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LITERATURA OPINIÃO | Imperialismo, marginalização e ficção científica

Sobre "Piquenique na estrada", de Arkádi e Boris Strugátski.

quarta-feira 26 de agosto de 2020 | Edição do dia

Dentro do rutilante panorama da literatura, o gênero da ficção científica tem sido considerado, enganosamente, como um subtipo de literatura marginal. Seja porque em geral não segue os padrões que o establishment da crítica literária gostaria, ou porque tende a ser compreendido como uma literatura escapista que evita os conflitos sociais para se adentrar em mundos imaginários, invenções fantásticas e naves espaciais. Não se pode negligenciar o fato de que os tópicos anteriores têm sido recorrentes da ficção científica, e tais tópicos,às vezes,se tornaram exemplos de projetos colonialistas e fascistas, representados por autores como Robert Heinlein. A literatura de ficção científica, entretanto, é muito mais rica e complexa que Starship troopers e a franquia Star Wars. E é precisamente por estar sendo produzida às margens do sistema cultural-literário que boa parte das obras de ficção científica, sobretudo a partir da chamada nova onda, tem representado precisamente o contrário, isto é, tanto ferramentas de crítica social quanto obas politicamente engajadas.

O próprio nascimento do gênero, com obras como as de Herbert George Wells (1866-1946), esteve caraterizado por uma leitura crítica da estrutura de classes da sua época, constituindo mundos ou formas de existências fictícias que funcionavam como espelhos do mundo real e, assim, ajudavam a questioná-lo. Grandes obras como as da Ursula Le Guin, Stanislaw Lem, Octavia Butler, Angélica Gorodischer, China Mieville, Andreas Eschbach, Nnedi Okorafor e Cixin Liu são só alguns exemplos das potencialidades que a ficção cientifica oferece para recriar os mais importantes temas políticos do nosso mundo e, também, para propor alternativas de luta, diálogo e organização.

Entre as décadas de 1950 e 1980, nas margens das margens, dois irmãos nascidos em Leningrado criaram umas das mais lucidas e instigantes obras de ficção cientifica do século XX. Sem dúvida, Arkádi Strugátski (1925-1991) – linguista e tradutor de inglês e japonês – e Boris (1933-2012) – astrônomo e engenheiro – tem um lugar especial na criação literária e na crítica política. Enquanto a maioria dos escritores de ficção científica da União Soviética que lhes eram conterrâneos fixava seu olhar no progresso das máquinas e na exploração de planetas além da via láctea, os irmãos Strugátski aproveitaram a narrativa do gênero para aprofundar a exploração das relações sociais e dos sistemas econômicos e políticos.

Nas suas primeiras obras, como O pais das nuvens roxas (1959) e Cataclismo em Iris (1963), os irmãos parecem recriar, dentro da fiação científica, as narrativas das façanhas da Revolução Russa com metáforas e parábolas sobre a solidariedade e o sacrifico altruísta, tal como o fizeram, na corrente do “realismo socialista”, autores como Nikolai Ostrovski, Mihaíl Stélmaj ou Vladimir Popov. Porém, nos anos seguintes aos seus dois primeiros livros a produção dos Strugátski, agora com um olhar desencantado e pessimista, constrói narrativas de impressionante profundidade e crítica social. Em todos os livros e histórias curtas escritos pelos irmãos depois da década de 1960 alguns temas são recorrentes: o imperialismo, o “autoritarismo”, a burocratização da sociedade e, talvez o mais importante nas suas obras, a marginalização / precarização da vida em meio a sistemas sociais caraterizados pela desigualdade. É importante sinalizar que, com exceção dos dois primeiros romances, todos os livros dos irmãos Strugátski foram censurados e demoraram anos, ou mesmo décadas, para serem publicados.

Dentro do contexto de alta qualidade da sua obra, Piquenique na estrada (Пикникнаобóчине) não representa uma exceção. Publicada originalmente em russo em 1972 e trazida ao Brasil em 2017 pela editora Aleph com a tradução direta do russo de Tatiana Larkina, é a primeira obra dos irmãos Strugátski publicada em português. Como todos os livros desta editora, o cuidado editorial e a qualidade gráfica saltam aos olhos. A edição da Aleph inclui um interessante prefácio da maravilhosa Úrsula Le Guine, um posfácio do próprio Boris Strugátski em que são narradas as censuras e controles que o livro sofreu na URSS. O romance dos irmãos retrata a vida na cidade imaginária de Harmont, lugar onde uma nave espacial controlada por alienígenas pousa na Terra por pouco tempo, deixando uma impressionante quantidade de “lixo espacial” composta de diversos artefatos de indecifrável utilidade para os humanos. Alguns destes objetos violam as leis da física terráquea – ou pelo menos não estão sujeitos a estas leis. A raridade e escassez dos artefatos alienígenas gera uma impressionante demanda ao redor deles, criando uma concorrência entre diversas potencias imperialistas para se apropriar dos objetos e, a partir deles, descobrir algum novo tipo de energia ou armamento.

A curta estadia da nave produz uma imensa contaminação radioativa gerando mudanças ambientais significativas na área do pouso. Por isto a “Zona”, como é chamada a área do pouso, é cercada e “protegida” pelas Nações Unidas, mas as potencias imperialistas disputam entre si os objetos da Zona valendo-se dos “Stalkers”: trabalhadores super explorados que têm como ganha pão a recuperação dos objetos alienígenas da zona proibida e sua venda para algum dos diplomatas das potencias. Estas atividades ilegais, às vezes, levam os stalkers à prisão, embora em tais situações os representantes diplomáticos jamais recebam punição similar. No seu trabalho, os stalkers colocam em risco suas vidas tanto pela presença das forças de segurança que vigiam a área quanto por conta dos altos níveis de contaminação nuclear a que seus corpos são submetidos. Cada entrada dos stalkers na zona proibida representa a possibilidade de não mais voltar ao lar, de morrer no instante do contato com algum objeto alienígenas, ou mesmo de morrer posteriormente por conta da contaminação – sem mencionar a grande chance de, por tabela, compartilharem com seus familiares a carga tóxica que carregam consigo, correndo o risco de estimular neles o desenvolvimento de perigosas e eventualmente fatais mutações genéticas. Será que isto lembra algum cenário atual ou é somente literatura de escapismo como sugerem Harold Bloom e companhia?

Na trama, acompanhamos também a vida cotidiana do stalker Redrick Schuhart, que sobrevive e mantem a sua família recuperando e vendendo objetos da Zona ao mesmo tempo que tenta não ser detido pelos corpos de segurança ou assassinado por algum stalker rival. Porque neste cenário, longe de formar um conjunto articulado pela solidariedade de classe, os stalkers se enfrentam e concorrem entre si pela apropriação dos artefatos alienígenas. Desta maneira, o livro dos Strugátski é um retrato profundo dos processos de marginalização social configurados pelas dinâmicas próprias de divisão internacional do trabalho, mais especificamente em contextos periféricos. Neste sentido, o romance dos Strugátski pode ser lido também como uma ficcionalização da configuração do sistema mundial moderno vista desde o ângulo de um trabalhador super explorado e da sua família. E, se lido com cuidado, o livro apresenta-se como uma significativa metáfora ou translação tanto do Desenvolvimento do capitalismo na Rússia (1899) de Vladimir Lênin quanto do primeiro capítulo da História da revolução Russa (1930) de Leon Trótski, e da ideia do desenvolvimento desigual e combinado. Os fundamentos da obra dos Strugátski e as trajetórias que percorrem seus personagens são bastante claros neste sentido.

Finalmente, o livro conta com uma adaptação cinematográfica, lançada em 1979,realizada pelo genial cineasta russo Andrei Tarkovski e intitulada Stalker. Como todos os filmes de Tarkovski inspirados em obras de ficção científica, a película difere do livro, mas conserva o espírito crítico da obra, retratando com delicadeza e formosura alguns dos aspetos mais difíceis da vida no capitalismo globalizado.




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