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França: das assembléias gerais à TV, os novos rostos da mobilização

França: das assembléias gerais à TV, os novos rostos da mobilização

Publicamos artigo do jornal francês Libération, que trata sobre algumas das principais personalidades operárias nessa greve contra a reforma da previdência de Macron.

Publicamos artigo do jornal francês Libération, que trata sobre algumas das principais personalidades operárias nessa greve contra a reforma da previdência de Macron. O original foi publicado no dia 13/1/2020, sob o título "Des AG à la télé, les nouveaux visages de la mobilisation"

Nos setores ainda mobilizados contra o projeto de reforma da previdência afirmam a quem quiser ouvir: "esta greve, ela é nossa". Após mais de um mês de greve, a incapacidade dos sindicatos de se impor ao governo fez surgir entre alguns grevistas um sentimento de autonomia e até de desconfiança em relação às centrais sindicais. De maneira semelhante aos coletes amarelos, que emergiram há um ano, os mais duros hoje afirmam pertencer à "base", como um corpo à parte de militantes, separado das organizações sindicais - mas que ainda segue suas fileiras. Um grupo exógeno nascido da mesma desconfiança em relação às instituições vigentes, expressa um ano antes nas ruas. Como foi o caso dos coletes amarelos, a reivindicação desta “base” colocou em destaque na mídia algumas figuras centrais, transmitindo as mensagens advindas das Assembleias Gerais e dos piquetes de greve. E foram os canais de notícias 24h os primeiros a fazer emergir essas novas caras, devido ao fato de que, em mais de um mês de greve, as redes BFTM TV, LCI, CNews e outras mídias deixaram o espaço aberto para os tradicionais debates nos quais os convidados discutiam ao redor de uma simples questão: “a greve pode continuar?”. Na maioria das vezes, esses programas convidam "especialistas", personalidades políticas e observadores periféricos [ouvintes, em geral sem fala ou participação preestabelecida]. Desta vez, frente à constatação dessa forte e independente "base", os programas incluíram os grevistas ao lado destes, frequentemente convidados a responder a essa mesma questão: "quanto tempo mais vai durar a greve?".

Debatedor regular

Entre essas novas caras, Anasse Kassib é um caso emblemático. A primeira vez que conhecemos esse ferroviário de 33 anos, ele estava em cima de uma cadeira de plástico em uma assembleia geral na Gare Du Nord. Era na primavera de 2018, durante a mobilização contra a reforma ferroviária. Esse pai de família não era ainda conhecido pelas mídias, mas chamava grande atenção com suas bem formuladas metáforas. Uma dentre elas ficou na memória dos militantes de sua categoria: “fazer greve dois dias a cada cinco é como fazer um regime durante dois dias e comer MC Donald’s no resto da semana". A eloquência do trabalhador ferroviário não passou despercebida pelos jornalistas. Ele foi entrevistado por uma rede de tv, passou no JT, depois se tornou um herói entre os seus. [Foi entrevistado] De novo, no dia seguinte, e no próximo, até que o [programa] Grandes Gueules [Bocudos, em tradução livre] da RMC o contatou para participar do programa. Este dia de 2018, ele decidiu ir e nos explicou: "eu reclamo insistentemente já que nossas ideias não aparecem nas mídias, não irei recusar quando tenho a oportunidade de colocá-las eu mesmo." A partir de então, Anasse Kassib se estabeleceu regularmente como debatedor cerca de três vezes por semana. Quando a mobilização da primavera de 2018 na SNFC terminou, ele endossou tanto seu papel como ferroviário quanto o de "militante marxista revolucionário". Ele administra também uma conta no twitter pela qual compartilha os melhores vídeos de suas intervenções, reunindo muitos simpatizantes/apoiadores.

Em um ano, Anasse Kassib aprimorou sua fala e soube se fazer falado/comentado. No último 29 de dezembro, ele se opôs, por exemplo, a Facile Mehak, conselheira do LREM [partido de Macron] de Paris no programa da CNews. Enquanto o debate encontrava-se inaudível e a apresentadora tentava acalmar os espíritos, a convidada lançou, irritada: "o que você faz é terrorismo verbal". Anasse decide se retirar do programa, considerando a palavra terrorismo como um insulto. Ele se explicou nas redes sociais, também para tranquilizar os grevistas que o seguem, na medida em que o moço de 30 anos sabe que sua voz é particularmente escutada. "Às vezes, as pessoas vêm me dizer ’obrigado Anasse, ainda bem que temos um cara como você’. Mas eu não quero isso, não sou uma estrela, sou um cara de 33 anos vindo da periferia e tenho a capacidade de pressionar o (secretário de Estado dos transportes, Jean-Baptiste) Djebbari ou quem for. Se as pessoas veem isso elas devem se dar conta que também podem fazê-lo."

Perfil raro

Para Linda Chekalil, motorista de ônibus da RATP, com quase 40 dias de greve, o percurso é quase idêntico. Ela relata sua repentina aparição nas mídias nas últimas semanas. "Jornalistas da TVBFM vieram filmar nosso local de trabalho em Asnières. Eu fui entrevistada por 10 segundos, depois eles me recontactaram mais tarde para refazer uma segunda tomada agora "ao vivo", explica a condutora de ônibus. Desde então, seu telefone toca quase todos os dias.

"Quando perguntei a um jornalista porque eles me ligavam o tempo todo, ele respondeu que era porque eu era uma mulher e não sindicalizada", ela diz. Um perfil raro para os jornalistas, que frequentemente a colocam como porta-voz dos grevistas, enquanto ela se considera apenas "uma simples cidadã de baixo". "Eu sou Linda, uma motorista de ônibus. Não estou preparando nada, ponho as mãos nos bolsos. Estou aqui para dizer o que tenho a dizer, não estou interpretando um personagem. Quando vou falar, estou de pé desde as 5 da manhã, estou "uniformizada" de manifestação”, continua a grevista.

Quinta-feira passada, um momento importante, ela foi convidada para um programa muito assistido: Vous avez la parole no France 2. No ar, ela questiona Jean-Michel Blanquer sem titubiar: "Por que você acha que seu projeto é a única solução? Se há um problema no sistema atual, deve haver outras maneiras de corrigir o problema. E nós queremos isso”. Ela ri de não o ter reconhecido sequer nos bastidores. "Ele apertou minha mão sem se apresentar, perguntei quem ele era porque eu não o reconheci, isso o aborreceu, acho", disse a mãe de família, rindo.

"Legitimidade do terreno"

No centro dessa "base", alguns grevistas estão tão frequentemente na televisão que até os convidados dos programas apontam esse fato, questionando a propósito de sua legitimidade. Depois de uma entrevista na LCI com Fabien Villedieu, militante da SUD rail [sindicato] na Gare de Lyon, no último dezembro, a deputada do LREM, Tarn Marie-Christine Verdier-Jouclas, fumegou ao vivo: "É sempre a mesma pessoa que fala nos programas". Em resposta, alguns se divertiram ao notar que a mesma havia sido convidada 15 vezes para o programa entre os dias 10 a 20 de dezembro. "Sou motorista do RER D, temos mais de 90% de trabalhadores em greve, minha legitimidade é a do terreno", ele rebateu. "Eu particularmente não gosto de estar na TV ao lado de pessoas ultraliberais que ganham três vezes o meu salário e que me chamam de privilegiado", se justifica.

Algo novo durante essa mobilização, os vídeos viralizados também servem como um intermédio para os grevistas frente à comunicação do governo. E também contribuem para fazer emergir fortes figuras da contestação. Cada vez que alguém fala nas estruturas de trabalho, sobretudo na RATP, todas as câmeras de celular se viram para a pessoa que fala. Depois encontramos as imagens nas redes sociais. Os números [de curtidas e compartilhamentos] crescem rapidamente, alguns discursos são retweetados milhares de vezes.

Direções tradicionais desconectadas

Depois de um mês e meio de greve, Adel Gouabsia, um condutor do RER-A disse, em sua estação: "Havíamos tido a entrada, este era o prato principal. Vamos lançar a moeda no cara ou coroa. Alguns moradores de rua vão se disputar para pegá-la. (...) Estamos definindo uma escolha de sociedade".

Nesse dia, sua intervenção foi filmada e depois compartilhada. O vídeo foi visto por mais de 260.000 vezes no Twitter, ele, o motorista, foi recebido como uma estrela nos dias seguintes. "É uma assembleia geral, não é algo supostamente a ser filmado. Saiu meu discurso sem o meu conhecimento nas redes sociais e deu o que falar. Não estou aqui para ser uma estrela, tanto melhor se motivou alguns e iluminou outros”, ele coloca em perspectiva. Não há porque se inflamar, de acordo com o delegado sindical da Unsa RATP: "grevistas que falam, há muitos, todos os dias. Desde o início, os jornalistas têm procurado cabeças personificar o movimento, mas essas não batem na porta". Ele vê nessa nova geração que encabeça [a mobilização] uma consequência da desconexão das direções tradicionais. "Quanto mais subimos nos sindicatos, mais distantes estamos da base, é também por isso que nos expressamos. Mas, às vezes, não damos verdadeiro crédito à nossa palavra”, ele analisa.

A emergência é um paradoxo constantemente renovado: ao se expor publicamente, eles correm o risco de serem deserdados pelo grupo ao qual pertencem. Na estrutura de Anasse Kazib, na Gare du Nord, alguns militantes o acusam, privadamente, de estar mais na televisão do que com os trabalhadores ferroviários, de ter sucumbido às alegrias do sucesso. Todos se localizam pela causa comum: "Não fazemos isso por glória", ele insiste. Nas fileiras, nos alegramos de ver alguns dentre eles criticarem as instituições (políticas e sindicais primeiramente), mas também fazerem o mesmo na televisão. "As pessoas se informam dessa maneira, faço isso por necessidade", defende Fabien Villedieu. Infelizmente, depois de quase um mês e meio de greve, um condutor grevista da RATP questionado sobre a questão, se lamenta, amargamente: "se uma greve fosse ganha através da BFM TV, todo mundo saberia disso".


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