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A CRISE NA UE E O BREXIT | Jürgen Habermas: “Jamais pensei que o populismo poderia derrotar o capitalismo em seu país de origem”

Aos seus 87 anos, Jürgen Habermas analisa as razões e os possíveis cenários que se abrem na Europa a oito anos do começo da crise econômica internacional e após o Brexit, cujo triunfo o leva a se perguntar como é possível que questões indentitárias primem sobre os interesses financeiros da City londrinense.

quinta-feira 21 de julho de 2016 | Edição do dia

O Brexit e a questão nacional

Em suas respostas ao periodista Thomas Aussheuer, o filósofo alemão considera que a histórica vitória do Brexit, além de um sintoma da crise mais geral que atravessa a UE, tem razões nacionais. Por sua vez, que os britânicos têm uma história diferente da do resto do continente, que possuem a consciência política de uma grande potência, duas vezes vitoriosa no século XX, mas hoje marcada por um contexto de declínio mais geral, em que vacila em adaptar-se a nova situação. Segundo Habermas, a Grã-Bretanha caiu em uma situação “incômoda” depois de unir-se a UE em 1973 por razões estritamente econômicas.

Na entrevista, argumenta que as elites políticas “desde Thatcher até Blair e Cameron nunca pensaram em abandonar sua visão distante do coração europeu”, e que essa já era a visão de Churchill quando, em seu famoso discurso de Zurique de 1946, via o papel de império benevolente que apadrinha a unidade europeia, mas não é parte dela. De fato, a Grã-Bretanha, membra do bloco europeu, nunca aceitou fazer parte da zona do euro, mantendo um grau de independência monetária que outras potências, como França e Alemanha, perderam ao se unirem à moeda comum.

Essa atitude instrumental da elite política da Grã-Bretanha com a União Europeia se expressou claramente na campanha pelo “Remain”, observa Habermas, assinalando que os defensores da permanência na UE só esgrimiam argumentos econômicos. Então, pergunta-se: Como poderia vencer uma atitude pró-europeia sobre a maioria da população se os líderes políticos acreditaram durante décadas que a busca de interesses nacionais bastava para se manter numa comunidade supranacional de Estados? Segundo ele, a visão liberal da Grã-Bretanha sobre a UE como área de livre comércio em expansão, mas sem um aprofundamento da cooperação com o bloco, é parte da explicação do Brexit.

Um Brexit alemão?

Para Habermas, não seria possível. Ao contrário do resultado na Grã Bretanha, considera que, se houvesse um referendo na Alemanha, o resultado seria distinto, pois “a integração europeia todavia está em função dos interesses alemães”. Habermas explica que “nas primeiras décadas do pós-guerra, só atuando como ‘bons europeus’, a Alemanha pode restaurar passo a passo sua reputação nacional. E contou com o apoio da Europa para a reunificação. Retrospectivamente, a Alemanha foi a grande beneficiária da união monetária europeia, e isso conta também durante a crise do euro”.

A crise da UE e os populismos europeus

Nos últimos anos, estamos presenciando, por um lado, um avanço de setores eurocéticos e populistas de ultradireita na Europa, tanto o UKIP na Grã Bretanha quanto o Partido Liberal na Áustria, “Alternativa para a Alemanha” ou Aurora Dourada, na Grécia, entre outros; e, por outro lado, uma crise dos partidos políticos tradicionais.

A esse respeito, Habermas afirma que “o referendo expressa algo do estado de crise na UE e em seus estados membros. A análise aponta o mesmo padrão que vimos na eleição presidencial da Áustria [que deve refazer a eleição, com grandes possibilidades para o ultranacionalismo – N.d.A.] e nas recentes eleições parlamentares da Alemanha. A participação relativamente alta sugere que o campo populista tem mais êxito em mobilizar setores que antes se abstinham. Isso, junto com outra descoberta, de que os mais pobres e os menos educados votaram mais pelo ‘leave’. A percepção do aumento da desigualdade social e o sentimento de impotência, de que seus interesses já não estão representados pela política, é o que está por trás da mobilização contra os estrangeiros, por deixar a Europa, o ódio a Bruxelas. Numa vida cotidiana instável, o sentimento de pertencimento nacional é um elemento estabilizador”.

“Pós-democracia”, a palavra chave

Habermas também se referiu a um sentimento que, segundo ele, está cada vez mais presente nas sociedades modernas: o da perda de controle de um núcleo real, sintoma de uma época que chama “pós-democrática”, que se evidenciou com o referendo britânico. Existe um “esvaziamento das democracias nacionais que haviam dado aos cidadãos o direito de co-determinar importantes condições de sua existência social”.

Por exemplo, a juventude é um setor que, de acordo com sua análise, parece considerar “anacrônico” o regime democrático. Habermas considera que o fato de que os jovens entre 18 e 24 anos não votaram massivamente é um indicador de que a democracia é considerada “antiquada” pelo simples fato de que as decisões econômicas básicas da UE não são tomadas democraticamente. Além disso, Habermas argumenta que, num contexto em que o poder da União está baseado em que os interesses de cada Estado-nação bloqueiem-se mutuamente, a resposta correta seria a trans-nacionalização da democracia. Mas ninguém mais acredita nisso, afirma.

“Não mais visões grandiloquentes, e sim soluções práticas”

O filósofo alemão assinala que o problema do crescente euroceticismo e a possibilidade de novos referendos em outros países da UE, como a França, estão relacionados com problemas não resolvidos, que não são ideológicos, mas sim concretos e urgentes. Disse Habermas: “os problemas urgentes não são tratados, a não ser a crise do euro, a crise dos refugiados e os problemas de segurança. Mas mesmo nesses fatos não há acordos entre os 27 membros. A crise do euro. A crise do euro ata esses países há vários anos, ainda que de forma assimétrica”.

Considera como um primeiro passo nesse sentido “que a Alemanha abandone sua resistência a uma maior cooperação fiscal, econômica e social, e que a França esteja disposta a renunciar sua soberania sobre estas questões”. Entretanto, este fato, até agora sem maiores possibilidades, dificilmente ocorrerá caso a Frente Nacional, que já agita um referendo francês, ganhe as eleições de 2017.

Habermas analisa criticamente o papel “hegemônico” da Alemanha dentro do bloco europeu, destacando que se trata de um líder “relutante”. “Desde 2010, podemos ver como o governo alemão trata seu papel indesejado de liderança na Europa, menos no interesse geral, e mais no interesse nacional. A Alemanha é um hegemon renegado e, ao mesmo tempo, insensível e incapaz, que, ao mesmo tempo, usa e ignora a relação de forças alteadas na Europa. Isso provoca ressentimentos, especialmente em outros países da eurozona. Como se sente um espanhol, um grego ou um português que perdeu seu trabalho por causa dos cortes decididos pelo Conselho Europeu? Ele não pode tirar o governo alemão com seu voto”.

É assim que, para o filósofo alemão, na medida em que essa estrutura antidemocrática continue, não são surpreendentes as campanhas anti-europeias nem o avanço de partidos euro-céticos em todo o bloco.

Que saída tem a UE?

A UE, segundo Jürgen Habermas, deve recuperar a confiança e aprofundar sua democratização e, assim, os partidos de extrema direita perderiam força. O Estado de bem-estar e a democracia têm um nexo interno que não pode ser garantido pela mera união monetária atual entre Estados nacionais.

Desta forma, conclui sua reflexão sobre o estado atual da “União” este que, há alguns anos, imaginavam ser um dos pensadores mais otimistas da reforma da Europa do capital.

A confissão de quem é reconhecido como um dos mais destacados pensadores da “identidade europeia” de que jamais pensaria “que o populismo poderia derrotar o capitalismo em seu país de origem” é todo um sintoma do pouco que resta daquele otimismo fácil a oito anos do início da crise capitalista. Anos em que o projeto da UE mostrou mais cruelmente seu caráter reacionário. Uma Eruopa atualmente marcada pela crise de refugiados, pela ação reacionária do Estado islâmico e o militarismo imperialista no Oriente Médio, por uma crescente polarização, com as variantes xenófobas de direita, com os “neorreformismos”, e com novos fenômenos da luta de classes como o que se desenvolve na França, contra a reforma trabalhista.

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Tradução: Seiji Nagoya




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