ideias que terminarão conformando a "teoria da revolução permanente" que Trotski desenvolverá mais de forma mais acabada nos anos seguintes.

Original: https://www.laizquierdadiario.com/Dossier-Marxismo-o-populismo-El-debate-sobre-la-cultura-proletaria


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FOOTNOTES

[2Fizpatrick, Lunacharsky y la organización soviética de la educación y las artes, Madrid, Siglo XXI, 1977, p. 120.

[3Mally, Culture of the future, Berkeley, California University Press, 1990, pp. 162-3. Traducción propia.

[4Sochor, Revolution and culture, Ithaca, Cornell University Press, 1988, p. 141

[5Compilado en Bowlt, Russian arte of the avant-garde, New York, Viking Press, 1976. Traducción propia

[7Transcrição taquigráfica da fala de Trotsky nesta reunião, que costuma aparecer como anexo nas edições de Literatura e Revolução. Aqui usamos a de Bs. As., RyR, 2015, p. 365

[8Ver, por exemplo, o estudo de Sochor, já citado

[9Fitzpatrick, “A. V. Lunacharsky. Recent Soviet Interpretations and Republications”, Soviet Studies 3, Vol. 18, p.288

[10Citado em Sochor, op. cit.

[11Trotsky, op. cit., pág. 362.

[12“O velho artista precisa valorizar, ou não, a clareza artística; para o novo artista, isso significa nada menos que a acessibilidade coletiva, e isso contém o significado vital do esforço do artista”, diz, por exemplo (op. cit.).

[13Trotski, op. cit., p. 365.
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