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160 ANOS DE FREUD | Freud: avanços e contradições na visão da sexualidade

A psicanálise já tem mais de cem anos de idade, se considerarmos uma das datas mais aceitas de sua “fundação”: a publicação de “A interpretação dos sonhos”, de Sigmund Freud, em 1900. Após tantas décadas, o que ela trouxe para nós sobre o entendimento da sexualidade e dos gêneros?

domingo 8 de maio de 2016 | Edição do dia

Freud iniciou sua carreira profissional como neurologista. Dois interesses fundamentais o tiraram do âmbito da medicina tradicional e o colocaram no rumo da fundação de uma nova área de conhecimento, que ele batizou como psicanálise: o seu interesse por pacientes – predominantemente mulheres – as quais se diziam que “não tinham nada” e eram negligenciadas pela medicina, as histéricas; e o seu estudo da hipnose, que se iniciou durante seu aprendizado com Jean-Martin Charcot, na França.

Com Charcot, começou a aprender o que denominou de “continente obscurso” do psiquismo humano, o inconsciente, e a imensa importância que esse tinha; com as suas pacientes histéricas, aprofundou esse conhecimento e começou a compreender dois pontos basilares de sua teoria psíquica: a preponderância da sexualidade na vida psíquica e a vida psíquica infantil como fator decisivo da constituição mental.

Uma teoria escandalosa, um diálogo e uma rutura com a tradição médica

Não eram poucos os motivos para que a psicanálise causasse escândalo na “boa sociedade” vienense. Ao contrário do que poderia se pensar, o “falar de sexo” não foi um deles. Como bem aponta Michel Foucault em sua “História da Sexualidade”, o discurso médico do século XIX fala profusamente a respeito de sexo, tendo inclusive um campo de conhecimento, a sexologia, particularmente dedicado a essa questão. O que se trata, contudo, como nos diz o estudo de Foucault, é que é um discurso que procura controlar o sexo e as suas possibilidades por todas as vias e legitimar tal dominação dos corpos por meio do discurso científico. Daí que surgem as noções de “perversão”, “degenerescência” que por tanto tempo deram uma roupagem pseudo-científíca à homofobia, à transfobia e a todo tipo de repressão sexual. Por essa via, institui-se aquilo que era considerao uma sexualidade “normal” e o que era considerado “patólogico” (doença).

Assim, vemos que o discurso de uma suposta ciência na verdade era balizado por uma sólida tradição moral, e que o que a sexologia procurava fazer era muito mais legitimar de forma “científica” os preceitos morais da época do que entender como operava a sexualidade humana. Ligada a essa noção da sexualidade se encontravam os conceitos de hereditariedade e degenerescência, que afirmavam a transmissão de carácteres “perversos” pela linearidade familiar e entendiam as perversões como uma degeneração da espécie. Daí a proximidade da sexologia com a suposta ciência da eugenia, que estudava a pureza da raça e foi o fundamento de diversas teorias racistas. - [1]

A psicanálise a ruptura com a noção de perversão-hereditariedade-degenerescência

A criação da psicanálise por Sigmund Freud no alvorecer do século XX representou tanto uma continuidade como uma ruptura com essa tradição. Freud viu na sexualidade a origem das doenças psíquicas que encontrava em sua clínica, como a histeria e a neurose obsessiva. Mas, como aponta Foucault, “(...) na grande família das tecnologias do sexo que recua tanto na história do Ocidente cristão e entre as que empreenderam, no século XIX, a medicalização do sexo, ela [a psicanálise] foi, até os anos 1940, a única que se opôs, rigorosamente, aos efeitos políticos e institucionais do sistema perversão-hereditariedade-degenerescência.”

A ruptura poderia ser indicada por diversos aspectos, como a ideia de que não existe uma barreira entre perversão e normalidade, mas sim uma continuidade. A ideia de que o sexo “normal” serve a fins de reprodução exclusivamente é apontada como um preconceito moral, já que práticas sexuais não ligadas à reprodução, como o beijo, estão presentes na sexualidade considerada “normal” à época, enquanto outras, como a homossexualidade (chamada de “inversão” no jargão médico da época) eram consideradas perversões e degenerações. Também se rompe com a ideia de que as perversões são “degenerações”.

O avanço empreendido por Freud na crítica à moral sexual de sua época tem um ponto alto em seu texto de 1908, “Moral sexual civilizada e nervosismo moderno”. Ali, Freud argumenta que a repressão sexual exercida por uma moral que restringe o sexo ao casamento e à procriação é a fonte de doenças neuróticas. É certamente o texto em que Freud critica de maneira mais aberta a moral de sexual de sua sociedade e denúncia os males psíquicos que essa pode causar, bem como aponta aspectos sociais fundamentais que depois abandonaria, como a “dupla moral” que permite ao homem a traição e pune com o maior rigor a infidelidade sexual feminina no matrimônio.

Outro aspecto fundamental que determinou o “escândalo” das teorias freudianas foi o fato de que, desde 1905, com seus “Três ensaios sobre uma teoria da sexualidade”, no qual discute com os conceitos da sexologia, Freud aponta para a sexualidade infantil e a importância dessa para a vida psíquica, ampliando profundamente o conceito de sexualidade e vendo nos atos mais “inocentes” (para a sociedade burguesa), como a amamentação, um caráter sexual que teria consequências psíquicas posteriores. Ainda pior, Freud aponta nas crianças o que ele chamou de “perversão polimórfica”, ou seja, na ausência das repressões sexuais que são instituídas pela autoridade paterna e incorporadas psiquicamente no superego, fazendo com que a repressão seja parte da vida psíquica adulta normal, a criança está predisposta a todo tipo de prazer sexual, a todo tipo de comportamento sexual considerado “perverso”, o que inclui a homossexualidade, o sadismo, o fetichismo, etc. Abre-se assim o entendimento de que toda a sexualidade desenvolvida posteriormente pauta-se na repressão dos elementos da vida sexual infantil, sendo a heterossexualidade monogâmica apenas a “via normal” - em nossa sociedade – para esse desenvolvimento. Isso é um golpe avassalador na moral sexual burguesa.

O avanço de Freud esbarra em suas próprias limitações morais

Contudo, o avanço de Freud encontra um limite em sua própria moral. Como um pai de família, um liberal burguês e um conservador político e moral, ele acaba recuando diante de suas próprias descobertas. A partir dessa questão podemos exemplificar o que é a compreensão materialista e dialética da história. Marx, que junto de Engels foi o criador do materialismo dialético, afirma que “na produção social da sua vida, os homens entram em relações definidas que são indispensáveis e independentes da sua vontade, relações de produção que correspondem a um estágio de desenvolvimento definido das suas forças produtivas materiais. A soma total dessas relações de produção constitui a estrutura econômica da sociedade, a fundação real, sobre a qual se constrói a superestrutura jurídica e política e à qual correspondem formas definidas de consciência social. O modo de produção da vida material condiciona o processo da vida social, política e intelectual de maneira geral. Não é a consciência dos homens que determina o seu ser, mas ao contrário, seu ser social determina sua consciência.”- [2] Contudo, ainda que as condições matérias sejam determinantes em última instância, a influência das ideias também age sobre as condições materiais, estabelecendo, assim, uma relação dialética entre ambas.

No caso de Freud, essa complexa relação determinou não apenas as possibilidades de seu avanço em relação às noções de sexualidade a partir do questionamento da sexologia e das concepções de doenças psíquicas da época, mas também o seu limite dentro das condições de suas próprias posições políticas e condições materiais de vida. Por isso, o pensamento de Freud é permeado de contradições: se critica severamente a repressão sexual em 1908, depois assume a postura de que tal repressão é a base necessária de qualquer civilização e cultura, portanto, socialmente imprescindível. Esse impedimento não é uma mera “má vontade” de Freud: a sua moral era fruto de sua época e de suas condições materiais de vida; ir além implicaria em questionar seus próprios valores, seu casamento, sua estrutura familiar, suas posições políticas, enfim, toda a sua vida. Aí vemos claramente a determinação material, o modo como o “ser social determina sua consciência”, e limita o avanço de suas concepções.

O processo de subjetivação sexuada em Freud: avanços e limites

No campo do entendimento da constituição do gênero sexual, de como o sujeito adquire a noção subjetiva de sua sexualidade, a posição mais conservadora de Freud pode ser sintetizada em sua máxima que parafraseia Napoleão: “Anatomia é destino”. Por trás dessa máxima está a noção de que o sexo de nascimento da criança, ou seja, sua genitalidade, cumprirá o papel determinante no desenvolvimento de sua sexualidade. Desse entendimento se derivam também noções misóginas que são fundamentais para Freud, como o falocentrismo, o complexo de castração, a inveja do pênis, o monismo sexual etc.

Contraditoriamente, Freud cumpre um papel revolucionário ao desvincular o desenvolvimento sexual psíquico do anatômico: passa a entender “feminilidade” e “masculinidade” como características antes psíquicas do que anatômicas, e que tanto homens quanto mulheres possuiriam em maior ou menor grau ambas. O seu complexo de Édipo é a forma como entendeu esse processo de subjetivação sexuada, ou seja, de aquisição de sua feminilidade ou masculinidade, de seu posicionamento psíquico-sexual. Para ele, este processo estava profundamente vinculado não apenas à primeira infância e suas experiências, como à estrutura familiar burguesa. Isso estava absolutamente correto: o erro de Freud foi defender que esse modelo era universal e atemporal.

E aqui podemos exemplificar a diferença entre o materialismo vulgar e o materialismo dialético: Freud era materialista no sentido de que todas as suas teorias derivavam diretamente de sua experiência clínica; ou seja, era a partir da investigação do inconsciente de seus pacientes e dele próprio que ele ergueu os fundamentos de seu edifício teórico. Era um método empírico: extrair dados, generalizar e aplicar novamente na clínica. Mas esse tipo de materialismo, que vê apenas o que está diante de seu nariz e ignora a noção de história, de transformação social, foi aquilo que Marx e Engels denominaram como “materialismo vulgar”. O materialismo dialético situa as questões historicamente, vendo as relações recíprocas entre indivíduo e sociedade, entre ideias e condições materiais, entre particular e universal.

Freud combinava o materialismo vulgar, que via apenas o que estava diante de seus olhos, com o idealismo, ou seja, a noção de que as ideias têm autonomia sobre as condições materiais e as precedem, as determinam. Assim, realizou, por exemplo, em seu livro “Totem e Tabu”, um estudo sobre as sociedades ditas “primitivas”, no linguajar antropológico da época, procurando argumentar em defesa da universalidade do complexo de Édipo. Ou seja, o modelo de subjetivação sexuada que observou em seus pacientes, representantes da burguesia de Viena, ele defendeu como um modelo universal, atemporal e fundador da civilização humana.

De Freud à noção de gênero

Coube justamente ao marxismo tomar as contribuições de Freud, criticar sua estreiteza de visão e leva-las adiante. Wilhelm Reich, psicanalista e comunista, fez uma devastadora crítica da moral sexual burguesa e do patriarcado com base nas descobertas da psicanálise e procurou usar isso como uma arma de luta política. Por seus posicionamentos políticos, foi expulso da Associação Internacional Psicanalítica, posição defendida por Freud. Por seu questionamento moral e sexual, foi expulso pelo stalinismo do partido comunista. Ele introduziu a história e as classes sociais nas noções psicanalíticas, rompendo com limitações impostas pela moral de Freud e suas posições políticas. Também algumas das primeiras mulheres psicanalistas, como Melanie Klein e Josine Müller, questionaram algumas das teorias centradas no masculino, como o monismo sexual ou a ideia de que as meninas desconheciam sua vagina e apenas viam seu clitóris como um “pequeno pênis”.

Às contribuições de Reich, que foram decisivas para a crítica do conservadorismo burguês de Freud, seguiram-se diversas outras. Livros como “O anti-Édipo”, de Félix Guatari e Giles Deleuze, foram determinantemente influenciados pelas concepções de Reich. Outras obras, como o importante estudo sobre as mulheres empreendido pela filósofa francesa Simone de Beauvoir, “O Segundo Sexo”, de 1948, também foram fundamentais para criticar o patriarcado e a naturalização do papel social da mulher. A obra clássica de Engels, “A origem da família, da propriedade privada e do estado”, ainda que não abordasse o desenvolvimento psíquico da sexualidade, já questionava a imutabilidade e a naturalidade do papel da mulher. Em que pese seu evidente anacronismo para a interpretação do desenvolvimento histórico das sociedades do ponto de vista da atualidade, em que se sabe que não há um sentido “evolutivo histórico” entre matriarcado e patriarcado, tal como acreditavam tanto Freud quanto Engels.

Foi a partir dessa trilha que surgiu na psicanálise o termo “gênero” pela primeira vez, colocado pelo psicanalista americano Robert Stoller, que cumpriu um papel fundamental, mesmo que vinculado a uma visão patologizante da transexualidade ainda hoje predominante na psiquiatria e em diversos psicanalistas. A concepção de que a genitália e o gênero possuem independência, portanto, foi o fruto de um longo desenvolvimento das teorias sobre sexualidade, partindo das descobertas de Freud e passando por uma crítica materialista e dialética de suas concepções. Mas, obviamente, não é isso o determinante: a existência de uma população trans, a sua contínua e permanente luta por reconhecimento e pelo seu direito à identidade de gênero foi o fundamental para que a transexualidade se pautasse como um assunto fundamental nas teorias sexuais. Ainda hoje, contudo, não apenas na psiquiatria se vê a transgeneridade como uma doença, mas também na psicanálise há diversas correntes que patologizam qualquer tipo de identidade ou performatividade de gênero trans. Em um sentido bastante diverso do que era a discussão que Freud fazia, em sua época, sobre a homossexualidade, como discute esse artigo.

Enfim, com esse brevíssimo resumo de alguns elementos sobre a visão da sexualidade e de gênero em Freud e na psicanálise posterior é possível compreender um pouco como a psicanálise cumpriu um papel decisivo no enfrentamento da moralidade sexual burguesa, mas, contraditoriamente, também pode servir de apoio para a manutenção desta. Cabe aos analistas, psicólogos, militantes, mulheres e trans de hoje em dia tomar para si as ferramentas teóricas dessa tradição e, analisando-as criticamente e eliminando-as de seus próprios equívocos, seguir lutando para combater preconceitos e opressões e para ajudar a emancipação da sexualidade humana, o que evidentemente só poderá ser feito no bojo de uma revolução social e política que coloque por terra as instituições sociais repressoras que aprisionam nossos corpos e mentes.


[1Ver Michel Foucault, “História da sexualidade. A Vontade de saber” (volume I). Rio de Janeiro/São Paulo: Paz e Terra, 2014.

[2Ver Karl Marx, “Contribuição à crítica da economia política”





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