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CULTURA | Luis Buñuel: cinema como instrumento de subversão

terça-feira 2 de fevereiro de 2016 | 01:00

No último dia 10 de janeiro se completou 43 anos desde que o cineasta Luis Buñuel foi premiado com o Oscar de melhor filme estrangeiro por "O discreto charme da burguesia", um prêmio que se recusou a receber pessoalmente. Fazemos aqui um percurso através de sua extensa e perspicaz obra.

Antes de falar sobre o trabalho de alguém como Luis Buñuel, seria necessário falar sobre sua vida, da qual podemos sem dúvida destacar os elementos que marcam a arte desse grande diretor espanhol. Destes elementos poderíamos apontar alguns bem identificáveis: a religião, a burguesia, a desigualdade de classes, as imagens surrealistas, os sonhos e o inconsciente. Essas obsessões remontam, como ele próprio salientou em muitas entrevistas que realizou durante a sua vida, a sua infância e juventude.

Um dos elementos centrais da filmografia do diretor, como pode ser visto em filmes como “Nazarín” ou “Simão do deserto”, é a religião cristã. Segundo suas próprias palavras, seu primeiro desencontro seria com os Jesuítas. Antes de entrar na famosa residência de estudantes, estudou em um colégio de Jesuítas. Para além deles, outra poderosa influência será sua mãe, que era muito religiosa. Desta primeira educação permaneceu na memória do diretor os castigos que imputavam os padres aos estudantes, embora desde pequeno a tendência para a rebelião fosse sempre um recurso de Buñuel: parece que uma vez ficou bêbado com alguns amigos e terminou vomitando na Igreja, entre outras peripécias. No entanto, não podemos subestimar a influência da religião em Buñuel. Nos dois filmes citados, e ainda em outros, o conflito entre a dura realidade e os ideais cristãos atinge uma tensão sublime. Tanto que “Nazarín”, por mais incrível que pareça, foi elogiado pela Igreja.

A vida que teve Buñuel está ligada, certamente, à classe social a que pertenceu e da qual sempre renegara. Seu pai era um homem rico, e portanto, a posição de que gozava Buñuel era privilegiada. Em toda a sua obra aparece permanentemente uma tendência para criticar mordazmente os vícios da burguesia. Isto é claramente visto em filmes como o “Anjo exterminador” ou “O discreto charme da burguesia”.

No entanto, sua reação estética e fundamentalmente política, não poderíamos chamar de outra forma, não está limitada a uma denúncia ou a um argumento de carácter panfletário, como infelizmente poderia ser criticado o realismo socialista. A narrativa de Buñuel, que é sempre misturada com imagens oníricas (influência do surrealismo francês), se liga muito estreitamente com a crítica social, mas de uma forma sutil e radical ao mesmo tempo.

Como já mencionado, ele participa de uma importante residência estudantil onde já é bem conhecida as amizades com muitos grandes personagens, entre eles Federico García Lorca e Salvador Dalí. Com esses companheiros também irá desafiar a sociedade conservadora em que viviam. Contam que quando ainda eram estudantes, roubavam uniformes militares ou roupas de sacerdotes e se disfarçavam com elas. A provocação, o escândalo e a irreverência estavam sempre presentes.

Depois de terminar seus estudos, partiria para França. Estando em Paris ele encontrou trabalho com Epstein, em um estúdio. É seu primeiro contato com a indústria cinematográfica. Infelizmente, embora muito de acordo com sua personalidade, ele seria expulso pelo mesmo Epstein. O conflito é bastante conhecido: Epstein solicitou a Buñuel para trabalhar com Abel Gance, que já era um cineasta reconhecido. Buñuel não gostava dele, então se recusou. Isto escandalizou Epstein, que lhe pediu para sair do estúdio. Antes de se separar lhe aconselhou a não se encontrar com os surrealistas, com os quais Buñuel era simpático (eles também sentiam desprezo por Abel Gance). Certamente Buñel não ouviria esse último conselho. Além disso, é com os surrealistas que realizou seu primeiro filme, e talvez o mais famoso de todas as suas criações: “O cão andaluz”.

A vida de Luis Buñuel parece ser atravessada pela rebeldia e pelo escárnio para com as tradições mais sagradas. O mesmo afirma que a religião, a pátria, a família e a cultura são instituições hipócritas e amorais. E toda a sua obra é uma reação contra essas mesmas instituições. A sua posição ética e política sempre o conduziu inevitavelmente a sofrer censura.

A segunda das suas criações: “L’Idade d’Or”, foi o primeiro filme do diretor a sofrer este destino. O governo francês proibiu que fosse exibido depois de uma terrível primeira apresentação onde houve uma enorme violência contra a arte de Buñuel e de outros artistas, incluindo Picasso, Man Ray e Picabia, cujos quadros foram feitos em pedaços.

Esta era a época dos grandes movimentos sociais. Não é por acaso que houveram artistas que pretendessem renovar as concepções mais clássicas da arte. É esta provavelmente uma das ideias mais radicais das vanguardas. E mais ainda, é a idade de ouro do nascimento do cinema e a sua consolidação como arte, buscando seu lugar entre as já consagradas formas de expressão, como a música, a pintura ou a literatura, e alcançando um lugar privilegiado entre elas. Uma época de criatividade e força nas mentes dos artistas da primeira metade do século que se encontravam entre dois conflitos que iriam mudar o mundo para sempre, e dos quais a arte não sairia ilesa.

O terceiro filme que realizou, “Hurdes, terra sem pão”, também sofrerá censura, e desta vez, assombrosamente, por parte do governo da segunda república espanhola. Buñuel retornou a Espanha para contribuir com a república, e com ajuda de um amigo anarquista produziu Hurdes, que é um documentário que mostra as paupérrimas e miseráveis condições de vida de uma comunidade da Espanha. Este governo tomou o filme como algo que lhe atacava ao questionar a miséria em uma zona do país, então proibiu a sua apresentação e pediu que outros países não o exibissem. Buñuel não voltaria a dirigir oficialmente outro filme até muito mais tarde.

Com a iminente fracasso da república, o diretor ficará isolado nos Estados Unidos. Em sua segunda estadia no país americano ele se vê incapaz de regressar a Espanha. Estava ali como um representante da república e ao terminar a guerra, acabou ficando só. Encontrou trabalho no departamento cinematográfico do Museu de Arte em Nova Iorque, mas os conflitos não o deixaram de aparecer. Dalí, em uma polêmica declaração publicada em suas memórias, acusa Buñuel de ateu e comunista. Quando perguntado se era verdade que ele tinha gravado “L’age d’or”, ele respondeu que sim. O arcebispo de Nova York se escandalizou por que eles estiveram trabalhando com esse "blasfemo". É expulso de seu trabalho, e por um acaso é convidado para o México, onde viaja e acabará radicado. É neste país onde voltará a dirigir. Muitos dos filmes que fez, no entanto, teve que fazer para poder comer, em suas próprias palavras. Filmes mais comerciais marcam este período de sua vida, mas mantendo a personalidade particular de Buñuel. E é no México, onde ele fez uma de suas grandes obras: “Os esquecidos”.
Irônica e cruelmente, esta vez será o governo mexicano que irá lhe dar as costas. Novamente foi objeto de censura e perseguição, pois o filme mostrava a dura realidade do México: um alto grau de pobreza. “Os esquecidos” explora as condições de vida dos mais expostos às vicissitudes da realidade, isto é, dos mais despossuídos. Como o governo espanhol anos antes, as autoridades e muitos intelectuais mexicanos viram o filme com um crime. Paradoxalmente, este filme triunfaria em Cannes, apesar dessas mesmas autoridades e esses mesmos intelectuais. Felizmente contou com o apoio de muitos famosos mexicanos, como Octavio Paz, que foi um dos poucos que apoiou incondicionalmente “Os esquecidos”.

Alguns anos depois as condições políticas já haviam se modificado radicalmente. Buñuel retorna para a Europa, e decide filmar lá. É na Espanha e na França onde irá retornar ao trabalho depois de um longo exílio. Mas novamente o trabalho do diretor será interrompido. Na Espanha franquista, Buñuel filma: “Viridiana”. Mais uma vez, o diretor atraiu a atenção dos olhares dos censores. Chamamos a atenção destas constantes perseguições contra o diretor. Assim como Galileo ou outros grandes e, acima de tudo, personagens radicais, Luis Buñuel sempre foi silenciado por diferentes vozes. E mais, poderíamos dizer que em todos os países onde esteve, em maior ou menor medida, entrou em conflito e foi expulso ou proibiram algumas de suas obras. E ainda assim, hoje são poucos os que levantariam a mão contra o diretor espanhol. Pelo contrário, o seu legado é apreciadíssimo nos círculos de intelectuais, os mesmos intelectuais que provavelmente se fossem contemporâneos a ele o haveriam criticado e silenciado. Buñuel soma-se à honrosa lista de diretores que foram vítimas das suas grandes criações, entre os quais se encontram, sem ir muito longe, Kubrick e Pasolini.

Um filme que chama a atenção pelo seu sarcasmo é “Le charme discret de la bourgeoisie”, o charme discreto da burguesia. No filme são exibidos abertamente os vícios desta classe social. O argumento do longa-metragem é tanto sarcástico quanto divertido. Um grupo de burgueses tentam reunir-se para jantar. Esse é, por mais simples que pareça, o elemento que une a narração do Le Charme discret... No meio existem inúmeras referências à política dá época, como o gracioso embaixador do país fictício de Miranda, ou o bispo que decide se tornar um jardineiro e termina atirando em um moribundo (cena que foi removida pela censura espanhola). É melhor não dizer muito de qualquer maneira. O filme contém os elementos mais característicos do estilo de Buñuel.

Agora, há pouco mais de um mês de aniversário do seu nascimento, recordamos a história deste homem singular. Muito mais poderia ser dito sobre ele: sua fase surrealista, sua vida no México, sua enorme filmografia, seu pensamento religioso e ateu ao mesmo tempo, sua obra literária (escreveu crítica de cinema, teatro, poesia e outros textos de vários tipos), sua vida errante e sempre ameaçada pelas autoridades. Tanto mais poderia ser dito que não seria suficiente para o que pretende este superficial esboço de sua vida e obra.

Gostaríamos de terminar com uma reflexão. Em toda a história do século XX, século por demais turbulento e cheio de surpresas, houve muitos homens e mulheres que souberam ameaçar com as suas ideias a sociedade ocidental. Buñuel é um deles, mas mais nomes poderiam ser nomeados. A pergunta que talvez apareça na mente de um leitor, e é a pergunta que nós nos fazemos, seria: é hoje possível desafiar com a mesma forma radical a institucionalidade? Quantos hoje dos chamados artistas são capazes de questionar o funcionamento do nosso sistema e não apenas o nosso sistema político ou econômico, mas também a forma como funciona a nossa vida? Não vamos dizer mais. Deixamos este fragmento de uma entrevista de Buñuel:

"Mas aqui é necessário clarificar um ponto: nós, os surrealistas, colocávamos os nossos princípios a serviço da revolução proletária mundial (Le surrealisme au service de la révolution, é o título de um manifesto que publicamos). Quer dizer, queríamos "transformar o mundo", e estávamos a serviço desta revolução. Rimbaud havia escrito sobre a mudança da vida do homem, e Breton dizia que para ele os dois princípios eram apenas um, se fundiam em um."

E com estas últimas palavras queremos fechar esta breve homenagem ao Luis Buñuel, personalidade ácida e feroz, sempre rebelde, cujas obras já estão entre as grandes obras-primas da arte do cinema. Uma saudação para um dos mais importantes diretores do século XX.


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