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DOMINGOS MONTAGNER | Hoje morreu um grande artista, e muito mais.

Flor Di CastroArtista visual

sexta-feira 16 de setembro de 2016 | Edição do dia

Nas águas do Rio São Francisco morreu hoje (15/09/2016) o ator Domingos Montagner, um artista único, memorável, que transcende o tempo e permanece na história. Os que o conheceram afirmam que era uma pessoa verdadeiramente humana, com um brilho especial. Realmente fará falta ao mundo artístico com todo o seu talento e emoção, todos nós, que admirávamos o seu trabalho, estamos chocados com a triste partida.

Atualmente ele dava vida a um personagem muito emblemático, levando em conta o contexto presente do país. Seu nome: Santo. Era o personagem principal da trama de Velho Chico, novela das nove da Rede Golpe.

Essa novela tem algumas características muito peculiares, que a faz ser totalmente dissonante comparando com o resto da programação do ano da emissora. Pense: uma novela rodada no nordeste, com atores muito bons e não muito conhecidos, vários nordestinos, onde os ‘mocinhos’ da história são barbudos, do povo e com um pensamento de esquerda bem marcante em alguns pontos. O vilão, o Coronel Saruê, é exatamente o contrário, um latifundiário que, com o seu poder, manda e desmanda na pequena cidade, comprando a tudo e a todos. Os que não pode comprar, mata. Fagundes (que interpreta o personagem) deu a seguinte declaração há alguns dias: "No dia 17 de abril [data da aprovação do processo de Impeachment da presidente Dilma Rousseff], vimos na votação da Câmara dos Deputados uma fila interminável de Saruês, quase com a mesma roupa, com o mesmo estilo, com o mesmo cabelo acaju e com os mesmos argumentos."

Outro ponto a se dizer sobre a novela é a parte musical, a maioria canções de Caetano Veloso, sendo que na abertura temos Tropicália e o seguinte trecho:

‘Eu organizo o movimento
Eu oriento o carnaval
Eu inauguro o monumento
No planalto central do país’

Lembrando que na continuação da letra temos:

‘O monumento não tem porta
A entrada é uma rua antiga,
Estreita e torta
E no joelho uma criança sorridente,
Feia e morta,
Estende a mão’

Não sou muito das novelas, mas dessa assisti alguns capítulos junto ao meu pai. Todas as vezes fazíamos o mesmo comentário: ‘Nossa, não é possível que esta novela esteja passando na Globo justo agora, com todo esse golpe acontecendo. Que ironia’. É que o cunho político está muito presente na história, lógico que entre o velho e já conhecido ‘dramão’ dos folhetins.

Outra coisa estranha é que a novela não foi aceita pelo grande público aqui em São Paulo, não agradou a quase ninguém. De fato, escutei até a nordestinos dizendo: ‘Que novela chata, com esse bando de nordestinos’. E eu só conseguia pensar sobre o bizarro que era tudo isso.

A emissora tentou diminuir a trama em seis meses, alegando que havia pouca audiência. Mas não conseguiu, pois os números aumentaram. Sinto que a verdade era que eles não estavam muito felizes com o conteúdo, não era para menos.
Hoje a morte de Domingos, o ator que interpretava um personagem que lutava com o corpo e a alma pelos seus ideais e pelos direitos do povo, levado de maneira tão misteriosa pelo Rio São Francisco (rio esse que é a marca mor do povo nordestino e, ouso a dizer, de todos os brasileiros), um dia após a esdrúxula denúncia feita pelo Ministério Público ao ex-presidente Lula e há apenas duas semanas do golpe que tirou a presidenta Dilma de seu cargo, fez-me ver a irreparável perda desse grande artista também de uma forma mítica e simbólica. Pois, além de sua própria vida, vejo com ele ir embora pelas águas do Rio São Francisco, todo o povo brasileiro, que dorme em sono ‘esplêndido’ enquanto o massacram e aniquilam.

Enfim, resta-me dizer: Domingos, gratidão pela sua sincera arte, pessoas e artistas como você fazem e sempre farão falta neste país tão mesquinho, voltado ao vil metal e que, em passos tortos, caminha ao abismo.


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