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TEORIA | Hegel ou Spinoza (sobre o clássico de Pierre Macherey)

Hegel ou Spinoza (Bs. As. 2006, ed. Tinta Limón, 262 págs.) de Pierre Macherey, publicado originalmente em francês em 1979 é um livro de uma grande fortaleza argumentativa.

quinta-feira 3 de setembro de 2015 | 02:03

A sutileza argumentativa deste livro torna-se um pouco camaleônico. Ainda que muitas vezes tem se apresentado como uma espécie de Bíblia do spinozismo anti-hegeliano, os argumentos de Macherey são muitos diferentes aos de qualquer leitura simplificadora. Basta dizer que em certos parágrafos dedica alguns argumentos secundários a desmistificar certas passagens de Deleuze (pág.179) e Colletti (págs.244/245), assim como antecipadamente o argumento do "materialismo do encontro" do último Althusser (pág. 223). Mas não nos antecipemos.

Macherey procede por um método argumentativo ambivalente e rigoroso por sua vez. Se seu objetivo bem é desmistificar a refutação de Spinoza por Hegel, esta tarefa pode se realizar a condição de desconstruir a interpretação hegeliana, incluindo a demonstração das proximidades entre ambos que Hegel passou por cima.

Por isso afirmamos que Hegel ou Spinoza, pode significar "ou bem Hegel ou bem Spinoza" tanto como "Hegel sive Spinoza", ou seja, Hegel ou Spinoza não como alternativas que se excluem senão como termos intercambiáveis e de algum modo equivalentes.

O esclarecimento não está excessiva e não é um exercício ocioso, pois é o que faz deste um dos principais procedimentos e o que torna muito atrativo o trabalho de Macherey: mostrar por um lado o "arbitrário" da leitura "por omissão" que Hegel fez de Spinoza apresentando-o como um precursor que não chegou a formular a ideia de que a substância é sujeito e, por sua vez, demonstrar como em muitos aspectos que Hegel apresenta como centrais em sua crítica a Spinoza, o filósofo judeu-holandês está muito mais próximo de Hegel do que o filósofo alemão estava disposto a reconhecer.

Macherey propõe então modificar a ordem "cronológica" que a leitura de Hegel feita sobre Spinoza tentando demonstrar que finalmente é este que refuta aquele. E assim mesmo busca indagar em qual aspecto da filosofia spinoziana que se tornou intolerável para Hegel e condicionara sua leitura de pensamento do autor da Ética demonstrada segunda a ordem geométrica.

O filósofo francês concentra os argumentos sobre os mesmos ângulos que Hegel utilizou nas Lições da História da Filosofia e na Ciência da Lógica, assim como parcialmente no prólogo da Fenomenologia do Espírito: a questão do método, dos atributos e da negação.

Antes de passar a esses pontos, Macherey parte de apresentar a crítica inicial de Hegel: Spinoza começa pelo absoluto de maneira imediata, como o pensamento oriental e desta forma todo o desenvolvimento ulterior não pode revestir mais que a forma de uma decadência, toda vez que ao apresentar a substância como o começo e não como resultado de um percurso dialético em que as determinações se constituem a partir de automovimento, a substância resulta uma identidade vazia e as determinações algo extrínseco. A substância de Spinoza não se torna sujeito.

Hegel então retoma a crítica do método matemático (que se estende ao conhecimento histórico), a qual exerce com grande eficácia no prólogo da Fenomenologia do Espírito e aplica essa crítica ao método geométrico de Spinoza. Contra esta interpretação, Macherey sustenta que para Spinoza na verdade o método é algo muito parecido ao que ele é para Hegel. Citando algumas passagens do Tratado da reforma do entendimento, Macherey resgata a concepção spinoziana do método ("ideia da ideia" que só pode existir se primeiro existe uma ideia) como um caminho e não como uma pré-condição para o conhecimento:

"... o verdadeiro método não é buscar o signo da verdade depois da aquisição das ideias senão o caminho (via) para buscar, na ordem devida, a verdade ela mesma ou as essências objetivas das coisas ou as ideias (todos estes termos significam o mesmo)" (Macherey, pág.69).

Macherey conclui que esta leitura do método segundo Spinoza coincide em parte com a ideia de Hegel de que o método não é um a priori nem um conhecimento específico senão o desdobramento dos conteúdos.

Quanto à noção de atributos, Macherey destaca sua ambiguidade, tanto como o debate contra a ideia de Hegel de atributo como uma determinação exterior a substância. Debate especialmente contra a interpretação de Hegel de que os atributos seriam somente dos: pensamentos e extensão, enquanto Spinoza destaca que o entendimento é o que percebe estes, mas que os atributos são infinitos.

Para Hegel a relação entre a substância e os atributos que Spinoza constrói seria "cronológica" (a substância é anterior aos atributos) e "hierárquica" (os atributos são determinações que implicam uma deterioração do absoluto.

Pelo contrário, para o autor, se tomarmos em toda sua significação a noção spinoziana de causa sui ("entendo por causa de si aquele cuja essência envolve a existência; dito de outro modo, aquele cuja natureza não pode conceber-se senão como existente" Ética, Definicion I, Primera Parte, Ed. Porrúa, México DF 1996, pág. 7) a substância se engendra e determina a si mesmo sendo os atributos a forma dessa determinação.

Aqui aparece algo que segundo Macherey é intolerável para Hegel. Ao apresentar em pé de igualdade o pensamento e a extensão (o que os comentadores tradicionais denominam "paralelismo metafísico" em uma interpretação que Macherey não toma ao pé da letra) como atributos da substância, os quais não apresentam uma ordem hierárquica entre eles, Spinoza destronava o pensamento do lugar que Hegel lhe atribuía em sua pesquisa do Saber Absoluto.

O terceiro aspecto, o da negação, reveste particular importância, já que torna ao ponto em que as filosofia de Spinoza e Hegel se opõem mais claramente. Em primeiro lugar, Macherey busca desmistificar a forma em que Hegel popularizou a questão da negação em Spinoza: através da frase omins determinatio est negatio (toda determinação é negação) que Spinoza pronunciou de modo tão universal , não exatamente com estas palavras.

Marcherey cita a carta 50 a Jarig Jelles, em que Spinoza fala sobre os corpos finitos e determinados e nesse contexto utiliza a expressão determinatio negatio est (determinação é negação), mas assinala que para Spinoza o termo determinação não tem somente um sentido negativo, senão também positivo (enquanto é Deus que determina as coisas a obrar).

Neste contexto, Macherey assinala que Spinoza não está novamente tão longe de Hegel ou Hegel de Spinoza, com a diferença de que enquanto Hegel transforma este duplo caráter da determinação em uma "contradição racional", Spinoza simplesmente o ignora e não se sente tentado a "superá-lo" ou "resolvê-lo" (Macherey, pá. 182/183).
Macherey então vai ao núcleo central da crítica de Hegel a Spinoza: sua substância não torna-se sujeito ou o que é o mesmo, em sua filosofia está ausente a "negação da negação" que é o tramite dialético (por utilizar uma expressão de Carlos Astrada) mediante ao qual o sujeito se constitui a partir de um largo percurso em que o que se aliena no objeto e logo volta à sua unidade a partir de seu próprio automovimento interno. Aqui Macherley volta a fazer uma crítica inteligente. Se a substância spinoziana não é um sujeito, a substância hegeliana tampouco é um sujeito, senão que é Sujeito, isto é, é um processo mediante o qual o Sujeito se torna absoluto e se liquida a si mesmo como sujeito concreto.

Macherey, pelo contrário, propõe uma "dialética da substância", uma dialética material, baseada na noção spinoziana de conatus, o esforço de cada coisa por perseverar em seu ser, seguindo uma causalidade mecânica, no lugar do movimento resultante de apresentar a identidade de uma coisa e seu contrário, de acordo com a existência de um sujeito intencional à maneira hegeliana (Macherey, págs. 211/212).
Ele mesmo pontua que o limite entre uma dialética materialista e uma idealista é uma pergunta a responder mais que uma demarcação estabelecida com clareza, já que na história da filosofia não se pode falar da dialética em geral ou de "toda dialética" (pág.260).

Mesmo que o enfoque de Macherey seja muito atrativo, ainda deixa várias questões pendentes. A principal ao meu entender é a seguinte: uma vez que realizada a releitura crítica de Hegel desde Spinoza, invertendo o "evolucionismo" imposto por Hegel na história da filosofia: onde está parado o pensamento emancipatório com uma metafísica materialista estruturada ao redor de uma causalidade mecânica, por mais que seja imanente? Quanto ganhamos e quanto perdemos depois de por Hegel em "seu lugar"?

Neste sentido, uma proximidade entre Spinoza e Hegel, pontuado por Marx em uma conhecida passagem de A Sagrada Família é que a filosofia especulativa alemã havia sido uma restauração "vitoriosa e substancial" da metafísica do Século XVII (em particular Descartes, Malebranche, Spinoza e Leibniz) contra o que havia travado o materialismo inglês e francês do Século XVIII.

Desde este ponto de vista, a posição de Macherey implica um retrocesso não cronológico e nem evolutivo, senão teórico, a respeito do novo materialismo de Marx, que se delimita da metafísica, do materialismo mecanicista e da filosofia hegeliana que transformava os sujeitos reais em "predicados de um predicado abstrato", buscando compreender os sujeito sociais concretos e suas relações através de conceitos como a alienação, a propriedade privada, a sociedade humana, a praxis, as classes, a luta de classes, o fetichismo da mercadoria, a mais-valia, as leis tendenciais e outros.

Por último, custa muito não relacionar este enfoque "anti-subjetivista" de Macherey com um clima de época que resumira muito bem Jacques Rancière alguns anos antes da publicação de Hegel ou Spinoza:

"Hoje em dia a luta contra o humanismo teórico e a filosofia do sujeito é uma luta de classes importante na filosofia? Olhe ao seu redor: nesse ponto, a Universidade francesa de 1973 está tão pacificada como a sociedade soviética de 1936. Não há em um só lugar onde não se proclame a morte do homem e a liquidação do sujeito: em nome de Marx ou de Freud, de Nietzsche ou de Heidegger, do ’processo sem sujeito’ ou da ’desconstrução da metafísica’, grandes e pequenos mandarins estão em toda parte, perseguindo ’o sujeito’ e expulsando-o da ciência, com o mesmo ardor que colocaria a Tia Betsy a espantar os burros de seu gramado em David Copperfield. A única luta entre nossos filósofos universtitários versa sobre o seguinte: com que molho comeremos "o sujeito"? Enquanto ao homem (...) Na verdade, os únicos que se atrevem a falar dele, sem mais precauções, são os trabalhadores." (La Lección de Althusser, LOM Editorial, santiago de Chile 2013, pág. 105).

Depois de tudo, não é tão fácil livrar-se do "trabalho do negativo"


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