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OPINIÃO | Jessica Jones, o trauma da mulher abusada e as contradições da indústria cultural

Jessica Jones é uma série que vem conquistando a juventude. Apesar de ser da Marvel, ela segue um caminho muito mais próximo ao das alegorias dos impactos subjetivos de um abuso no psicológico de uma mulher, do que de fato um conflito de super-herói versus vilão. Krysten Ritter, a atriz que interpreta a personagem título, chegou a dizer em entrevista que se tratava de um triller psicológico, ao invés de uma série de heróis.

Gabriela FarrabrásSão Paulo | @gabriela_eagle

terça-feira 5 de janeiro de 2016 | 01:00

Jessica é uma mulher dotada de “super-força”, característica que ela adquiriu quando ainda adolescente e que sempre usou para praticar o “bem”. Sua vida sofre uma reviravolta quando ela conhece Killgrave, homem também dotado de um super-poder, mas que, no seu caso, é controlar as mentes das pessoas. A partir disso, Jessica começa a ser controlada, e isso envolve uma série de questões. A que fica mais óbvia é a manipulação física que Killgrave faz, no sentido de forçar Jessica a matar quando necessário, a usar sua força para protegê-lo, etc.

No entanto, no pano de fundo tem-se a manipulação psicológica e o abuso sexual. Killgrave, além de obrigar Jones a ser sua capacho, usa da mulher para sua satisfação sexual. Se ele disser “tire a roupa”, Jessica tira, sem nem poder cogitar em não fazê-lo, já que o poder de controle de Killgrave é maior do que qualquer outra coisa. Daí decorre uma série de reflexões interessantes. Em que medida é preciso ter o super-poder de controle de mentes, para de fato influenciar alguém? Quantas mulheres não sofrem abusos, assédios e estupros porque são forçadas por companheiros ou induzidas a fazer algo que não desejam. Às vezes, o poder que o companheiro imprime é tão presente que a mulher nem percebe que está sob sua influencia. A própria cultura de estupro está aí, para mascarar tudo isso.

Jessica traz essa questão e carrega, portanto, uma série de traumas, que darão impulso para que ela lute contra Killgrave e suas atrocidades. Sua amiga, Trish, que a princípio é traçada sob um estereótipo da mulher “patricinha”, se revela também uma mulher independente, que abre mão de família e relacionamento para lutar ao lado de Jessica. As duas são personagens fortes e, de maneira muito rara, a Marvel consegue construir uma série em que as protagonistas são mulheres, mas o romance fica no terceiro plano. São mulheres independentes.

Indo um pouco mais além, pode-se entender Killgrave como uma alegoria para o sistema de controle a que somos submetidos. Seu poder em controlar ideias e atitudes é tão intenso que Killgrave acaba sendo a própria ideologia e o controle social: para garantir a sua própria sobrevivência e riqueza, faz uso do controle daqueles que estão ao redor, mantendo-se sempre impune. Podemos ler a luta de Jessica apenas como contra um homem estuprador. Mas é muito mais interessante pensar que essa mulher, forte e independente, busca lutar contra todo um sistema de controle.

Mas é preciso também ter sempre uma pulga atrás da orelha e a plena consciência de que a indústria cultural se apropria de elementos da luta feminista para cooptar esse movimento e ganhar dinheiro em cima disso. Em última instância, colocar a luta de uma mulher contra o seu abusador em uma série é também uma forma sutil de conter a luta feminista, que nos últimos tempos tem tomado as ruas, principalmente na América Latina. O expectador acaba tendo uma falsa sensação de que progredimos tanto a ponto de hoje termos séries com uma protagonista mulher em luta contra o abuso sexual, quando isso não é nem de longe suficiente e não representa um real progresso para acabar com a opressão.

Não é por acaso que o casal principal de Jessica Jones é uma mulher branca e um homem negro, Luke, personagem que também possui super poderes. Assim como não é acaso que o casal do filme com maior estreia nos ultimos tempos, Star Wars, seja igualmente constituido por uma mulher e um negro. Esses dois setores oprimidos representados são os que têm estado a frente das principais lutas em curso nos últimos tempos, desde as marchas por “nenhuma a menos” na Argentina aos atos contra os assassinatos de jovens negros nos Estados Unidos, gritando que “vidas negras importam”, passando também pelos atos contra a PL5069 no Brasil. A indústria cultural dá a esses setores o protagonismo para ter a simpatia deles e para exercer o controle do qual falamos acima.

Então, é importante ver e valorizar uma série em que a protagonista e heroína é uma mulher, mesmo a personagem bem construída sendo contraditória por reproduzir diversos machismos; mas é sempre muito importante ter em mente que a indústria cultural não abre espaço a esses setores sem ter um interesse por trás. Por isso repetimos sobre Jessica Jones: é muito mais interessante pensar que essa mulher, forte e independente, busca lutar contra todo um sistema de controle. Mulheres, negros e classe trabalhadora contra o sistema de controle. Essa sim é a única saída.




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