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Malraux e Trotski: a literatura na história da Revolução chinesa

Afonso Machado

Malraux e Trotski: a literatura na história da Revolução chinesa

Afonso Machado

A Águia e o Dragão assumem posições estratégicas em 2022, estudam reciprocamente os seus movimentos, enquanto parte significativa do globo, seja no ocidente ou no oriente, se depara com a fome e a exploração.

Basta um pouco de sensibilidade política e percepção econômica para constatar que perante as tensões geopolíticas da atualidade (expressas de maneira mais aguda nas disputas entre o imperialismo europeu personificado na OTAN e oligarcas russos) quem paga o pato são os trabalhadores de leste a oeste, de norte a sul. Dentro do amplo espectro político deste contexto histórico, não é raro encontrarmos entre especialistas em política internacional uma análise que levanta a hipótese do ocidente estar perdendo sua hegemonia de séculos para a China. Até o mais desavisado dos leitores trabalhadores que passa rapidamente/superficialmente os olhos pelas notícias, sabe que neste vespeiro da atual conjuntura geopolítica, a China vem se confirmando como antagonista dos Estados Unidos. Este mesmo leitor “ ouve falar “ que aquele gigante econômico da Ásia é um país “ comunista “. Todavia, nós sabemos que a China está muito longe de representar o comunismo, logo os interesses históricos dos trabalhadores. É por estas e outras que os trabalhadores precisam conhecer a história da Revolução chinesa em seu sangrento desabrochar.

André Malraux e a Revolução chinesa

Foi lá nos longínquos anos de 1920 que o proletariado chinês viu sua revolução escapar pelos dedos, ao passo que a continuação da luta revolucionária naquele país entre as décadas de 1930 e 1940 viria paradoxalmente acompanhada de deformações burocráticas e autoritárias como ilustra a Revolução de 1949. Tendo em vista que o proletariado dos nossos dias pode aprender um bocado com os primeiros passos da Revolução chinesa, encontramos na literatura do escritor francês André Malraux fontes importantíssimas que ajudam a contar esta história. A crescente insurreição das massas chinesas a partir da década de 1920, fez com que o país assumisse a forma de um vulcão desperto. Após as primeiras explosões deste vulcão na China , quando a lava ainda escorria fresca pelo cenário político internacional, Malraux redigiu dois romances emblemáticos sobre o assunto: Os Conquistadores (1928) e A Condição Humana (1933). Ao nos debruçarmos sobre o processo revolucionário chinês, encontramos imagens de combate e resistência do povo que contrastam rigorosamente com as estruturas políticas deformadas da futura República Popular da China. É curioso notar como a literatura de um escritor estrangeiro, inserida nos primórdios da Revolução chinesa, contribuiu para que estas imagens revolucionárias fossem difundidas pelo mundo.

Malraux, protótipo daquilo que no século XX era definido como intelectual engajado, registrou nos dois referidos romances a China insurgente dos anos de 1920. São obras que desafiam as fronteiras entre o relato histórico e a narrativa ficcional, ou melhor dizendo, são produtos literários em que a imaginação do autor faz a ficção se confundir com os acontecimentos históricos . O romance A Condição Humana em particular, não é apenas uma das maiores obras primas da literatura do século passado. Trata-se de um cristal literário que apesar da profunda dimensão trágica que exprime, fotografa com uma escrita que se comporta como câmera as cenas inesquecíveis da luta de classes na China de 1927. O retrato que este romance realiza coloca a nossa imaginação histórica nos caminhos não percorridos do século passado.

A exemplo da fracassada Revolução alemã de 1918, ficamos pensando o que poderia ter ocorrido no tabuleiro geopolítico do século XX se o proletariado chinês tivesse sido vitorioso em Xangai durante a fatídica Revolução de 1927. Não se trata no entanto de colecionar derrotas históricas do proletariado. Através das experiências estéticas fornecidas pela literatura de autores como Malraux, visualizamos as ações das massas revolucionárias, as lutas dos personagens históricos que mesmo derrotados inscrevem-se em nossa mente como lutadores: apesar destes personagens revolucionários terem sido vítimas dos carrascos das classes dominantes, tornam-se em contrapartida imagens portadoras de outras possibilidades, do “ Se...“ na história, ou seja, de uma outra história possível tal como Walter Benjamin concebeu em termos filosóficos.

Diante das históricas formas de exploração do povo chinês e da selvageria imperialista, não nos surpreende que a China tenha sido um palco revolucionário no século passado. O país era saqueado por potências imperialistas como Grã Bretanha, França e Japão. Entre a segunda metade do século XIX e a primeira metade do século XX, a China era um “melão” cujas fatias eram devoradas pelo imperialismo. Realizavam-se “negócios da China “ que atendiam aos consórcios comerciais estrangeiros. Campanhas racistas eram promovidas pelos imperialistas enquanto os trabalhadores chineses eram usados como mão de obra barata, carregando nos riquixás gordas e gordos burgueses europeus por inúmeras ruas de cidades como Hong Kong. A arte de gravuristas chineses de esquerda como Lan Jia, denuncia este estado de coisas. Negociantes ingleses promoviam o vício em massa de ópio, massacrando a autoestima dos chineses. Entretanto, o povo chinês resistiu durante todo este período histórico, mobilizando inclusive a força da sua cultura contra o imperialismo, fazendo uso das suas tradições marciais como tão bem registra a Revolta dos Boxers de 1900. Sob a auspiciosa influência da Revolução russa de 1917, trabalhadores e intelectuais chineses procuram colocar a sua própria revolução em movimento.

A rigor, a história da Revolução chinesa pode ser dividida em três etapas: a Primeira Guerra Civil(1927-1937), seguida pela luta contra o imperialismo japonês que intensifica-se no final da década de 1930 e adentraria pelos quadros históricos da Segunda Grande Guerra(1939-45), e finalmente a Segunda Guerra Civil(1946-1949). A literatura de Malraux situa-se nos momentos iniciais da primeira etapa deste processo histórico: o romance Os Conquistadores se passa durante a época da greve geral dirigida por Cantão em 1925 e o romance A Condição Humana durante a já referida insurreição operária de 1927 em Xangai. Mas o que existe de documental e de ficcional nos romances de Malraux sobre a Revolução chinesa? O autor estrangeiro compreendia de fato a questão da revolução proletária naquele país? Antes de tentarmos responder a estas questões de ordem política e literária, façamos um breve esboço da trajetória deste célebre romancista francês que iria deparar-se com a rigorosa análise de Leon Trotski e sua teoria da Revolução permanente.

Malraux, personagem do século XX

André Malraux é um escritor de várias faces e de muitas contradições. O autor possui uma trajetória incomum: num mesmo homem encontramos o artista, o aventureiro, o combatente e o burocrata. Ele foi o herói da Esquadrilha Escañ que lutou contra as tropas de Franco, então apoiadas militarmente por Mussolini e Hitler durante a Guerra Civil Espanhola (1936-39). O autor atuou nada menos como Maqui, enfrentando o Terceiro Reich durante a ocupação nazista na França. Mas este mesmo personagem heróico também foi Ministro da Cultura do conservador governo De Gaulle entre os anos de 1959 e 1969, encontrando-se numa situação politicamente constrangedora diante das revoltas estudantis e operárias do Maio de 1968 em Paris. Malraux esteve ligado ao Partido Comunista Francês mas não deixou de realizar publicamente durante os anos de 1930 a defesa de Trotski, alvo das calúnias stalinistas. Porém, apesar de aproximar-se em determinado momento de Trotski, Malraux não foi propriamente um intelectual trotskista: Natália Sedova, viúva de Trotski, acusou abertamente Malraux de ser stalinista; e de fato ele ficou um bom tempo mantendo relações com stalinistas. Feitas estas reservas políticas quanto a contraditória personalidade de Malraux, devemos frisar o seu papel progressista dentro das lutas anticolonialistas na Ásia da década de 1920: é aqui que o artista revolucionário e o intelectual combatente mostram o seu melhor perfil.

É verdade que para alguns comentadores, Malraux, quando encontrava-se no Camboja em 1923 com sua companheira Clara, não tinha a principio nenhuma motivação política nobre: segundo os mesmos comentadores, os dois foram “ roubar “ obras de arte no templo Banteai Srey, localizado na Estrada Real que liga Dangrek a Angkor. O objetivo da expedição chefiada por Malraux para encontrar o templo situado no meio da selva, seria o de vender as suas relíquias para antiquários da Europa e dos Estados Unidos. Mas para outros comentadores, Malraux estava longe de ser um ladrão de obras de arte: haveria uma autorização oficial conseguida por Malraux e Clara para a realização de buscas arqueológicas na região. É difícil saber o que realmente rolou. Para todos os efeitos, este episódio acabaria por propiciar um novo momento na vida de Malraux, um divisor de águas na sua trajetória: ele passaria a caminhar pela trilha da luta política.

As autoridades já estavam de olho na expedição dos jovens franceses quando objetos do templo foram retirados e encaixotados. Malraux recebeu voz de prisão, sendo posteriormente julgado e condenado a um ano de reclusão com sursis pela Corte de Saigon em 1924. Consta que Malraux não chegou a ser encarcerado, estava autorizado a circular até os limites das cidades de Phnom Penh e Saigon(esta última atualmente chamada de Ho Chi Minh). Por esta época Malraux convive com a população local e toma conhecimento da causa de libertação dos indochineses. O autor que pertence a uma geração de artistas e intelectuais rebeldes contrários aos padrões da cultura dominante francesa, adquire consciência sobre as injustiças cometidas pelo imperialismo, isto é, o violento domínio neocolonial exercido pela França na região. Ele torna-se um escritor defensor dos combates anticolonialistas na Ásia, estabelecendo relações políticas com organizações autonomistas anamitas e também com revolucionários chineses. A atividade de Malraux como romancista se desenvolve neste período em que o autor assume uma posição política de combate ao imperialismo. Sua escrita iria ao encontro da Revolução chinesa.

Malraux narra a Revolução chinesa segundo uma estratégia literária em que a reportagem e o romance se interpenetram: fatos históricos definem os cenários e as situações a partir dos quais os elementos ficcionais se desenvolvem. Estudiosos da vida e da obra de Malraux discutiram muito sobre o fato do autor ter ou não ter vivenciado os acontecimentos revolucionários na China. Existe aparentemente o consenso de que Malraux e Clara foram até Hong Kong em 1925 com o intuito de conseguirem equipamentos para a impressão do jornal anticolonialista L´Indochine Enchainée, que seria publicado na antiga Saigon. Naquele momento Hong Kong vivia a época da memorável greve geral capitaneada por Cantão, que ecoava pelas cidades chinesas. Durante esta breve estadia o escritor reuniu relatos orais e escritos, depoimentos e documentos sobre histórias que contam a rebelião de coolies, operários e camponeses. Malraux teria pisado novamente na China em 1931, tendo passado por Cantão, Xangai e Pequim.

A literatura revolucionária de Malraux e o debate com Trotski

Todo o material histórico que Malraux obteve sobre as recentes lutas revolucionárias de então, seria utilizado na sua cozinha literária. Todavia, a questão é controversa: certos biógrafos afirmam que Malraux participou diretamente da agitação revolucionária chinesa que ele descreve. Independentemente do autor ter participado ou não da Revolução chinesa, o fato incontestável é que ele apresenta através de dois romances uma notável contribuição para a literatura revolucionária. Se do ponto de vista da técnica literária o romance A Condição Humana representa um enorme ganho expressivo e dramático, em que os personagens se individualizam e tornam-se pela sua profundidade psicológica e posição política tipos históricos inesquecíveis, na obra Os Conquistadores encontramos um romancista promissor embora com a mão ainda desprovida de maior destreza e percepção histórica. De fato Os Conquistadores é um romance extraordinário, mas a exposição dos acontecimentos é prejudicada pelas confusões históricas do autor. Será com A Condição Humana, memorável novela histórica ganhadora do premio Goncourt, que Malraux imprime uma narrativa épica, moderna, influenciada por procedimentos cinematográficos capazes de fazer o leitor enxergar as massas revolucionárias chinesas sendo freadas pela burocracia soviética.

Os Conquistadores situa-se historicamente no momento em que o proletariado chinês insurge-se contra a presença imperialista, protagonizando greves gerais. O livro acaba por registrar a orientação burocrática de Moscou: segundo a burocracia soviética daquele período, a China ainda não estaria “ madura “ para uma revolução proletária. Os militantes chineses que integravam o PCC (Partido Comunista Chinês) eram orientados a estabelecer aliança com o Kuomintang (Partido Nacionalista), atuando assim ao lado dos setores nacionalistas da burguesia. Ou seja, é aquele velho conto de fadas baseado na equivocada ideia de uma encantada “burguesia progressista“, que no contexto chinês em particular alia-se com os trabalhadores no combate ao poder regional dos Senhores da Guerra e ao domínio das potências estrangeiras. Perante a história, não iria demorar muito para que as forças do Kuomintang passassem das mãos do agonizante Sun Yat-sen, líder político intimamente ligado ao florescimento da República em 1911, para as mãos do general Chiang Kai Chek. Não era preciso ser um profundo conhecedor de política na época para constatar que este general e seus subordinados eram além de nacionalistas, anticomunistas ferrenhos. A interpretação da formação histórica da China e a direção política a ser dada para a Revolução chinesa, eram questões que circunscrevem-se, naquele momento da história do movimento operário internacional, dentro das disputas entre Trotski e Stálin. Trotski defende a condução da luta revolucionária contra o imperialismo a partir da independência política da classe operária; ele inclusive fala da necessidade de conselhos operários na direção independente do processo revolucionário chinês. Já Stalin defende a fantasiosa tese de uma fase democrático-burguesa da revolução, adiando (sabotando?) o projeto da revolução proletária na medida em que é estabelecida a aliança política entre proletariado e burguesia.

No romance Os Conquistadores, Garine e Borodine são os personagens de destaque. Garine é um aventureiro que encontra na luta revolucionária uma resposta para superar suas angústias existenciais. Outrossim, as implicações filosóficas mais profundas do marxismo são estranhas a ele. Já Borodine, representa o Comintern, atuando como conselheiro no governo de Cantão. É interessante notar como este e outros personagens representantes da burocracia colocam-se acima do proletariado, conduzindo uma política que não consiste na interpretação objetiva da história mas numa tirânica apropriação em que estes colocam-se como guardiões daquela. Os Conquistadores inscreve-se contraditoriamente no campo da literatura revolucionária: as brilhantes imagens reveladoras da tomada de consciência do proletariado chinês contrastam no plano do romance com a reprodução de uma ótica deformada da direção política do proletariado.

Os Conquistadores receberia a atenção de Trotski, que no seu artigo A Revolução Estrangulada ( 1931), realiza uma análise literária e política que corrige os equívocos do romance. O revolucionário russo considera a obra como “ excepcional “ , reveladora do olhar perspicaz e original de um artista. Trotski comenta a prosa de Malraux considerando-a uma crônica romantizada da Revolução chinesa. Segundo Trotski:

(...) “ A crônica não está completa. Vigor social ás vezes está faltando na imagem. Mas para isso passam ao leitor não apenas episódios luminosos da revolução, mas também silhuetas nítidas que ficam gravadas na memória como símbolos sociais (...)

Trotski considera que as simpatias de Malraux pela China insurgente são inconfundíveis. Entretanto, ele afirma que falta ao autor do romance uma afinidade congênita com a sua heroína, isto é, a revolução. Malraux é considerado pelo crítico e dirigente político como um observador europeu que apresenta certa timidez diante do significado histórico do levante proletário na China. Trotski assinala que os acontecimentos revolucionários chineses possuem para o destino da cultura humana uma importância incomparavelmente maior do que a vida política dos parlamentos europeus e a literatura produzida nestes países. Mas Malraux não parece naquele momento fazer parte propriamente do túmulo cultural do velho mundo europeu: como o próprio Trotski destaca, existe no romance uma fina intensidade que mostra como o ódio revolucionário surge do jugo, da ignorância, da escravidão.

Se Trotski considera a importância histórica de revelar na literatura os sentimentos que culminam na postura revolucionária, ele também mostra que Malraux não aborda na sua dimensão histórica profunda as massas chinesas em luta, comportando-se de acordo uma postura blasé. O revolucionário russo segue atingindo as debilidades políticas do Comintern expressas na narrativa de Malraux: ao invés de orientar as massas para a realização da sua revolução, o Comintern contribui com o agravamento da principal debilidade das massas, ou seja, seguir os exploradores e não se libertar do jugo da opressão de classe. Trotski observa:

(...) As massas chinesas se levantaram por uma insurreição revolucionária, sob a influência inconfundível de Outubro como o seu exemplo e com o bolchevismo como sua bandeira. Mas “ os conquistadores “ nada conquistaram. Pelo contrário, eles entregaram tudo ao inimigo. Se a Revolução russa provocou a Revolução chinesa, os epígonos a suprimiram. Malraux faz essas deduções. Ele nem parece pensar neles. Elas apenas seguem ainda mais claramente a partir de seu livro notável. “(...).

A Revolução chinesa que foi profundamente influenciada pela Revolução russa de 1917 fica a mercê de uma direção política que nega Outubro. Alguns críticos afirmam que embora Trotski considere os elementos estéticos do romance, ele teria pego muito pesado, teria sido excessivamente rigoroso com Malraux, tratando-o como um militante revolucionário que estaria supostamente engajado na condição de estrangeiro na Revolução chinesa. Entretanto, Trotski considera muito bem o papel do artista e o papel do revolucionário como não sendo necessariamente o mesmo: ele afirma que não está escrito em lugar algum que um escritor talentoso deve ser necessariamente um revolucionário proletário. Malraux tentou, aliás muito precariamente, endereçar uma réplica a Trotski, defendendo as posições do Comintern na China e alegando que sua obra não seria uma “ crônica romantizada “ mas sim um romance e , enquanto tal, apresenta julgamentos de personagens distintos e em momentos particulares. Para Malraux, naquele momento histórico, o único caminho político possível na China seria o da aliança entre burguesia e proletariado. Voltando ao tema da Revolução chinesa e ao embate com Malraux no artigo Uma Revolução Estrangulada e seus Estranguladores (1931), Trotski constata:

(...) “ Como publicitário político, Malraux está ainda mais distante do proletariado e da revolução do que como artista. Por si só, esse fato não justificaria essas linhas, pois em nenhum lugar se diz que um escritor talentoso deve ser necessariamente um revolucionário proletário “ (...).

O problema literário central está na representação equivocada da história, na leitura incorreta da realidade política/social expressa na imagem literária. Para que um romance político se aproxime do proletariado, se faz necessário considerar a abordagem crítica dos temas históricos: ao mergulhar no terreno da história, o romancista não pode permitir distorções da realidade representada. Malraux daria um verdadeiro salto enquanto artista com o romance A Condição Humana. Este romance torna-se expressão consciente de um autor que na sua solidão de intelectual que simpatiza-se com os oprimidos, aborda a tragédia revolucionária de acordo com a riqueza psicológica de personagens coexistindo com panoramas coletivos da Revolução de 1927. Mas de onde viria o caráter trágico da Revolução chinesa expresso por Malraux? Seria algo enraizado numa postura nietzcheana , da qual aliás Malraux era claramente influenciado? Não, o quadro melancólico do romance e as assombrosas reflexões dos personagens, que em certo sentido são precursoras da postura filosófica do existencialismo francês, nascem de um cenário histórico muito particular: a tragédia estava antes na aliança política entre os comunistas chineses e o Kuomintang de Chiang Kai Chek. Trotski havia prevenido o proletariado chinês sobre este grave erro político.

Ambientado em Xangai, o romance A Condição Humana narra a partir do dia 21 de março de 1927 os subterrâneos noturnos que preparam uma revolução abortada. Em meio a riquixás, bondes, fumaça de carvão e chuvas torrenciais, revolucionários como Kyo, Katov e Tchen procuram armar os operários e coordenar a revolução, ao mesmo tempo que travam embates com a burocracia do PCC. Algumas páginas que se passam na Delegação da Internacional revelam o conflituoso diálogo entre o revolucionário Kyo e o burocrata Vologuine: Kyo pronuncia-se contrariamente ao desarmamento das seções operárias de combate, defendendo a saída do Kuomintang, a organização de um Partido Comunista independente e o poder dos sindicatos. Vologuine, fiel ás orientações contra-revolucionárias de Stálin promotoras da fase “democrático burguesa“ da revolução, é inflexível e afirma que as ordens de Moscou consistem em entregar as armas. O raciocínio histórico etapista do stalinismo, que portanto fecha os olhos para o movimento dialético da história, organizaria uma trágica derrota do proletariado.

A Condição Humana exprime uma posição política distinta do romance anterior, afinal, Malraux aproxima-se da perspectiva dos comunistas que batem de frente com a direção do Comintern. É neste sentido que nota-se até certo ponto a influência da visão política trotskista em Malraux. Especula-se sobre a influência de Trotski na vida de Malraux naquele momento: o revolucionário russo e o escritor francês teriam se reunido em 26 de julho de 1933, quando Trotski encontrava-se exilado na França. Ao que parece a conversa foi longa entre os dois. Trotski ficou muito entusiasmado com o romance A Condição Humana , impressionado com a habilidade literária de Malraux. Mas o diálogo entre Malraux e Trotski dura pouco. O primeiro não se distancia das posições do Partido Comunista Francês, em especial durante o período da Guerra Civil Espanhola. Seria a partir deste outro dramático episódio histórico do século XX, que Malraux iria redigir o romance A Esperança, mais um extraordinário relato histórico em que a reportagem e a literatura fundem-se de maneira soberba.

No romance A Condição Humana, a percepção crítica da política da esquerda oficial soma-se a notória exposição de um vasto panorama humano de sentimentos, incertezas e interesses de classe: o profundo mal-estar no assassinato, a embriaguez através do ópio e do álcool , o dilema da morte individual perante a história, as dolorosas questões do amor no inconstante cenário da revolução, o vazio existencial, a solidão e as mesquinharias da intimidade burguesa, das relações políticas e do jogo econômico imperialista expresso na política dos consórcios etc. Como explica Ivo Barroso, é um romance extremamente influenciado pelo ritmo da reportagem e pela linguagem cinematográfica. O entendimento político que permite a crítica às deformações do stalinismo, combina-se no romance com um procedimento estético capaz de narrar brilhantemente as cenas dos conflitos armados:

(...) “ Segunda salva. Estavam agora entre os policiais, preparados e senhores do andar, e os novos atacantes que não viam, naquela sala aonde a gasolina escorria. Todos os do grupo de Tchen estavam de borco do chão, os prisioneiros amarrados a um canto. Se uma granada explodisse ali, o fogo ateava. Um deles no chão resmungou, apontando com o dedo; um franco atirador num telhado; e á extrema esquerda da janela, um ombro á frente no campo de visão, surgiam cautelosos outros irregulares. Eram revoltosos, do lado deles “(...).

A agilidade cinematográfica da escrita de Malraux, sua habilidade jornalística que fornece através da estrutura da reportagem eletrizante uma sensação de testemunho sobre acontecimentos descritos, se dão como dito num quadro melancólico, em que personagens exprimem uma crise existencial que vai do individual ao coletivo, da taciturna luta clandestina até o trágico desfecho em que o carrasco Chiang Kai Shek atira, na fornalha de um trem, comunistas chineses. O livro apresenta uma profunda reflexão sobre a condição do humano em uma época revolucionária; afinal, em determinados momentos da história da luta de classes ocorre a trágica aproximação com a morte:

(...) “ Em meio à noite, o oficial voltou. Com um estrépito de armas que se chocam , seis soldados se aproximaram dos condenados. Todos os prisioneiros estavam despertos(...) Um ruído de respirações profundas , o mesmo sono, começou a subir do chão: respirando pelo nariz, as mandíbulas cerradas , imóveis agora, todos os que ainda não estavam mortos esperavam pelo apito “(...)

Os descaminhos da Revolução chinesa

A história da Revolução chinesa seguiria por caminhos ainda mais tortuosos. Durante o processo de repressão do Kuomintang sobre os comunistas, líderes como Mao Tsé Tung, Lin Biao e Chou Em-Lai conseguiram escapar com vida. Segue a esse período a Longa Marcha, iniciada em 1934, verdadeira saga revolucionária que termina com uma vitória estratégica. Após atravessar 10 mil quilômetros de terras num espaço de 370 dias, A Longa Marcha arou o terreno político para o que viria a seguir: Mao levantaria um exército popular apoiado no campesinato e os comunistas fariam mais uma estranha (e indevida) aliança política com Chiang Kai Chek para, agora, escorraçar os japoneses imperialistas. As tropas de Mao e Chiang se enfrentariam na Segunda Guerra civil. Obtendo o apoio das massas Mao derrota as forças de Chiang e junto ao Exército Vermelho adentra por Pequim em 1 outubro de 1949. O caminho estava aberto para o surgimento da República Popular da China. Entretanto, esta importante Revolução popular não é propriamente socialista.

Na Revolução chinesa de 1949 verificamos profundas contradições. Nas solas gastas das botas dos militantes e dirigentes políticos encontramos as marcas das deformações políticas do marxismo, a sujeira da burocracia, a lama da aliança com capitalistas, as ervas daninhas do autoritarismo e da manipulação de massa, o equivocado nacionalismo campesino que vira as costas para o internacionalismo, ou seja, o aspecto central da Era das revoluções proletárias. No final das contas, acabamos por concluir que o maoísmo nada mais é do que uma variação muito particular do stalinismo. Sucede-se aos desastres econômicos, políticos e culturais do período maoísta a janela aberta por Deng Xiaoping para o ocidente: além das moscas uma série de seres peçonhentos que o capitalismo produz adentrariam pela China. Assistimos agora ao processo histórico que configura hoje o que alguns chamam de ornitorrinco político, o que outros classificam estranhamente como “ economia mista“. Mas do ponto de vista marxista, não tem o menor cabimento classificar de “socialista“ um país onde a voz do empresariado se sobrepõe à voz dos trabalhadores, em que a classe trabalhadora não protagoniza a vida política. A China é uma potência governada pelo Partido Comunista. Todavia, o proletariado chinês é explorado, tal como atestam por exemplo as péssimas condições de vida e trabalho nas minas de carvão.

É no início da história da Revolução chinesa, portanto nos turbulentos anos de 1920/30, que encontramos a partir da análise política de Trotski e da literatura de Malraux reflexões que nos ajudam a compreender a China contemporânea. Não apenas o processo revolucionário chinês é feito de muitas contradições como o próprio romancista que o narra possui igualmente inúmeras contradições. Malraux é o intelectual em crise olhando com simpatia para a revolução proletária fracassada. Esta experiência convertida magnificamente em literatura torna-se uma lição histórica para a classe trabalhadora.


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