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TEORIA | Lenin, os populistas e o ‘’marxismo legal’

Para retomar a tarefa de realizar uma síntese entre os diversos elementos que explicam as crises capitalistas, dentro de um ponto de vista marxista, é preciso retomar, de forma crítica, os debates que se levantaram no passado sobre a questão. A apreensão crítica desses debates é tarefa fundamental para aqueles que se debruçam sobre esse tema hoje.

quarta-feira 18 de janeiro de 2017 | Edição do dia

A crise estrutural do capitalismo que atravessamos faz com que ressurjam os debates sobre as causas fundamentais das crises capitalistas, tanto no campo marxista quanto entre os economistas burgueses. Entre os economistas que partem para sua reflexão do ponto de vista da sociedade capitalista a principal explicação para a crise é a tese do estancamento secular, que teve sua primeira formulação durante a década de 30 do século passado, mas que passou a assumir papel importante na formulação das causas para a presente crise principalmente na pena do ex-secretário do tesouro estadunidense Larry Summers. O autor dessas linhas já publicou nesse Esquerda Diário crítica à tese do estancamento secular tal qual formulada por Summers.

No campo marxista esse debate também se renovou; Marx não nos legou uma teoria sistemática sobre as crises capitalistas, dado o caráter inacabado de sua obra econômica; assim, a partir dos importantes caminhos apontados n’O Capital’ seus discípulos e seguidores buscaram formular uma teoria coerente e acabada sobre as causas das crises estruturais do capitalismo e as possibilidades da acumulação ampliada do capital (os dois elementos estando intimamente ligados). A grande debilidade para a formulação de uma teoria acabada das crises dentro do ponto de vista crítico, próprio ao marxismo, foi que cada um dos continuadores da obra de Marx isolou um dos elementos que dão base para a explicação das crises e o contrapôs aos outros elementos também essenciais. Uma primeira tentativa de síntese foi feita por Ernest Mandel em sua obra ‘O Capitalismo Tardio’, mas com limites importantes, principalmente a reabilitação por Mandel da mecânica teoria dos ciclos formulada por Kondratieff, que também já criticamos nesse diário.

Para retomar essa tarefa de realizar uma síntese entre os diversos elementos que explicam as crises capitalistas, dentro de um ponto de vista marxista, é preciso retomar, de forma crítica, os debates que se levantaram no passado sobre a questão. A apreensão crítica desses debates é tarefa fundamental para aqueles que se debruçam sobre esse tema hoje.

No final do século XIX na Rússia se dará um dos mais importantes debates dentro da tradição marxista sobre essa questão. Sobre o pano de fundo dos debates estratégicos das formas que devia assumir e quais sujeitos sociais centrais na luta contra o czarismo se colocará intensa polêmica sobre as possibilidades da acumulação capitalista em solo russo. O debate entre os russos é particularmente interessante, pois mostra de forma clara como os debates teóricos sobre economia são expressão no campo das ideias de diferentes perspectivas de classe e de suas respectivas estratégias de luta.

O debate se desenvolverá a partir de 3 posições principais: a posição de Lenin, expressando o ponto de vista proletário, da inevitabilidade do desenvolvimento capitalista na Rússia, que levaria, como consequência necessária ao fortalecimento objetivo da classe operária no país e, a partir disso, a necessidade de que essa classe assumisse a centralidade na luta contra o czarismo; a posição dos populistas, representantes ideológicos dos interesses do campesinato, que defendiam a possibilidade de que a Rússia prescindisse de uma fase de desenvolvimento econômico capitalista, podendo passar diretamente de uma economia semi-feudal para uma economia socialista, com base na propriedade comunal de certos setores do campo russo, e que portanto viam o camponês como sujeito central da luta contra o czarismo; e os representantes do que se convencionou chamar de ‘’marxismo-legal’’ que a partir de uma fraseologia marxista defendiam a necessidade do desenvolvimento capitalista na Rússia, não como base para a luta do proletariado, como no caso de Lenin, mas como um fim em si mesmo, assumindo o ponto de vista da burguesia liberal.

Os debates entre os russos serão de suma importância, pois partirão dos abstratos modelos teóricos d’O Capital’ para buscar explicar o desenvolvimento de uma formação econômica concreta, onde o capitalismo ainda estava em desenvolvimento e expansão, sendo um importante ‘’laboratório’’ para a aplicação concreta da teoria econômica marxista.

OS POPULISTAS

Apesar das diferenças entre si o que dava unidade aos economistas da escola populista era a ideia de que o desenvolvimento do capitalismo na Rússia era impossível, ou como mínimo muito limitado, posto os limites do mercado interno, praticamente inexistente, dado o caráter semi-feudal da economia do país e o fato de que os mercados externos, que poderiam ser uma alternativa, já estarem controlados pelos principais concorrentes europeus.

Apesar do principal representante da escola populista, Nikolai Frantsevich Danielson, ter sido interlocutor de Engels e inclusive tradutor para o russo dos livros II e III d’O Capital’ sua concepção das possibilidades da acumulação ampliada dentro do capitalismo e das causas das crises econômicas era baseada essencialmente nas teorias do economista suíço Simonde de Sismond.

O economista suíço foi um dos principais representantes da crítica a economia política que dava seus primeiros passos no começo do século XIX. Sua concepção básica, exposta aqui evidentemente de forma limitada, se colocava em oposição direta a ‘’lei de Say’’, que afirma a existência de um equilíbrio metafísico entre oferta e demanda, baseada na ideia de que a produção cria sua própria demanda; Sismond, ao contrário, busca mostrar a possibilidade de desequilíbrios entre oferta e demanda e as possibilidades de superprodução de mercadorias.

Para Sismond como o total da renda nacional, e portanto da demanda, está limitada a renda das classes que compõe a sociedade capitalista, burgueses e proletários, o excedente econômico do ciclo posterior ao investimento produtivo não encontraria correspondente em uma demanda efetiva capaz de absorver esse novo montante em mercadorias, o que levaria as crises capitalistas. Ou seja, de forma bastante simplificada, se no primeiro ciclo produtivo são investidos $10.000, correspondentes as rendas das duas classes centrais que compõe a sociedade, burgueses e proletários, e o produto desse investimento é correspondente ao valor de $11.000,por exemplo, o novo valor sendo expressão da mais-valia produzida: quem seriam os consumidores do novo valor, posto que a demanda efetiva das classes que compõe a sociedade corresponde a $10.000? Esse novo valor de $1000, esse excedente econômico, seria invendável na teoria de Sismond, sendo a chave para entendermos as crises capitalistas.

Será com base nessa teoria que os populistas russos irão explicar a impossibilidade, ou pelo menos os limites muito agudos, para o desenvolvimento capitalista na Rússia. Na Europa ocidental o desenvolvimento capitalista tinha sido possibilitado pela existência de ‘’terceiras pessoas’’ (esse conceito irá desempenar papel chave na explicação econômica dos populistas) que eram os possibilitadores da existência de uma demanda efetiva capaz de se apropriar do excedente de mercadorias. Essas ‘’terceiras pessoas’’ capazes de absorver o excedente de mercadorias e possibilitar assim a continuação do ciclo econômico eram os mercados externos.

Para a Rússia, contudo, essa via para o desenvolvimento capitalista aparecia como uma impossibilidade, pois os mercados externos já eram controlados pelos seus concorrentes, mais poderosos, na Europa ocidental. Assim, para os populistas, o desenvolvimento do capitalismo em solo russo enfrentava uma contradição fundamental, a inexistência de mercados capazes de absorver o excedente, e portanto uma impossibilidade de realização da mais-valia, móbil da produção capitalista, tanto pela inexistência de um mercado interno quanto pelo controle do mercado externo pelas potências ocidentais, o que fechava esse mercado para as mercadorias russas.

AS CRÍTICAS DE LENIN AOS POPULISTAS E SEU APORTE A TEORIA MARXISTA DA ACUMULAÇAO

Será nesse debate colocado pelos populistas russos que irá intervir um jovem intelectual revolucionário marxista, Vladimir Ilich Ulianov, alcunhado Lenin. Os livros dois e três d’O Capital’ publicados após a morte do autor, serão as bases para a reflexão de Lenin sobre as possibilidades do desenvolvimento do capitalismo na Rússia e para aprofundar os debates sobre as possibilidades, limites e contradições da acumulação ampliada na economia capitalista. Os debates feitos por Lenin nesse período, durante a década de 90 do século XIX, serão de suma importância para a reflexão marxista sobre o tema, pois estão entre as primeiras aplicações dos esquemas, teorias e modelos da reprodução ampliada do capital desenvolvidas em relação a uma formação econômico-social concreta e em um momento de desenvolvimento do capitalismo (Rosa Luxemburgo publicará trabalho análogo sobre o desenvolvimento capitalista na Polônia na mesma época). As obras centrais onde Lenin tratará do tema serão: ‘Sobre o romantismo econômico’ de 1896 e ‘o Desenvolvimento do capitalismo na Rússia’ de 1897.

A primeira questão que demonstrará Lenin, ainda como pressuposto metodológico do debate, é que ‘’não podemos concluir das contradições do desenvolvimento do capitalismo sua impossibilidade’’; o capital, em cada uma de suas concretas manifestações, em cada uma das formações econômico-sociais efetivas que o compõe, é sempre o movimento de reprodução e superação de suas múltiplas contradições; as contradições do desenvolvimento capitalista, assim, antes de negarem sua possibilidade são a forma real e concreta de seu movimento, o capital, pressupõe, reproduz e supera, de forma sempre relativa e parcial, essas contradições em seu próprio desenvolvimento.

Nesse sentido, a contradição entre um mercado limitado e a capacidade potencialmente ilimitada da reprodução ampliada do capital não são um limite intransponível em cada situação concreta para a reprodução ampliada do capital, posto que se assim fosse o capitalismo, como realidade concreta, seria uma impossibilidade; apesar dessa contradição entre mercado limitado e capacidade potencialmente ilimitada da reprodução ampliada do capital serem limites em ÚLTIMA INSTÂNCIA à acumulação capitalista, não se expressam de forma imediata em cada situação concreta, como pensam os populistas, mas só a partir de múltiplas mediações e o desenvolvimento capitalista é capaz de em uma série de momentos concretos superar essa contradição, se mover dentro dela.

A crítica de Lenin se endereçará, num primeiro momento, a concepção dos populistas da necessidade de ‘’terceiras pessoas’’, de um mercado externo, para a realização da mais-valia. Mostrará o revolucionário russo que se todas as economias nacionais precisassem efetivamente de mercados externos para a realização da mais-valia cristalizada nas mercadorias produzidas nacionalmente e para isso dependessem dos mercados das nações vizinhas a relação entre as balanças comerciais dos diferentes países em última instância se anularia, não produzindo o efeito desejado (ou seja, se para realizar a totalidade da mais-valia produzida em seu país a nação A tivesse que exportar para a nação B isso pressuporia que B pudesse também exportar as mercadorias que contém mais-valia produzida em seu solo para a nação A; a relação entre as balanças comercias de ambos os países, com uma parte da renda nacional sendo utilizada para a realização da mais-valia de mercadorias estrangeiras e não podendo ser parte da realização da mais-valia das mercadorias nacionais acabaria se anulando, ao final do processo).

Assim, o primeiro ponto que busca mostrar Lenin é que é falso que é necessário um mercado externo consumidor já estabelecido que absorva a mais-valia produzida para que possa se expandir, se ampliar, a acumulação do capital. A teoria da necessidade das “terceiras pessoas’’, demonstrará assim Lenin, é falsa (Rosa Luxemburgo retomará, com diferenças importantes, essa teoria das ‘’terceiras pessoas’’ em sua obra ‘A Acumulação do Capital’, no marco do debate sobre o desenvolvimento do imperialismo, para uma critica e apreensão da contribuição de Rosa artigo do autor dessas linhas http://www.esquerdadiario.com.br/A-diferenca-entre-as-teorias-da-demanda-efetiva-em-Rosa-Luxemburgo-e-Keynes).

Para Lenin o erro dos populistas ao formularem sua teoria das ‘’terceiras pessoas’’ parte de um erro teórico fundamental que é se ligar ao dogma criado por Adam Smith, e que tinha dominado a teoria econômica até ali, de que o produto social total se dividia apenas entre a renda dos capitalistas e dos trabalhadores, todos os outros elementos sendo derivações desse elemento fundamental (por exemplo, a renda das classes improdutivas seria uma dedução das rendas de burgueses ou trabalhadores, que pagavam os salários ou mercadorias desses outros setores através de serviços; os investimentos produtivos eram uma dedução da renda dos capitalistas, que por sua abstenção ao consumo permitiam um investimento ampliado na produção, etc).

A publicação dos livros II e III d’O Capital, mostrará Lenin, é uma quebra radical com esse dogma e a construção de um novo paradigma, efetivamente científico, para a compreensão da acumulação ampliada do capital e suas possibilidades. A formulação científica de Marx, defende Lenin a partir de uma leitura crítica da obra do mestre, torna claro que diferente do que pensava Smith o produto social total não se divide em duas, mas em três partes fundamentais: a renda de suas duas classes essenciais, burgueses e proletários, e um terceira parte que é a contida nas máquinas, nos insumos, instalações, matérias-primas, ou seja, a parte do produto social total que é investida nos meios de produção, no setor I da economia.

Assim, a capacidade de consumo da sociedade não é limitada pela renda de suas classes fundamentais, mas há ainda um terceiro fator, dentro da economia capitalista, o consumo produtivo na produção e reprodução dos meios de produção. Dessa forma, o excedente produtivo, que contém a mais-valia produzida, não necessita de um mercado externo já estabelecido, de ‘’terceiras pessoas’’, para ser realizado, mas pode se realizar através do consumo produtivo ampliado do setor I da economia, numa reprodução ampliada da produção dos meios de produção.

É a possibilidade de consumo ampliada do setor I da economia o que permite a realização do excedente econômico produzido no ciclo precedente e assim a reprodução ampliada do capital, independente da existência de um mercado externo já estabelecido. Lenin demonstrará assim que dentro de determinadas condições o desenvolvimento do capital pode produzir sua própria demanda, através da expansão do setor I da economia e a conquista, dissolução e absorção das formações econômicas pré-capitalistas que convivem com o capitalismo, a conquista de suas ‘’colônias internas’’.

A concepção de Lenin de que dentro de determinadas condições o capitalismo pode criar sua própria demanda não deve em nada nos levar a conclusão de que Lenin fará qualquer concessão a ‘’lei de Say’’ (como farão efetivamente os ‘’marxistas legais’’ posteriormente), mas é uma superação da visão mecânica dos populistas de que se todas as condições para a acumulação ampliada do capital não estão dadas, se essa não pode se dar sem contradições, o capitalismo seria impossível. O que Lenin irá demonstrar é que dentro de determinadas condições o capitalismo cria as premissas para seu desenvolvimento, é capaz de superar, de forma sempre relativa e parcial, suas contradições, se move e se desenvolve dentro dessas contradições.

A teoria das colônias internas, que Lenin desenvolverá na obra ‘O Desenvolvimento do Capitalismo na Rússia’ cumprirá papel chave na teoria de conjunto de Lenin. Mostrará o revolucionário que a partir do desenvolvimento do setor I da economia o capitalismo desagrega e dissolve as antigas relações econômicas pré-capitalistas, pela concorrência dos produtos mais baratos e de melhor qualidade, pela introdução de relações mercantis, etc, se apropriando e submetendo as antigas relações as novas e mais modernas relações burguesas. Onde não existia um mercado consumidor o capitalismo cria, a partir da dissolução, submissão e absorção das antigas formas econômico-sociais. São colônias internas na Rússia, pois o país contava com um amplo espaço e população ainda não submetido as relações capitalistas de produção e portanto passível de ser absorvido para dentro das novas relações.

Nesse sentido, o setor I é o propulsor do desenvolvimento das novas relações, tanto sendo o mercado capaz de absorver o excedente econômico fruto do ciclo produtivo anterior quanto tendo o papel de dissolver as antigas relações pré-capitalistas e submetê-las as novas formas.

TUGAN-BARANOVSKY E O ‘’MARXISMO-LEGAL’’

Uma terceira corrente de pensamento que se envolverá nesse debate em solo russo será o chamado ‘’marxismo-legal’’. Partindo de uma fraseologia marxista e de alguns de seus pressupostos defenderão as possibilidades e necessidade do desenvolvimento capitalista na Rússia, mas diferente de Lenin não como base para o reconhecimento do papel central do proletariado na luta contra o czarismo, mas para defender os interesses e a centralidade de uma resposta burguesa para a revolução na Rússia, esperada por praticamente todos os setores da sociedade.

Para isso os ‘’marxistas-legais’’ terão que negar as contradições do desenvolvimento do capitalismo; assumirão uma visão oposta, e tão unilateral quanto, a dos populistas; enquanto os primeiros, das contradições do desenvolvimento do capitalismo concluirão sua impossibilidade, os segundos concluirão das possibilidades da superação das contradições a eternidade do sistema, ou pelo menos de suas possibilidades econômicas (levando a uma reconstituição, sobre novas bases, da antiga ‘’lei de Say’’).

O representante mais conhecido do chamado “marxismo-legal” será o economista Mikhail Tugan-Baranovsky que em 1894 publicará sua obra mais importante ‘Crises industriais na Inglaterra contemporânea’, obra pioneira na descrição dos ciclos industriais e das crises na economia mais desenvolvida do capitalismo. A obra é de muito interesse como uma das primeiras tentativas de descrever os ciclos econômicos do capitalismo utilizando o referencial marxista, um importante estudo histórico e que dá bases empíricas chave para o estudo das crises capitalistas durante o primeiro período do século XIX.

Os limites da obra de Tugan se demonstram quando ele passa da descrição histórica e do resgate empírico dos ciclos industriais para a generalização teórica sobre as causas das crises capitalistas. Para Tugan não existem limites estruturais para o desenvolvimento do capitalismo, a acumulação econômica capitalista não se choca com nenhum limite intransponível, sendo as crises do sistema todas crises conjunturais, causadas pela desproporção entre os diferentes setores da economia.

Ou seja, as crises não são expressão de contradições estruturais da economia capitalista, mas de desproporções parciais, fruto da anarquia da produção e da falta de planejamento que predominam no capitalismo. Essa desproporção se expressa na superprodução ou subprodução de determinados produtos, que ou ficam invendáveis durante um período, quando há superprodução, ou que impedem a continuidade do processo produtivo quando no caso da subprodução.

Exemplo, a subprodução de aço pode ser um fator que impeça por um tempo a continuidade da produção ampliada na indústria automobilística, posto que o aço é insumo chave para a continuidade do processo produtivo nesse setor da economia capitalista.

A superprodução de determinada mercadoria, por exemplo o cimento, em relação a cadeia produtiva da qual faz parte, ex: a construção civil, pode ser um fator que paralise o ciclo produtivo nesse setor, posto que todo setor da cadeia produtiva ligada a produção de cimento fica paralisada até que o cimento produzido no ciclo anterior encontre compradores e a relação entre oferta e demanda se equilibre novamente.

Assim, as desproporções e desequilíbrios entre os diferentes setores de uma economia que funciona de maneira anárquica e sem planejamento são os elementos centrais que explicam as crises capitalistas para Tugan. Sem sombra de dúvidas essas contradições que mostra Tugan são elementos ativos para explicar as crises capitalistas, mas não os únicos ou os centrais. Além desses elementos conjunturais existem contradições estruturais que explicam os limites da acumulação ampliada do capital. Se apenas os desequilíbrios e desproporções entre os diferentes setores da economia fossem as causas das crises capitalistas, como tenta mostrar Tugan, não existiriam crises estruturais do capitalismo, mas apenas crises conjunturais, e as possibilidades econômicas da reprodução ampliada do capital seriam infinitas, que é exatamente o que Tugan tenta provar.

Para tentar provar que não existem limites econômicos para a reprodução ampliada do capital Tugan-Baranovsky irá partir de pressupostos análogos aqueles formulados por Lenin, mas tornando-os unilaterais e os deformando fará desses pressupostos uma nova formulação da ‘’lei de Say’’, a partir de uma fraseologia marxista.

Enquanto Lenin mostrava que dentro de determinados limites o desenvolvimento do capitalismo poderia criar sua própria demanda, através da reprodução ampliada do setor I da economia (produtor dos meios de produção) e da dissolução dos antigos modos de produção pré-capitalistas, numa relação metabólica de apropriação desses espaços e sua transformação em formas capitalistas, Tugan eliminará esses limites às possibilidades da reprodução ampliada do setor I e tentará mostrar que a reprodução ampliada do setor que produz os meios de produção poderia ser um mercado inesgotável para a reprodução ampliada do capital, não existindo assim nenhum limite econômico para a reprodução ampliada do capital.

Ou seja, os limites à reprodução ampliada do capital encontram uma possibilidade inesgotável de superação nas possibilidades de reprodução ampliada do setor I da economia, sempre capaz de absorver a totalidade da mais-valia produzida no ciclo econômico anterior. Tugan constrói inclusive uma metáfora para exemplificar essa possibilidade ilimitada de reprodução ampliada do setor I da economia.

Nessa metáfora exemplifica uma economia onde só houvesse o setor I de produção, num processo onde máquinas são construídas apenas para construir mais máquinas, num inesgotável ciclo onde o setor de produção dos meios de produção se reproduz de forma sempre ampliada. A metáfora de Tugan será fortemente criticada por Rosa Luxemburgo em sua obra ‘A Acumulação do Capital’ dado seu caráter abstrato e totalmente desligado da realidade econômica capitalista.

CRÍTICA A METÁFORA CONSTRUÍDA POR TUGAN-BARANOVSKY

Para além da abstração e desligamento com a realidade concreta do capitalismo a metáfora construída por Tugan-Branovsky se choca também com uma análise cientifica da economia capitalista. O próprio pressuposto de que parte, de uma economia constituída apenas pelo setor I da economia, que produz os meios de produção, é um pressuposto equivocado. Tugan cai na mesma ilusão que os economistas burgueses que vem a produção capitalista não como produção de uma forma específica de relação social e na qual a riqueza social assume uma forma particular, a forma mercadoria, mas como produção em si da riqueza, eternizando assim as relações capitalistas. É a incapacidade de romper com o fetiche próprio ao capitalismo que impede Tugan de ver os limites à sua reprodução.

A impossibilidade uma economia em que existisse apenas o setor I da economia vem do fato primeiro que a produção capitalista não é puramente reprodução de produtos, de uma pretensa economia pura, mas reprodução de uma formação economico-social, o que pressupõe a produção e reprodução ampliada das relações sociais burguesas. A mercadoria, forma específica que assume a riqueza dentro do capitalismo, reflete e projeta essa necessidade de o capitalismo reproduzir essas relações sociais.

A mercadoria não é um simples produto, mas necessariamente deve ser capaz de satisfazer determinadas necessidades, físicas ou espirituais. A produção capitalista, nesse sentido, é síntese de diferentes momentos: produção, distribuição, circulação e consumo são momentos essenciais que sintetizados formam o conjunto que é a economia capitalista. Assim, o capitalismo pressupõe, assim como a produção o consumo que satisfaz as necessidades sociais daqueles que compõe a sociedade burguesa, consumo mediado pela distribuição da riqueza social entre as diferentes classes que compõe a sociedade e a circulação das mercadorias.

Nesse sentido, mesmo como metáfora, mesmo como abstração para exemplificar determinada perspectiva, a suposição de Tugan é equivocada, pois é impossível, mesmo como abstração e metáfora, pensar uma economia capitalista, produtora de mercadorias, que suprima o consumo e a produção para o consumo final, que satisfaça as necessidades sociais dos componentes da sociedade. A partir disso, é impossível, mesmo como abstração e metáfora, pensar uma economia capitalista, produtora de mercadorias, composta apenas pelo setor I; é essencial para a existência mesmo da riqueza como mercadoria, que existe um setor produtor de meios de consumo, o setor II da economia.

A produção do setor I da economia só se relaciona com o consumo final, e se torna assim mercadoria, valor de uso que satisfaz necessidades concretas, pela sua interação com o setor II da economia, sendo a base da produção industrial das mercadorias que entram no consumo final da sociedade. Uma economia em que existisse apenas o setor I da economia, mesmo que admitíssemos por algum momento a abstração forçada de Tugan, não seria uma economia capitalista, produtora de mercadorias, que pressupõe a satisfação de necessidades reais da sociedade, mas uma economia produtora de objetos, que não tem valor de uso e portanto também não valor de troca, pressupostos da mercadoria e, portanto da economia capitalista.

A interação entre setor I e setor II da economia, portanto, entre produção de meios de produção e meios de consumo, o primeiro setor produzindo os meios de produção para o segundo e este os meios de consumo para operários e capitalistas do primeiro, é elemento fundamental para a produção de mercadorias e desenvolvimento da sociedade capitalista.

A abstração e metáfora pensada por Tugan-Baranovsky é importante, contudo, tanto pela positiva, por mostrar e exemplificar a possibilidade do desenvolvimento capitalista mesmo sem mercados consumidores já estabelecidos, posto a capacidade de o setor I da economia de absorver o excedente econômico, dentro de determinadas condições, quanto pela negativa por mostrar que qualquer tentativa a partir daí de construir um modelo “marxista” que dê base a novas formulações da velha ‘’lei de Say’’, onde não existem limites estruturais ao desenvolvimento do capitalismo, é um erro que acaba levando às maiores fantasias.

Os debates sobre acumulação econômica na Rússia no final do século XIX serão momento fundamental do desenvolvimento da teoria marxista da reprodução ampliada do capital e das crises capitalistas, pois serão uma das primeiras tentativas de aplicar a teoria a uma formação econômico-social concreta e em plena fase de transformação de relações semi-feudais em relações capitalistas. Apreender de forma crítica esses debates é essencial para pensarmos a teoria das crises e da acumulação capitalista hoje.




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