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TEORIA | Leon Trotski: ABC da dialética materialista

Publicamos um texto clássico de Trotski sobre a dialética materialista, uma das cartas que compõem a coletânea reunida sob o nome "Em defesa do Marxismo", publicada em 1940.

segunda-feira 26 de junho de 2017 | Edição do dia

Céticos gangrenosos como Souvarine dizem que “ninguém sabe” o que é a dialética. E existem “marxistas” que se inclinam respeitosamente ante Souvarine e esperam aprender algo dele. E esses “marxistas” não só fazem seu ninho no Modern Monthly. Existe uma corrente souvarinista na atual oposição do Partido Socialista Operário (SWP). É necessário prevenir aos jovens camaradas: “Cuidado com esta infecção maligna!”

A dialética não é nem ficção nem misticismo, mas uma ciência das formas de nosso pensamento, na medida em que ele não está limitado aos problemas da vida cotidiana, mas tenta alcançar uma compreensão de processos mais complexos e profundos. A dialética e a lógica formal guardam uma relação similar àquela existente entre a matemática complexa e a matemática elementar.

Tentarei esboçar aqui a substância do problema numa forma a mais concreta. A lógica aristotélica do simples silogismo parte da proposição de que “A” é igual a “A”. Este postulado é aceito como axioma para múltiplas atividades práticas humanas e para generalizações elementares. Mas, na realidade, “A” não é igual a “A”. Isto é fácil de provar se observamos estas duas letras através de uma lente: são completamente diferentes uma da outra. Mas, pode objetar alguém, a questão não é o tamanho ou a forma das letras, uma vez que são apenas símbolos de quantidades iguais, por exemplo, uma libra de açúcar. A objeção é sem propósito: na realidade, uma libra de açúcar nunca é igual a uma libra de açúcar – uma balança mais delicada sempre revela a diferença. Pode-se nos objetar de novo: mas, uma libra de açúcar é igual a si mesma. Tampouco isso é correto: todos os corpos modificam-se ininterruptamente quanto ao peso, ao tamanho, à cor, etc. Eles não são nunca iguais a si mesmos. Um sofista responderá que uma libra de açúcar é igual a si mesma “em um dado momento”.

Deixando de lado o valor prático extremamente dúbio de semelhante “axioma”, este argumento tampouco resiste a uma crítica teórica. Como devemos realmente conceber o termo “momento”? Se é um intervalo de tempo infinitesimal, então uma libra de açúcar está sujeita a transformações inevitáveis durante o transcurso deste “momento”. Ou é o “momento” uma abstração puramente matemática, um tempo zero? Mas tudo existe no tempo; a própria existência é um processo ininterrupto de transformações. O tempo é, consequentemente, um elemento fundamental da existência. Assim, o axioma “A é igual a A” significa que uma coisa é igual a si mesma se ela não muda, isto é, se não existe.

À primeira vista, poderia parecer que estas “sutilezas” são inúteis. Na realidade, são de importância decisiva. O axioma “A é igual a A” parece ser, por um lado, a base de todo o nosso conhecimento e, por outro lado, a fonte de todos os erros do nosso conhecimento. Usar o axioma “A é igual a A” impunemente é possível apenas dentro de certos limites. Quando as mudanças quantitativas em A podem ser desprezadas em vista das tarefas à mão, podemos então presumir que “A é igual a A”. Esta é, por exemplo, a maneira em que o comprador e o vendedor consideram uma libra de açúcar. Da mesma maneira, consideramos a temperatura do Sol. Até pouco tempo consideramos da mesma maneira o poder aquisitivo do dólar. Mas mudanças quantitativas para além de certos limites convertem-se em mudanças qualitativas. Uma libra de açúcar submetida à ação da água ou do querosene deixa de ser uma libra de açúcar. Um dólar nas mãos de um presidente deixa de ser um dólar. Fixar o momento exato, o ponto crítico em que a quantidade se transforma em qualidade, é uma das tarefas mais importantes e complexas de todas as esferas do conhecimento, inclusive da sociologia.

Todo trabalhador sabe que é impossível fazer dois objetos completamente iguais. Na elaboração de moedas cunhadas a partir de placas de bronze, um certo desvio é permitido para as moedas, desvio que não deve, apesar disso, ultrapassar certos limites (a isso dá-se o nome de “tolerância”). Observando-se as normas da tolerância, as moedas são consideradas como iguais (A é igual a A). Quando a tolerância é excedida, a quantidade se converte em qualidade; em outras palavras, as moedas tornam-se inferiores ou totalmente inúteis.

Nosso pensamento científico é só uma parte de nossa prática geral, incluindo a técnica. Também existe “tolerância” para os conceitos, tolerância estabelecida não pela lógica formal baseada no axioma “A é igual a A”, senão pela lógica dialética baseada no axioma de que tudo está em constante transformação. O “senso comum” se caracteriza por exceder sistematicamente a “tolerância” dialética.

O pensamento vulgar opera com tais conceitos como capitalismo, moral, liberdade, Estado operário, etc., como abstrações fixas, presumindo que capitalismo é igual a capitalismo, moral igual a moral, etc. O pensamento dialético analisa os fatos e todos os fenômenos de sua mudança contínua, acabando por determinar, nas condições materiais da mudança, o limite crítico além do qual “A” deixa de ser “A”, em que um Estado operário deixa de ser um Estado operário.

O defeito fundamental do pensamento vulgar consiste no fato de que se contenta com reproduções imóveis de uma realidade eternamente dinâmica. O pensamento dialético dá aos conceitos, por meio de aproximações sucessivas, correções, concretizações, uma riqueza de conteúdo e de flexibilidade; atrever-me-ia inclusive a dizer que lhes dá uma “suculência” que em certa extensão os aproxima muito dos fenômenos vivos. Não capitalismo em geral, mas um determinado capitalismo em um determinado estágio de desenvolvimento. Não um Estado operário em geral, mas um determinado Estado operário, em um país atrasado e com um cerco imperialista ao redor, etc.

O pensamento dialético está para o pensamento vulgar assim como um filme está para uma fotografia imóvel. O filme não rejeita a fotografia imóvel, mas combina uma série de fotografias segundo as leis do movimento. A dialética não exclui o silogismo, mas nos ensina a combiná-lo de modo a aproximá-lo da compreensão de uma realidade eternamente mutável. Hegel estabeleceu em sua Lógica uma série de leis: mudança da quantidade em qualidade, desenvolvimento através das contradições, conflito entre conteúdo e forma, interrupção da continuidade, conversão da possibilidade em inevitabilidade, etc., que são tão importantes para o pensamento teórico como o silogismo simples para as tarefas mais elementares.

Hegel escreveu antes de Darwin e antes de Marx. Graças ao poderoso impulso dado ao pensamento pela Revolução Francesa, Hegel antecipou o movimento geral da ciência. Mas porque somente uma antecipação, ainda que tenha sido por um gênio, esse movimento recebeu de Hegel um caráter idealista. Hegel operou com sombras ideológicas como a realidade última. Marx demonstrou que o movimento dessas sombras ideológicas não refletia outra coisa que o movimento dos corpos materiais.
Chamamos “materialista” a nossa dialética porque suas raízes não estão no céu, nem nas profundezas do “livre-arbítrio”, senão na realidade objetiva, na natureza. A consciência surgiu do inconsciente, a psicologia da fisiologia, o mundo orgânico do inorgânico, o sistema solar das nebulosas. Em todos os graus dessa escala de desenvolvimento, as mudanças quantitativas se transformaram em qualitativas.
Nosso pensamento, inclusive o pensamento dialético, é apenas uma das formas de expressão da matéria mutável. Neste sistema não existe lugar nem para Deus, nem para o Diabo, nem para a alma imortal, nem normas eternas de leis e morais. A dialética do pensamento, tendo surgido da dialética da natureza, possui em conseqüência um caráter profundamente materialista.

O darwinismo, que explicou a evolução das espécies mediante a conversão de mudanças quantitativas em qualitativas, foi o maior triunfo da dialética no campo da matéria orgânica. Outro grande triunfo foi a descoberta da tabela de pesos atômicos dos elementos químicos e, posteriormente, dos processos de transformação de um elemento em outro.

A estas transformações (de espécie, de elementos, etc.) está intimamente ligada a questão da classificação, tão importante nas ciências naturais como nas sociais. O sistema de Lineu (século XVIII), utilizando como seu ponto de partida a imutabilidade das espécies, limitava-se à descrição e classificação das plantas segundo suas características externas. O período infantil da botânica é análogo ao período infantil da lógica, uma vez que as formas do nosso pensamento evoluem como tudo que vive. Apenas o rechaço decisivo da idéia de espécies fixas, somente o estudo da história da evolução das plantas e de sua anatomia prepara as bases para uma classificação realmente científica.

Marx que, ao contrário de Darwin, era conscientemente dialético, descobriu as bases para a classificação científica das sociedades humanas no desenvolvimento das suas forças produtivas e na estrutura de suas relações de propriedade, que constituem a anatomia da sociedade. O marxismo substituiu a classificação vulgar das sociedades e dos Estados, que ainda hoje floresce em nossas universidades, por uma classificação materialista dialética. Somente mediante o método de Marx é possível determinar corretamente tanto o conceito de Estado operário quanto o momento de sua queda.

Tudo isso, até onde nos é possível ver, não contém nada de “escolástico” ou de “metafísico”, como afirmam os ignorantes conceituados. A lógica dialética expressa as leis do movimento no pensamento científico contemporâneo. A luta contra a dialética materialista, pelo contrário, expressa um passado distante, um conservadorismo da pequena-burguesia, um envaidecimento dos universitários rotineiros… e uma chispa de fé em uma outra vida.




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