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Literatura e Revolução: Introdução

Leon Trótski

Literatura e Revolução: Introdução

Leon Trótski

Nesse mês que se completam 81 anos do assassinato de Leon Trótski por um agente a mando de Stalin, retomamos uma das suas mais importantes publicações sobre cultura e revolução. Este texto de 1924 marca a introdução do Literatura e Revolução.

Algumas considerações podem definir a atual situação da arte.

Se o proletariado russo, após a tomada do poder, não tivesse criado seu próprio exército, o Estado soviético há muito não existiria. E nós agora não pensaríamos nas questões econômicas, e muito menos nos problemas da cultura.

Se a ditadura do proletariado se mostrasse incapaz de organizar a economia e assegurar à população um mínimo vital de bens materiais nos anos que se seguiram à sua implantação, o regime soviético estaria então realmente condenado a desaparecer. A economia é hoje o maior dos problemas.

Mesmo a solução das questões elementares — alimentação, vestuário, habitação e educação básica — de forma alguma significaria a vitória total do novo princípio histórico, isto é, do socialismo. Só o progresso do pensamento científico em escala nacional e o desenvolvimento de uma nova arte mostrariam que a semente histórica não só germinou, como também floresceu. Nesse sentido, o desenvolvimento da arte é a maior prova da vitalidade e da importância de cada época.

A cultura alimenta-se na seiva da economia. É preciso, porém, mais que o estritamente necessário à vida para que a cultura se desenvolva e aprimore. A burguesia russa refreou a literatura muito rapidamente enquanto se fortificava e enriquecia. O proletariado será capaz de preparar a formação de uma cultura e de uma literatura novas, isto é, socialistas, não por métodos de laboratório, à base de pobreza, necessidade, da ignorância de hoje, mas a partir de meios sociais, econômicos e culturais consideráveis. A arte necessita de bem-estar e abundância. Os fornos ainda devem esquentar, as rodas devem girar mais rapidamente, as lançadeiras devem correr mais depressa, as escolas devem funcionar melhor.

A velha literatura e a velha cultura da Rússia eram a expressão da nobreza e da burocracia. Repousavam sobre o camponês. O aristocrata cheio de si e o nobre “arrependido” imprimiram seu selo sobre o período mais importante da literatura russa. Mais tarde apareceu o intelectual plebeu, apoiando-se sobre o camponês e o burguês, e ele também escreveu seu capítulo na história da nossa literatura. Depois de passar pelo período de extrema simplificação dos velhos narodniki [1], esse intelectual plebeu se modernizou, diferenciou e individualizou no sentido burguês do termo. Tal foi o papel histórico da escola decadente e do simbolismo. Desde o início do século, muito particularmente após 1907-08, a transformação da intelligentsia burguesa e da literatura se deu bem depressa. Patrioticamente, a guerra encerrou esse processo.

A Revolução destruiu a burguesia, fato que influiu de modo decisivo sobre a literatura. Esta, que se formara em torno de um eixo burguês, não existe mais. Tudo o que restou de mais ou menos viável no domínio da cultura — e isso é em particular verdadeiro na literatura — esforçou-se e esforça-se ainda por encontrar nova orientação. Se a burguesia não existe mais, o eixo só pode ser o povo sem a burguesia. Mas que é o povo? Antes de tudo o campesinato, uma parte da pequena burguesia das cidades e os operários, que não se podem separar do protoplasma popular do campesinato. É isso que exprime a tendência fundamental de todos os "companheiros de viagem" [2] da Revolução. É isso que se encontra no pensamento fulgurante de Blok. O mesmo em Pilniak, nos Irmãos Serapião, nos imaginistas que ainda vivem, bem como em alguns dos futuristas (Khlébnikov, Kruchênikh e V. Kamênski). A base camponesa da cultura russa, ou melhor, da falta de cultura, manifesta indiretamente toda sua força passiva.

A Revolução Russa é a expressão do camponês que se transformou em operário — que se apóia sobre o camponês e lhe mostra o caminho a seguir. A arte russa é a expressão do intelectual que hesita entre o camponês e o operário. E o intelectual é organicamente incapaz de fundir-se com um ou com outro, mas se inclina sobretudo para o lado do camponês, em consequência da posição intermediária de suas vinculações. Não se pode tornar mujique [3], mas pode mudar o mujique. E como não há revolução sem a direção do operário, surge a dificuldade fundamental no trato do assunto.

Pode-se afirmar que os poetas e escritores desses anos extremamente críticos diferem entre si pela maneira como fogem dessa contradição e pelo modo como preenchem os vazios: um pelo misticismo, outro pelo romantismo, o terceiro afastando-se com prudência, o quarto com um grito ensurdecedor. A essência da contradição permanece a mesma, independentemente da variedade de métodos para superá-la. Ela consiste na separação criada pela sociedade burguesa entre o trabalho intelectual, incluindo a arte, e o trabalho físico.

A Revolução, por seu turno, é a obra de homens que fazem trabalho físico. E um dos seus objetivos últimos é superar de todo a separação desses dois tipos de atividade. Nesse sentido, como em todos os outros, a criação de uma nova arte processa-se inteiramente segundo as linhas da tarefa fundamental para a construção de uma cultura socialista.

É ridículo, absurdo e mesmo estúpido, no mais alto grau, pretender que a arte permaneça indiferente às convulsões da época atual. Os homens preparam os acontecimentos, realizam-nos, sofrem os efeitos e se modificam sob o impacto de suas reações. A arte, direta ou indiretamente, reflete a vida dos homens que fazem ou vivem os acontecimentos. Isso é verdadeiro para todas as artes, da mais monumental à mais íntima. Se a natureza, o amor ou a amizade não se vinculassem ao espírito social de uma época, a poesia lírica há muito teria perecido. Uma profunda mudança na história — isto é, uma redistribuição das classes na sociedade — quebra a individualidade, situa a percepção dos temas fundamentais da poesia lírica sob um novo ângulo e, assim, salva a arte da eterna repetição.

Mas o espírito de uma época não trabalha de modo invisível e independente da vontade subjetiva? Certo. Esse espírito, em última análise, se reflete em todos: naqueles que o aceitam e o encarnam como naqueles que lutam desesperadamente contra ele ou se esforçam para dele se esquivar. Os que fogem desaparecem aos poucos. Aqueles que resistem apenas conseguem, no máximo, reanimar tal ou qual chama arcaica, porque a nova arte, colocando outros marcos e ampliando o leito da criação artística, somente poderá surgir dos que se identificam com sua época. Talvez se possa dizer, traçando-se uma curva da arte atual à arte socialista do futuro, que hoje apenas ultrapassamos o estágio de preparar essa própria preparação. Eis aqui um breve esboço dos grupos da literatura russa atual.

A literatura que se encontra fora da Revolução, dos folhetinistas no jornal de Suvorin aos mais sublimes líricos do “vale de lágrimas” aristocrático, está agonizante, como as classes às quais serviu. No que concerne à forma, ela representa genealogicamente o final da linha primogênita da velha literatura, que começou como literatura da nobreza e acabou como expressão puramente burguesa.

A literatura soviética mujique que canta o camponês, de modo menos claro, pode descobrir sua origem nas tendências eslavófilas e populistas da antiga expressão literária quanto à forma. Os escritores que cantam o mujique não saíram diretamente do campesinato. Não existiriam sem a literatura anterior, a da nobreza e da burguesia, da qual representam a linha mais jovem. Atualmente estão todos em processo de se ajustar à nova sociedade.

O futurismo constitui sem dúvida uma rejeição da velha literatura. Mas o futurismo russo não atingiu seu completo desenvolvimento no quadro da velha literatura, nem sofreu a adaptação burguesa que lhe valeria o reconhecimento oficial. Quando eclodiu a guerra e depois irrompeu a Revolução, o futurismo era ainda boêmio, como toda a nova escola literária nas cidades capitalistas.

Sob o impulso dos acontecimentos, o futurismo correu nos novos canais da Revolução. Pela sua própria natureza, não poderia gerar uma arte revolucionária. Mas permanecendo, sob certos aspectos, como negação revolucionária da antiga arte, contribuiu em grau maior, mais direta e ativamente que todas as outras tendências, para a formação da nova arte.

Por mais significativa que seja em geral a contribuição de certos poetas operários, a chamada “arte proletária” não fez mais que atravessar um período de aprendizagem. Ela espalha largamente os elementos da cultura artística, ajuda a nova classe a assimilar as obras antigas, ainda que de maneira muito superficial. Constitui assim uma das concorrentes que conduzem à arte socialista do futuro.

É fundamentalmente falso opor a cultura e a arte burguesas à cultura e à arte proletárias. Estas últimas jamais existirão, porque o regime proletário é temporâneo e transitório. A significação histórica e a grandeza moral da revolução proletária residem no fato de que ela planta os alicerces de uma cultura que não será de classe, mas pela primeira vez verdadeiramente humana.

Nossa política em relação à arte durante o período de transição pode e deve ser a de ajudar os diferentes grupos e escolas artísticas que nasceram com a Revolução a compreender corretamente o sentido histórico da época, e conceder-lhes completa liberdade de autodeterminação no domínio da arte, após colocá-los sob o crivo categórico: a favor ou contra a Revolução.

Hoje a Revolução só se reflete na arte de modo parcial, quando artistas e poetas novos e antigos deixam de considerá-la uma catástrofe exterior e, tornando-se parte do seu tecido vivente, aprendem a vê-la não de fora, mas de dentro.

O turbilhão social não se aquietará tão cedo. Temos diante de nós décadas de luta na Europa e nos Estados Unidos. Não somente os nossos contemporâneos participarão, mas também homens e mulheres da próxima geração. A arte desta época estará inteiramente sob o signo da Revolução.

Essa arte necessita de nova consciência. Antes de tudo, é incompatível com o misticismo, quer evidente, quer disfarçado em romantismo, porque a Revolução parte da idéia central de que o homem coletivo deve tornar-se o único senhor, e de que só o conhecimento das forças naturais e sua capacidade de utilizá-las poderão determinar os limites do seu poder. Essa nova arte é incompatível com o pessimismo, o ceticismo e todas as outras formas de abatimento espiritual. Ela é realista, ativa, vitalmente coletivista e cheia de ilimitada confiança no futuro.

29 DE JULHO DE 1924


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FOOTNOTES

[1Narodniki: em russo, populista; movimento nascido entre a intelligentsia russa nos anos 1860; um de seus principais fundadores foi Herzen. Os populistas propunham-se ir ao povo (narod), compartilhar a vida do camponês e combater o czarismo pela educação e propaganda. O movimento tornou-se revolucionário, cindindo-se em diversas organizações (Terra e Liberdade, Partilha Negra, Vontade do Povo etc.). Foi a organização terrorista Vontade do Povo que assassinou Alexandre II em 1881. No fim do século XIX, o populismo desagregou-se para dar lugar ao movimento marxista, introduzido na Rússia por Plekhânov. (M.B.)

[2Trotski usa esse termo no sentido em que o movimento operário russo o empregou, durante muito tempo, em relação aos intelectuais simpatizantes. (M.B.)

[3Mujique: o camponês russo de antes da Revolução. (M.B.)
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