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DEBATE COM AS IDÉIAS DE ZIZEK | Marx e a "criação destruidora"

Simone IshibashiRio de Janeiro

domingo 9 de março de 2014 | 19:10

No último dia 8 de março, aconteceu no Sesc Pinheiros o debate com o filósofo esloveno, Slavoj Zizek, promovido pela Boitempo editorial, em aliança com um amplo leque de setores, dentre os quais a Fundação Lauro Campos do PSOL, a Fundação Rosa Luxemburgo, a Fundação Mauricio Grabais e a FAU/USP. Sob o tema Marx e a criação destruidora, o debate foi amplamente divulgado, e do lado de fora do teatro Paulo Autran um grande telão projetava pelas ruas do bairro de classe média alta uma imagem estilizada de um simpático Marx, com uma postura despojada e sorridente, tendo de trás de si a imagem do prédio Copam. Aparentemente a estratégia deu certo.

O auditório lotou com um público composto por estudantes universitários, docentes, membros da classe média culta paulista e afins, para ver o filósofo despojado que se reivindica influenciado por Hegel, Marx e Lacan, conhecido por suas críticas culturais a filmes como Batman, e que é certamente um dos mais influentes intelectuais nos ambientes acadêmicos do país atualmente. Cabe assinalar que é evidente que o fato de um evento convocado em nome de Marx reunir um público tão amplo, sobretudo se considerarmos que este não ocorreu em uma universidade, é um sinal interessante que indica que apesar dos ritmos da crise capitalista serem qualitativamente mais lentos em nosso país, há aqui também um reverdecer do interesse geral pelo marxismo. Isso independentemente dos acertos e erros das posições expressadas no decorrer do debate, questão que adentramos agora.

Chávez: um espectro que ronda a intelectualidade e a esquerda

Como não poderia deixar de ser, desde a apresentação dos promotores do evento até a fala do próprio Zizek, estiveram impregnadas de alusões e homenagens a Hugo Chávez, que chegou a ser citado por alguns organizadores como uma “demonstração das forças das ideias de Marx”. Zizek, por sua vez, iniciou o debate diferenciando as medidas de Chávez com as quais não concordava, como a aproximação daquele com os presidentes Lunashenko, Assad ou Ahmadinejad, ademais de denunciar medidas culturais que qualificou como estúpidas, como a proibição da veiculação do desenho norte-americano Os Simpsons. Entretanto, tampouco se absteve de embelezar politicamente o presidente venezuelano. Ainda que não possa equiparar-se nesse aspecto a outros intelectuais, como Tariq Ali para quem o “socialismo do século XXI” ou “socialismo com os empresários”, que nos anos Chávez concretizariam uma nova e correta estratégia para a emancipação dos trabalhadores e do povo pobre, Zizek também apresentou um Chávez que seria uma espécie de messias do povo pobre. Segundo o filósofo esloveno, Chávez teria visto que mais importante que as divisões de classe, hoje seria o apartheid social ao qual está submetido o povo pobre das favelas. Completa a ode a Chávez afirmando que este não apenas compreendeu as necessidades do povo pobre, como ainda haveria tentado “despertá-los”.

Na contramão disso, Chávez utilizou diversos meios para controlar, e no caso do movimento operário impedir, a mobilização independente da classe trabalhadora e dos pobres. Um exemplo importante disso foi o conjunto de leis aprovadas durante o seu governo, que fora responsável por processos judiciais imputados contra centenas de ativistas sindicais. O exemplo mais emblemático talvez seja o de Ruben Gonzalez Ferrominero, preso a mais de um ano e meio por fazer greve, e condenado a cumprir sete anos.

Além disso, as afamadas “missiones” nada mais foram que pacotes de concessões assistencialistas, cujo objetivo de nenhuma maneira era “despertar” o povo pobre, como quer Zizek, mas muito pelo contrário mascarar, através de muita verborragia bolivariana e concessões de grande monta aos mais ricos, uma situação de imensa desigualdade social que segue existindo. Mesmo as nacionalizações que Chávez realizou após a tentativa frustrada de golpe contra o seu governo em 2002, foram em verdade compras de empresas muito rentáveis para os seus proprietários anteriores. Frente a tudo isso, reclamar da proibição de veicular o desenho Simpsons enquanto se propaga que Chávez de alguma forma buscava despertar o povo pobre, como faz Zizek, pode até despertar simpatias, pela aparente audácia de introduzir a crítica pop em lugar de uma crítica acerca de qual estratégia o presidente bolivariano buscava. Mas não deixa de denunciar que apesar do discurso atrevido de Zizek de se negar a se render às demagogias que os intelectuais europeus destilam frente aos líderes pós-neoliberais latino-americanos, sua visão acerca do tema padece da mesma estreiteza.

Apartheid social versus divisão de classe: uma oposição duvidosa

Por outro lado, opor apartheid social e divisão de classe é uma posição no mínimo problemática. Primeiro porque para além do impacto discursivo, é claro que o apartheid social e as divisões de classe conformam uma unidade indissolúvel. Acaso existiria um sem o outro? Sendo assim, separar um elemento do outro serve apenas para se propagar a ilusão de que seria possível combater o apartheid social sem acabar com as divisões de classe. Um jeito novo de exprimir uma ideia gasta, velha e impraticável. E que por sua vez só pode estar a serviço de defender qualquer concessão reformista como a via para a superação de tal apartheid social.

Esta concepção encerra uma oposição sutil feita por Zizek entre a “favela” e a “classe trabalhadora”, que serve apenas para vaticinar como outros tantos intelectuais em moda hoje, o fim da luta de classes e da centralidade da classe trabalhadora como sujeito e portador de um projeto emancipador para o século XXI. Estranho raciocínio. Uma questão seria partir da dificuldade em superar o problema das burocracias sindicais e da degeneração dos partidos tradicionais da classe trabalhadora, que esta terá que superar para cumprir um papel político revolucionário e independente. Mas não se trata disso. Pressionados pelas dificuldades que uma política tão necessária como esta impõe Zizek, ao lado de uma ampla gama de intelectuais, prefere eleger outro sujeito que não a classe trabalhadora, como se nisso residisse a atualização exigida ao marxismo. Buscam nas condições objetivas, na formação das favelas, seus fundamentos.

Zizek deixa entrever que o crescente desemprego, e a proliferação da favela nos grandes centros urbanos abriria espaço para este outro sujeito, que embora não designe sob este termo seria uma espécie de “apartados”. Entretanto, cabe a pergunta, mas os moradores das favelas são o quê se não trabalhadores informais, terceirizados, precarizados ou ainda trabalhadores desempregados? A resposta, portanto não pode ser cair numa variação renovada do ceticismo reinante nas décadas anteriores, e proclamar o fim da luta de classes e da centralidade da classe trabalhadora. Seria antes refletir à luz do que mudou em nosso tempo como fazer com que esta emerja como sujeito, não apenas de lutas sindicais, mas de acordo com Marx como aquela classe que é portadora da transformação social da humanidade, pois “só pode emancipar-se como classe, arrastando detrás de si toda a massa dos explorados e oprimidos”.

A tão referida mudança social que operou ao longo das últimas décadas como consequência do aumento da população urbana em detrimento da rural, resultando na formação das imensas favelas, sobretudo nos países semicoloniais, favorece a tarefa de se colocar uma política capaz de levar à hegemonia proletária. Como se sabe, tanto no período precedente como ao longo da revolução russa de 1917 o tema de como soldar uma aliança revolucionária entre a classe trabalhadora, e os demais setores de outras classes como o campesinato, constituiu-se como um dos problemas fundamentais. Lênin e Trotsky, cada qual à sua maneira, haviam definido que a sobrevivência da revolução russa dependeria da capacidade do proletariado arrastar detrás de si as massas de camponeses pobres, separando-os dos ricos, e resolvendo suas demandas. Isso nem sempre foi tarefa das mais simples, ainda mais se considerarmos a existência de um partido camponês, os Socialistas Revolucionários, que borravam a distinção de classes entre camponeses pobres e ricos.

Decerto, hoje a questão da distribuição de terras nos países semicoloniais e dependentes ainda não foi resolvida. Mas a existência das favelas, habitadas por uma massa de pobres urbanos nas cidades, faz com que a questão de como levantar uma política de hegemonia da classe trabalhadora seja atualmente até mesmo mais direta, se a comparamos com o período em que a maioria da população vivia no campo. Uma razão responde a questões geográficas óbvias, pois ambos vivem nas cidades, e muitas vezes nas mesmas favelas. E a mais fundamental, por uma questão de classe, já que o deslocamento das massas anteriormente rurais para as cidades torna imprescindível o combate pela unidade das fileiras operárias, unificando trabalhadores desempregados, terceirizados e efetivos, que juntos devem defender um programa para que suas organizações respondam à demanda por moradias dignas para todos, expropriação dos imóveis atualmente destinados à especulação imobiliária, dentre outras que possam emergir. Há, portanto, que desmistificar este lugar comum surgido nas academias mundão afora, de que as favelas e uma identidade de periferia atuariam como um substituto da classe trabalhadora como sujeito. Essa realidade implica novas tarefas, mas não supera nem a luta de classes, nem a centralidade da classe trabalhadora. O motivo segue sendo o mesmo desde os tempos de Marx: pelo seu papel na produção que lhe lega a possibilidade de desferir um golpe de morte no centro nervoso do capitalismo, e abrir as portas de uma nova sociedade.

Combate ideológico a serviço de uma estratégia para vencer

Uma reflexão interessante feita por Zizek foi sem dúvida a contradição existente entre uma situação europeia que “beira a ser revolucionária” que, todavia, não vem acompanhada por direções claras sobre como resolver os problemas que aponta em meio à crise capitalista. Como sequência, apontou as falhas das concepções de Toni Negri, e sua teoria das multidões, demonstrando a ausência de uma direção e uma pretensa verticalidade do movimento não são fortalezas, mas debilidades. Aqui traçou um paralelo elegante entre o papel das direções e o conceito psicanalítico de transferência, que grosso modo se caracteriza por transferir uma expectativa de um indivíduo a outro, que melhor dá voz ao que o primeiro deseja, já que possui uma consciência mais integral do que é almejado.

Também criticou os que condenam moralmente a violência por si, utilizando o exemplo de Stalin, cuja violência perpetrada pela sua dominação só poderia ser compreendida através de uma crítica profunda em relação às falhas de seu projeto político e social, materializadas, por exemplo, nos giros entre a palavra de ordem “enriquecei-vos” voltada aos kulaks, e a violenta coletivização forçada promovida pelo stalinismo quando estes se tornaram uma ameaça. Neste sentido, concluía que a violência neste caso, seria um sinal mais de impotência que de força. Ainda que no que se remeta à Stalin esta definição seja inquestionável, Zizek escapa de levar sua crítica à leitura da violência até o final, e não assinala claramente que nem toda violência é sinal de impotência, como no caso da violência revolucionária. Portanto, ao não fazê-lo não arranca completamente a noção de utilização da violência do seu invólucro abstrato, ao não determinar a diferença que existe quando esta é exercida em nome de uma classe ou outra, o que sempre termina servindo, quer o autor queira, quer não, à leituras passíveis a mistificações.

Mas talvez o ponto alto de sua exposição seja mesmo a crítica ao “cinismo realista”, que termina por fazer com que os portadores desta posição sejam, em suas palavras, os “mais cegos para o que está acontecendo”. Torna-se claro como o cinismo realista em tempos de crise mundial como o que atravessamos termina sendo não uma posição mais conscienciosa, mas somente um atestado de acomodação. Neste sentido, Zizek aponta como o principal erro que adviria desta apreciação seria acreditar que vivemos numa época cínica, cuja crítica da ideologia não mais seria necessária, na medida em que não traria nenhum efeito. Termina afirmando que justamente por que a sociedade capitalista multiplicou imensamente as formas através das quais cada indivíduo se percebe como uma pequena empresa, que se endivida para “investir no futuro dos filhos”, “investir em uma velhice tranquila”, e um longo etc, é que a crítica à ideologia é tão necessária.

Concordamos. Com um, acréscimo, porém. Da mesma maneira como o lugar do fetichismo da mercadoria é a mercadoria real, o lugar efetivo da crítica ideológica, ainda mais vivendo os tempos que se abrem, é o combate pela emergência de um marxismo com predominância estratégica. Assim, a definição de Zizek de que o mais difícil numa revolução é mudar a vida comum, os hábitos cotidianos, se torna uma tautologia se não se luta pela revolução. A crítica ideológica dos mecanismos de dominação expressos em filmes, livros e frases é importante na medida em que desvelam a amplitude dos mecanismos de dominação do capitalismo, que aparece como antropológica na noção de que o homem só pode existir dominando uns aos outros, e assim sempre será. Mas tal crítica não pode preencher a lacuna da necessidade de um marxismo que responda ao dilema de como escancarar as portas das “situações quase revolucionárias”, e faça emergir a classe trabalhadora arrastando detrás de si o conjunto dos explorados e oprimidos. Toda a fortaleza da crítica ideológica é necessária para aí desembocarmos.


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Marxismo    Teoria



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