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SEMANÁRIO

Libelu, uma história que vale a pena ser conhecida

Thiago Flamé

Libelu, uma história que vale a pena ser conhecida

Thiago Flamé

Imagem: O Túmulo dos Lutadores de René Magritte

Para a liberdade e luta

Me enterrem com os trotskistas
na cova comum dos idealistas
onde jazem aqueles
que o poder não corrompeu

Me enterrem com meu coração
na beira do rio
onde o joelho ferido
tocou a pedra da paixão.

Paulo Leminski

“Hoje vamos falar sobre a Libelu”, diz Mino Carta, o jornalista “neutro” escolhido a dedo para abrir o documentário vencedor da mostra É Tudo Verdade, “Libelu – Abaixo a ditadura”, que chegou em boa hora. A corrente estudantil Liberdade e Luta foi uma referência fundamental na segunda metade da década de setenta e inovou, rompendo política e esteticamente com o movimento estudantil tributário da guerrilha, do maoísmo e do stalinismo de maneira geral. Ainda que o documentário não ofereça um quadro completo da evolução da corrente, é mais do que um aperitivo saboroso. Retoma a experiência do movimento estudantil e de debates políticos e culturais de um momento bastante apagado e importante da história, em que os estudantes foram a ponta de lança na luta contra a ditadura.

O cenário escolhido não poderia ser mais significativo. Falam à câmera, examinados por um grupo de cineastas, os ex-militantes do grupo estudantil de dentro do mezanino da FAU, onde há poucas décadas foram oradores e agitadores das marcantes assembleias estudantis da segunda metade da década de 1970. As imagens do passado de cada um ilustram seus depoimentos, criando uma forte tensão entre passado e presente, numa inteligente contraposição de imagens, cartazes e vídeos.

Como diz o diretor Diógenez Muniz em texto publicado no Le Monde Diplomatique, se referindo aos massivos atos estudantis de 1977 que antecederam as greves operárias dos anos seguintes: “Os atos desgastaram o governo, fazendo dos estudantes ’batedores’ do levante operário do ABC Paulista”. Se os estudantes foram os batedores dos batalhões operários que feriram de morte a ditadura entre 1978 e 1980, a tendência trotskista Liberdade e Luta era linha de frente dessas primeiras escaramuças que desafiavam os militares.

Vendo de hoje é fácil identificar aqueles movimentos em 1977 como a antessala das grandes mobilizações operárias e da crise da ditadura. Não foi assim na época e um dos acertos da OSI (Organização Socialista Internacionalista - uma das correntes do movimento trotskista internacional da época, referenciada no francês Pierre Lambert, e impulsionadora da corrente estudantil Libelu) foi identificar as novas condições políticas, diferentes de 1968, e diferentes também pela crítica à estratégia guerrilheira e foquista, isolada da massa de estudantes e trabalhadores. Essa visão de que os tempos eram outros, ainda que atravessada por uma série de insuficiências, foi o que permitiu a organização se conectar com o sentimento de uma nova geração de jovens universitários que vinha se forjando na luta contra a ditadura dentro dos muros da USP desde 1975 e com a greve da ECA por ocasião do assassinato de Wladimir Herzog.

Como é apresentado no documentário, “a maior parte do Movimento Estudantil acreditava que dizer ‘Abaixo a Ditadura’ atrairia ainda mais repressão e recrudescimento, numa repetição da onda de violência e morte de 1968. Os libelus discordavam.” Não só tiveram a coragem de retomar a palavra de ordem de 1968 “Abaixo a ditadura”, quando as correntes que haviam participado de 1968 e da guerrilha temiam, como o fez rompendo em grande estilo com o voluntarismo moral e ascético do militante guerrilheiro que era o padrão em 1968. Para a Libelu derrubar a ditadura não aparecia como tarefa de grupos guerrilheiros formados por estudantes inspirados numa mescla de Che Guevara, Mao Tsé-Tung e Regis Debray, mas como tarefa a ser realizada pelo movimento de massas, sendo estratégico nesse processo e para o sentido de ser do movimento estudantil a “aliança operário-estudantil”, que como bem retoma o documentário, era uma das pedras angulares da Liberdade e Luta.

Os libelus também discordavam do nacionalismo cretino e obtuso das correntes de matriz stalinista, maoístas e guerrilheiras em geral, dominantes do movimento estudantil da época. O que os aproximava (Caminhando e Refazendo no movimento estudantil, PCB, PCdoB e MR-8 no plano partidário) do MDB e dos pelegos no movimento sindical, os afastava das tendências mais radicalizadas da juventude, antenadas aos movimentos políticos e artísticos dos EUA e da Europa. Imaginem que em 1977 essas correntes ainda contrapunham samba de raíz e canção de protesto ao rock, á guitarra elétrica, ao funk e ao soul, como influências imperialistas.

Como diz um dos ex-libelus no documentário, eles se inspiravam no Literatura e Revolução e nas ideias de Trótski sobre o tema da arte. Diziam Trótski e Breton no famoso manifesto que certamente era bastante consumido pelos libelus: "Em matéria de criação artística, importa essencialmente que a imaginação escape a qualquer coação, não se deixe sob nenhum pretexto impor qualquer figurino. Àqueles que nos pressionarem, hoje ou amanhã, para consentir que a arte seja submetida a uma disciplina que consideramos radicalmente incompatível com seus meios, opomos uma recusa inapelável e nossa vontade deliberada de nos apegarmos à fórmula:toda licença em arte." Caetano Veloso em entrevista ao “Conversa com Bial”, no fim de 2018, afirma que “foram os libelus os responsáveis por habilitar sua imagem junto à esquerda brasileira”. Tinha que ser um movimento inspirado em Trótski para recolocar algumas ideias no seu lugar.

Para apresentar a desconhecida Libelu ao público, o documentário retoma uma das afirmações um tanto exageradas de José Arbex, de que a “Libelu foi talvez a coisa mais importante que aconteceu no Brasil no século XX entre a juventude, mesmo pegando a semana da arte moderna de 22, eu não conheço nenhuma experiência que tenha produzido tanto impacto e tanta mudança da espera espiritual da juventude quanto a Libelu”. O impacto da Libelu certamente foi enorme, mas uma comparação mais precisa do que com a semana de 22, seria dizer que a Libelu é o correspondente político do combate estético do tropicalismo contra a caretice e a camisa de força nacionalista na cultura popular. Se o tropicalismo e as tendências artísticas variadas que foram agrupadas sob esse rótulo retomavam a antropofagia de Oswald de Andrade, a Libelu retomava no mesmo sentido a máxima com que Trótski e Breton concluem seu manifesto: "o que queremos: a independência da arte para a revolução. A revolução, para a libertação definitiva da arte".

Ainda é preciso acrescentar (isso não aparece no documentário) que enquanto toda a esquerda se manteve dentro do MDB em 1978, a Libelu chamou a boicotar as eleições, votar nulo e apontou a necessidade de um Partido Operário Independente – que também a diferenciava de todo o resto da esquerda, inclusive trotskista (lembrando que nesse momento, nessas mesmas eleições, a Convergência Socialista, outra das correntes trotskistas da época referenciada no argentino Nahuel Moreno, apoiou a candidatura de ninguém menos que FHC para o Senado). Isso colocava os jovens da Libelu em rota de colisão, não somente da ditadura enquanto tal, mas também da transição pactuada que Geisel e Golbery se colocaram como objetivo. Transição à qual toda a esquerda da época se adaptava, acotovelando-se para encontrar seu lugarzinho ao sol no novo regime que os generais ambicionavam construir – mais ou menos como acontece nos dias de hoje.

Todo esse processo está muito bem relatado no documentário, ainda que essas conclusões políticas sejam nossas, não de qualquer dos entrevistados. Quando o filme vai passando da descrição histórica para o diálogo com a trajetória dos ex-militantes, se perde a tensão da situação política, quadro mais geral onde se desenrolam os dramas pessoais no período digamos, de glória, da Libelu. É como se esse vibrante movimento político se desfizesse no ar, tragado lentamente pela máquina do sistema. Apenas uma fresta se vislumbra, quando um dos entrevistados cita o desacordo com a linha da OSI depois da entrada no PT e sua falta de clareza de qual o rumo correto a seguir.

Não conhecemos o conjunto do material das entrevistas, em que medida esse limite está na própria narrativa dos entrevistados, ou na ênfase do diretor. Aliás, o cuidado saudável de não ir pelo caminho chato e improdutivo de tabelar a evolução política de cada entrevistado, pode ser a explicação de por que o documentário não busca as causas políticas e sociais para o fim da Libelu, um movimento que buscou fazer para explicar a sua origem. “O que a vida adulta reserva para jovens revolucionários?”, ou “o poder corrompe?” são perguntas que guiam a conclusão do documentário. E o que vemos nas trajetórias individuais são demonstrações dos vários caminhos que confirmariam o ditado: até os trinta revolucionários, depois um canalha. Antonio Palocci aparece, ao lado de Demétrio Magnoli como os casos, por assim dizer, puros dessa evolução à direita da juventude para a velhice. Na conversão de Demétrio Magnoli, não se vê sombra de culpa ou arrependimento, enquanto um cínico Palocci ao seu modo faz o elogio do vício à virtude, quando ao ler o belo poema de Leminski dedicado à Libelu: “realmente o poder não corrompeu, pelo menos enquanto eram trotskistas”.

A leitura do poema é uma das mais brilhantes atitudes provocadoras do diretor. Submeter cada um desses sujeitos, vários deles portadores de seus próprios descaminhos reacionários, a ler como estão materializados na poesia. É impossível que o olhar de quem assiste não se volte para um exame de cada reação, colocando no centro da análise alguns que em geral analisam “do alto” a sociedade e a esquerda.

Sobra dizer que está mais do que justificada a presença de ambos, Palocci e Magnoli e o espaço concedido para suas entrevistas. Foram militantes de destaque no período, e suas trajetórias bastante distintivas e conhecidas. Além desse espasmo de sinceridade em Palocci, é reveladora a opinião de um dos seus antigos camaradas, de que muito da estrutura de pensamento de Demétrio Magnoli, um dos representantes mais lúcidos da imprensa liberal, vem da sua passagem pelo trotskismo.

É certo que a presença de militantes da corrente O Trabalho (do PT), continuadora da antiga OSI, apresenta que seria possível seguir o compromisso militante com o avançar dos anos. Mas essa corrente hoje não conserva nada da antiga Libelu, antes o contrário. Se converteu em uma das correntes mais conservadoras da esquerda, com seu proibicionismo às drogas e seu obreirismo para com todas as questões ligadas a gênero e sexualidade e sempre pronta a justificar sua permanência no PT. Triste perspectiva para a juventude revolucionária seria essa: se adaptar passiva ou ativamente ao sistema, ou vegetar como militantes testemunhais e impotentes dentro de um partido que caminha no sentido oposto aos de seus ideais.

Não à toa o tom geral do documentário é melancólico, pois como evidencia ao fim, conta a história de uma geração derrotada. Os mais elevados ideais de transformação social que animaram os jovens da Libelu desembocaram ao fim no PT e em toda a história que conhecemos, até os momentos atuais. Não é a perspectiva da revolução permanente, essa ideia, ou mais do que ideia, essa estratégia política de uma revolução universal (ainda que evidentemente universal não signifique simultânea em todo o mundo), que nos leve a uma sociedade sem exploração nem opressão o que causa desencanto, ao contrário do que afirma Caetano Veloso em suas breves anotações enviadas ao diretor. Os entrevistados não só parecem, mas falam efetivamente como desistentes (a não ser Magolli e Reinaldo Azevedo, que falam como detratores), vozes de uma geração que lutou contra a ditadura, pelo socialismo, e viu suas lutas desembocarem no neoliberalismo. Mas como isso foi possível?

Essa pergunta, que é decisiva para as novas gerações, acaba ou não sendo formulada, ou apenas pobremente abordada. As diferenças da época, as lutas internas, os erros de orientação criticados parcialmente desde a época, seriam fundamentais para entender como uma corrente tão dinâmica, com jovens militantes brilhantes, em poucos anos sumiu do mapa. Sob pena de nos alongarmos mais, vamos apontar alguns elementos que nos parecem centrais.

Dialoguemos mais uma vez com um elemento que Caetano Veloso ressalta em suas breves anotações. Somente um negro, “minoria absoluta” na Libelu. Interessante reflexão, a partir da qual desenvolver os limites da Libelu. Entre o fim da década de sessenta e setenta, um potente movimento cultural se desenvolveu na juventude negra do Rio de Janeiro e de São Paulo (alguns estudos chegam a pontuar que no final dos anos sessenta esses bailes reuniam de duzentos a trezentos mil jovens em um único final de semana, na metrópole carioca). Os bailes black eram tão rechaçados pelo música popular e os artistas e críticos ligados ao PC, como foi a tropicália. A Libelu se ligou a uns, mas não a outros, como em geral também foi incapaz de se ligar ao movimento operário apesar da consigna de “aliança operário-estudantil”.

As qualidades do radicalismo da juventude universitária que impactam a Libelu, também expressa seus limites em um sectarismo atroz. Segundo um documento interno da época que polemizava com a direção da OSI, essa organização chegava ao extremo de afirmar “Das reformas de Figueiredo à Constituinte com Euller, dos frotistas à Convêrgencia Socialista as mais diferentes alternativas saltam aos olhos da burguesia… Todas elas querem a manutenção da ditadura, adaptada à nova situação.” [1]. Junto com isso a definição de que não existiam sindicatos efetivamente no Brasil os leva a um paralelismo sindical própria da intelectualidade de classe média, ou a ideia de um partido operário independente concebida abstratamente por fora dos processos em curso que levariam ao PT. Como sempre a realidade é sempre mais forte que os esquemas concebidos abstratamente. A OSI passa de chamar Lula de “novo pelego” no início das greves operárias do ABC em 1978, para adotar uma postura acrítica dele a partir de 1980, traçando um curso análogo em relação a fundação do PT.

Com esse giro a Libelu e a OSI vão passar por crises e rachas internos, perdendo no início da década de oitenta o pulso da situação e o ímpeto radical dos primeiros anos. Passa de ser uma corrente que se chocava com os planos de abertura dos militares, para se integrar junto com o PT e suas correntes internas à transição pactuada com os militares, que acabaram vendo avanços progressistas onde se afirmava a hegemonia do capital numa nova forma política. Deixaram de ver como o próprio governo Carter nos EUA empurrava e pressionava as ditaduras do cone sul no sentido de aberturas democráticas e controladas e como a democracia liberal seria a base ideológica da ofensiva de restauração no leste e do neoliberalismo no oeste.

A juventude nos dias de hoje tem muito a aprender da experiência da Libelu e o documentário de Diogenez Muniz é uma excelente colaboração para esse aprendizado. Apesar de toda a vitalidade demonstrada pela Libelu, da qual ainda temos muito a beber, no balanço histórico geral essa corrente fracassou nos objetivos de servir de ponta de lança para a construção de um partido revolucionário. Também a reflexão de como a Libelu se transformou no que hoje é a corrente O Trabalho, mais apegada ao PT do que ao que sobra dos seus ideais revolucionários é fonte de aprendizado para as novas gerações.


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FOOTNOTES

[1Em defesa do marxismo, documento apócrifo consultado no Cemapp
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Thiago Flamé

São Paulo
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