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DEBATE | Fidel, Che e o socialismo em Cuba

Notas sobre o texto “O Socialismo e o Homem em Cuba” de Ernesto “Che” Guevara. Reflexões a propósito da morte de Fidel Castro.

domingo 27 de novembro de 2016 | Edição do dia

Ernesto “Che” Guevara, com a lucidez que o caracterizava, tinha destacado em seu artigo “O Socialismo e o Homem em Cuba” uma série de problemas relacionados com a “transição ao socialismo” na ilha.

Em sua “Mensagem aos povos do mundo através da Tri-Continental”, “Che” afirmava: “Por outro lado, as burguesias autóctones perderam toda sua capacidade de oposição ao imperialismo – se é que algum dia tiveram – e formam somente seu vagão traseiro. Não há mais mudanças a fazer; ou a revolução socialista ou caricatura de revolução”; neste texto se aproxima de colocar um problema nodal de toda revolução: a questão da democracia operária ou da organização das massas.

O “Socialismo e o Homem em Cuba” é muito conhecido e foi amplamente reivindicado e criticado desde ângulos opostos pelo mesmo motivo: a importância que Guevara outorgava à questão das forças morais e os fatores subjetivos na construção socialista.

Frente à morte de Fidel Castro, fato que gerou um grande impacto na América Latina e em todo mundo, o legado da revolução cubana volta a estar em debate, por isso esse trabalho de “Che” Guevara merecer ser revisitado e pensado a partir das lições de outras experiências históricas e também dos aportes da teoria marxista.

Nesse sentido, um aspecto que não é todo levado em conta mas de grande importância na reflexão de “Che” Guevara é o papel da classe trabalhadora na construção socialista e as formas de organização da revolução em geral e da transição socialista em particular. Questão que não tem uma resposta definitiva no texto, na verdade está mais colocada como um tema problemático, sem resolução, para a qual até o momento (1965) não se havia encontrado uma resposta.

“Che” Guevara assinala a importância da vanguarda revolucionária mas acentua que o principal ator de todo processo revolucionário é o que ele chama de “a massa”: “A massa participou na reforma agrária e no difícil emprenho da administração das empresas estatais; passou pela experiência heroica da Praia Girón; se forjou nas lutas contra as diferentes bandas de bandidos armados pela CIA; viveu uma das definições mais importantes dos tempos modernos na Crise de Outubro e segue trabalhando hoje na construção do socialismo”.

Entretanto, a relação entre o Governo e as massas se apresentava colocada de uma maneira unidirecional e essencialmente de cima para baixo: “…a massa realiza com entusiasmo e disciplina sem iguais as tarefas que o Governo fixa, sejam elas de índole econômica, cultural, de defesa, esportes, etc. A iniciativa parte, em geral, de Fidel ou do alto mando da revolução e é explicada ao povo que a toma como sua. Outras vezes experiências locais são tomadas pelo partido e o governo para torná-las gerais, seguindo o mesmo procedimento.”

Nesse contexto, “Che” Guevara remarcava a importância de “inter-relação dialética” entre as massas e os dirigentes da revolução, ao mesmo tempo que problematizava por um lado o vínculo entre “a vanguarda” organizada no Partido e as massas que muitas vezes eram empurradas pela vanguarda. Deste modo chegou a uma definição altamente controversa e no fundo errada: “a ditadura do proletariado” era exercida “não somente sobre a classe derrotada, mas também individualmente, sobre a classe vencedora”.

Para resolver este problema, “Che” Guevara pontuava um déficit crucial do processo revolucionário que era a questão das instituições da revolução: “Tudo isso se entranha, para seu êxito total, na necessidade de uma série de mecanismos, as instituições revolucionárias. Na imagem das multidões marchando rumo ao futuro, se encaixa o conceito de institucionalização como o de um conjunto harmônico de canais, escadas, represas, aparatos bem lubrificados que permitem essa marcha, que permitem a seleção natural dos destinados a caminhar na vanguarda e que vinculem o prêmio e a punição aos que cumprem ou atentem contra a sociedade em construção. Esta institucionalidade da Revolução ainda não conseguimos. Buscamos algo novo que permita a perfeita identificação entre o Governo e a comunidade em seu conjunto, ajustado às condições peculiares da construção do socialismo e fugindo ao máximo dos lugares comuns da democracia burguesa, transpondo-os à sociedade em formação (como as câmaras legislativas, por exemplo). Foram feitas algumas experiências dedicadas a criar paulatinamente a institucionalização da Revolução, mas sem a devida pressa. O maior freio que tivemos foi o medo que qualquer aspecto formal nos separe das massas e do indivíduo, nos fazendo perder de vista a última e mais importante ambição revolucionária que é ver o homem liberado de sua alienação.

Apesar da ausência de instituições, o que deve ser superado gradualmente, agora as massas fazem a história como o conjunto consciente de indivíduos que lutam por uma mesma causa. O homem, no socialismo, apesar de sua aparente padronização, é mais completo; apesar da falta do mecanismo perfeito para isso, sua possibilidade de se expressar se fazer sentir no aparato social é infinitamente maior.”

Com essas reflexões, "Che" Guevara estava colocando na mesa, apesar de não dizer explicitamente, um tema central do processo revolucionário cubano: a ausência de instituições de democracia diretas das massas operárias e camponesas, como foram os soviets na revolução russa e todo tipo de experiências relacionadas que ocorreram em outros processos, através de conselhos de fábrica, coordenações ou cordões industriais. A ausência de uma organização desse tipo na revolução cubana tornava muito mais difícil o que o próprio “Che”Guevara afirmava como uma necessidade: acentuar a participação das massas “em todos os mecanismos de decisão e de produção.” E, paradoxalmente, este problema apontado por Che era produto da própria política da direção cubana ao movimento operário, caracterizado pela unidade monolítica da Central de Trabalhadores de Cuba e a elaboração dos planos econômicos “por cima”.

Ao contrário, para unir os cidadãos e produtores faltava uma instituição do tipo dos sovietes (ou seja, assembleias de representantes surgidas a partir da base das fábricas e locais de trabalho que, por sua vez, se coordenassem no nível territorial regional e nacional). Este tipo de organização é o que permite que “a massa” adquira o caráter de um verdadeiro “poder constituinte”: as iniciativas não surgem de cima para baixo, para que as bases “aprovem” o já discutido pelos dirigentes mas que o processo de auto-organização democrática permita uma relação muito mais igualitária entre dirigentes e dirigidos.

Frente à consolidação de um regime totalitário na URSS no final dos anos 30, Leon Trotsky foi o principal inimigo do estalinismo e da burocratização. Trotsky foi quem sinalizou a perspectiva de luta pela democracia soviética como uma bandeira essencial, não por um problema de arquitetura formal das instituições da revolução, mas pela questão do profundo conteúdo político: a “força moral” vem de que as massas tomem em suas mãos o governo de seu próprio destino.

Portanto, o restabelecimento da organização democrática dos trabalhadores e camponeses nas URSS através de sovietes, o reconhecimento de todas as tendências políticas operárias e populares que defendem as conquistas da revolução, varrendo a casta burocrática, era uma das bandeiras dos trotskistas para defender a revolução.

Esta ideia estava longe de ser uma teoria abstrata na irrupção dos processos revolucionários no século XX. Durante os anos 50 e 60, os levantamentos nos países do Leste (Alemanha Oriental em 1953, Hungria em 1956, Checoslováquia em 1968) ainda que não houvessem correntes trotskistas com um peso significativo, tiveram como protagonistas setores operários que reivindicavam o socialismo e repudiavam as burocracias. Ancoravam-se em forma de organização de base que iam de assembleias de fábrica a até conselhos operários e que abarcavam grandes zonas urbanas.

Neste contexto, “Che” Guevara teve a grande agudeza e sensibilidade de perceber a necessidade de dar uma forma concreta ao protagonismo das massas, mas sem uma clara perspectiva programática e estratégica que pudesse organizá-la de baixo para cima, superando o verticalismo próprio do Estado cubano.
Esta questão não resolvida termina obtendo uma resposta no texto: se refugiando na defesa e perspectiva do “homem novo” empurrado e educado e, em última instância, construído pela vanguarda.

Em sua magnífica crônica Os Sovietes em ação o jornalista e agudo observador da revolução russa, John Reed, descreveu a “poli-funcionalidade” dos sovietes: como organizações da tomada consciente de decisões pelos trabalhadores, como essenciais para seguir o pulso da revolução antes e depois de tomar o poder e como escolas de aprendizagem de economia e política.

Reed descreve as instituições surgidas das entranhas do movimento de massas da seguinte maneira: “A principal função dos sovietes é a defesa e consolidação da revolução. Expressam a vontade política das massas não somente nos Congressos Pan-Russos, onde sua autoridade é quase suprema. Esta centralização existe porque os sovietes locais criam o governo central e não o governo central os sovietes locais”. Mais adiante ele acrescenta: “Os sovietes são os órgãos mais perfeitos da representação da classe trabalhadora, isso é verdade, mas são também as armas da ditadura do proletariado à qual todos os partidos anti-bolcheviques se opõem encarniçadamente.”

Não é à toa que a burocratização estalinista apontou para a liquidação dos sovietes para proteger seu poder de casta.

A ausência deste tipo de organismo não foi a única debilidade da grande Revolução Cubana (a impossibilidade do socialismo em um só país é outra), mas foi uma de suas carências centrais. Discutir e tirar conclusões sobre este problema colocado por "Che", mas não resolvido pela Revolução, é chave para preparar os próximos processos revolucionários que retomem o melhor do inestimável legado de um acontecimento chave na experiência latino-americana.




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