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20 ANOS SEM KURT | Kurt Cobain, poeta de um mundo caduco

All alone is all we are
(completamente sozinhos é tudo o que somos)

  •  All apologies
  • domingo 7 de dezembro de 2014 | 20:38

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    Por: Fernando Pardal

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    Kurt Cobain, poeta de um mundo caduco

    All alone is all we are
    (completamente sozinhos é tudo o que somos)

  •  All apologies

    Há vinte anos Kurt Cobain encerrava sua vida com um tiro. Ele tinha apenas 27 anos de idade, e era um dos mais famosos músicos de todo o mundo. A obra de Kurt, genial, e sua vida também, breves como foram, constituem o retrato de “um mundo caduco”, tomando uma expressão do poeta Drummond, e de um choque angustiado contra este. Um mundo que produz pessoas que se desencontram de si mesmas, dos outros, de tudo. Um mundo de dor. Um mundo esquecido de si, que nos mata a cada dia; seja fisicamente, seja em nossa mente.

    A adolescência e juventude de Cobain se deram no limiar de uma época, quando a burguesia leva adiante os primeiros sólidos golpes de sua restauração como classe dominante “incontestável”. Assentada sobre derrotas políticas dos trabalhadores, como as derrotas dos grandes levantamentos revolucionários que chacoalharam o mundo a partir de 1968, bem como a destruição do que restava de importantes Estados operários como a União Soviética, o triunfo da nova época não foi apenas econômico, político e social. Ele foi também ideológico: inaugura aquilo que a própria burguesia chamou de “fim das utopias”, martelando pesadamente a ideia monolítica de que, por mais horrível que seja esse mundo, é o único que se pode ter. Cria o peso de um mundo morto, estático, insuperável.

    A ideia de liberdade, portanto, desaparecendo do horizonte social, dá um giro em falso, e cai sobre o indivíduo. Nos prometem a liberdade individual, a saída egoísta para nossos problemas passando por cima dos que nos cercam. O indivíduo e sua ascensão como eixo do mundo dão o verniz dessa podre ideologia. O fardo de uma utopia reacionária que nenhum “conto de fadas” moderno é capaz de sustentar. Uma fábrica de desespero, angustia, tristeza.

    Kurt Cobain, um jovem sensível e impressionável, cresce no alvorecer dessa miséria, desse beco sem saída que o capitalismo apodrecido ofereceu à juventude do fim do século XX. A psiquiatria baseada no marketing e no lucro, que logo é colocada em um lugar de responsabilidade para atender o imenso sofrimento psíquico de um mundo tão angustiante, cedo impingiu seu veredito sobre o jovem Cobain: ainda criança, foi diagnosticado com Transtorno de Déficit de Atenção e Hiperatividade (TDAH), e, mais tarde, com Transtorno Bipolar. Em sua família, um histórico de depressão e suicídios teve sua parcela de fardo hereditário. Seu diagnóstico precoce o coloca como um precursor da “geração Prozac”, que antecede uma sociedade da “felicidade obrigatória” capenga, apoiada em remédios que tapam o sofrimento como uma peneira tapa os raios de sol.

    Kurt nasceu no estado de Washington, um centro gravitacional do rock alternativo nos EUA que gerou os movimentos grunge – do qual o Nirvana foi um dos grandes expoentes – e o movimento riot grrl. Era de uma família proletária, com uma mãe garçonete e um pai mecânico. Em uma sociedade onde todas as responsabilidades sobre a criação e o bem estar dos filhos recaem sobre a família, com o Estado se eximindo de qualquer tipo de apoio, seja material, educacional, psicológico ou de qualquer outro tipo, Kurt foi mais uma das infinitas crianças que teve esse amparo familiar destruído precocemente, com drásticas consequências. Aos sete anos, seus pais se separam, o que deixa cicatrizes profundas nele. Como afirma em sua carta de suicídio, “desde os sete anos passei a odiar a humanidade em geral. Apenas porque parece tão fácil para as pessoas que têm empatia se darem bem. Apenas porque eu amo e sinto pena demais pelas pessoas, eu acho.” Morou com o pai, viu a mãe ser vítima de um relacionamento abusivo onde era agredida constantemente, chegando a ter o braço quebrado pelo marido sem, no entanto, romper a relação. Morou com amigos de seu pai; morou na rua, ou ao menos a adotou como lar, marcando essa experiência na música “Something in the way”.

    Na escola, ao ter um amigo próximo gay, conheceu o que era o preconceito e a intolerância. Em seu diário, disse “eu não sou gay, mas gostaria de ser para irritar todos os homofóbicos”. Subverteu a própria religiosidade cristã que adotou ao morar com a família que o acolheu, pixando “Deus é gay” em carros e paredes de sua pequena cidade, Aberdeen. Mais tarde, tomou parte na defesa dos direitos das mulheres, junto a ativistas do movimento Riot Grrl, como sua companheira Tobi Vail, da banda Bikini Kill, ou no festival pelo direito ao aborto organizado pela banda L7, chegando a sofrer ameaças de morte.

    Alguns, talvez, vejam nesse texto um “psicologismo barato”, mas o fato é a trajetória de Cobain moldou uma subjetividade capaz de criar uma música visceral, cheia de ódio e revolta, e ao mesmo tempo dor, melancolia e resignação, que foi o que permitiu que o Nirvana se tornasse “porta voz de uma geração”, com seu segundo disco, “Nevermind”, de 1991, lançando a banda ao estrelato absoluto. No caminho de uma sensibilidade aflorada ao extremo, agredida de muitas formas, Kurt tornou-se viciado em heroína, e não encontrava em si próprio o reflexo do que gostaria de ser. Sobre sua pequena filha, Frances, disse também em sua carta de despedida: “Eu tenho (...) uma filha que me lembra demais do que eu mesmo costumava ser, cheia de amor e alegria, beijando todos que encontra porque todos são bons e ninguém fará mal a ela. E isso me apavora ao ponto de que mal consigo funcionar. Não suporto a ideia de que Frances se torne algo como o miserável, auto-destrutivo e mórbido roqueiro em que me transformei.”

    A música era uma das formas que Kurt encontrou de colocar para fora todas essas contradições acumuladas dentro dele. E milhões de jovens no mundo inteiro se identificaram com a dor e a fúria de sua arte. Ela colocava as feridas em carne viva, tomava nervos expostos, como em “Polly”, música inspirada no sequestro de uma menina de 14 anos após um show de punk, que levou ao seu estupro e à tortura com um maçarico. Ou a homenagem a atriz Frances Farmer, nativa de Seattle, que foi internada a força e submetida a brutais “tratamentos” psiquiátricos compulsórios. Eram dores pequenas, de indivíduos, que eram do tamanho do mundo, o mundo doente em que Kurt cresceu e no qual fez sua arte.

    Ironicamente, o mundo que havia dilacerado Kurt não pouparia nem a sua própria revolta, transformando-a em mais um nicho de mercado, uma fonte para os caça-níqueis da miséria alheia. E isso foi mais uma vez um golpe para o músico, que detestava a perseguição implacável da mídia e a transformação de si mesmo em um produto. As interpretações de sua música lhe causavam repúdio: “Por que diabos os jornalistas insistem em fazer interpretações freudianas de segunda categoria das minhas letras quando, em 90% dos casos, eles as transcrevem incorretamente?” A transformação de Cobain em um “ídolo vazio”, com teorias conspirativas acerca de sua morte e um suposto assassinato, a sua “canonização”, são emblemáticas de como o capitalismo é antropofágico, capaz de deglutir e subverter tudo aquilo que surge de suas entranhas contra ele próprio, e transformar em meramente mais um produto. Essa foi mais uma das agressões dessa sociedade a Kurt e sua obra, que, quando esteve no Brasil em 1993 para um dos últimos shows de sua vida, disse em entrevista: “Não entendo essa gente querendo me pegar, me olhar, me assistir o tempo todo. Estou de saco cheio. Vou mudar de profissão, não vou agüentar isso a minha vida inteira.” A música, que havia sido uma forma de exorcizar os demônios, tornou-se mais uma escravidão, graças à sua “coisificação”, sua transformação em um produto e no seu autor em um fetiche. Na carta de suicídio isso também se expressa, quando Kurt relata que um de seus maiores sofrimentos era não mais conseguir se entusiasmar com a música: “Eu não me sinto mais entusiasmado em ouvir e nem criar música, bem como em ler e escrever já há muitos anos agora. Me sinto culpado além do que posso expressar em palavras em relação a isso. (...) Às vezes sinto como se devesse bater o cartão de ponto antes de subir ao palco”.

    A música de Kurt Cobain e do Nirvana permanecem vivas, como uma arte que testemunha a tristeza e a decadência de uma sociedade que ainda vive e faz sofrer.


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