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DOSSIÊ: FEMINISMO E MARXISMO | Feminismos populares: resistência ou revolução (permanente)

Andrea D’Atri@andreadatri

sexta-feira 2 de junho de 2017 | Edição do dia

Filho da crise capitalista internacional que fez nascer os mais diversos fenômenos políticos, um novo movimento de mulheres percorre o mundo no último período. A recente Paralisação Internacional de Mulheres do 8 de março, que – de distintas maneiras – aconteceu em mais de 50 países, deixou visível a impotência do feminismo liberal para responder às contradições vitais que afetam às mulheres em longas décadas de neoliberalismo, com ampliação de direitos e aumento das reivindicações.

Junto a sua própria crise e das mãos das figuras políticas do alto escalão da direita mundial, como Donald Trump ou Marie Le Pen, emerge o paradoxo de um “feminismo conservador”. Do outro lado, se recriam os feminismos populares, propondo-se a darem vozes às mulheres pobres, as trabalhadoras, as negras, as imigrantes. Sob diversos princípios anticapitalistas relativamente abstratos, um novo feminismo popular se põe de pé e de declara em resistência. Desde que a explosão inusitada de recursos econômicos – possibilitada pela descoberta das técnicas da agricultura e da domesticação de animais, entre outras – introduziu uma divisão social entre uma maioria de produtores e uma minoria alimentada às custas do trabalho (excedente) dos primeiros, os seres humanos rechaçaram todas as formas de servidão e resistiram às injustiças que resultaram dessa divisão. Nunca na História foram necessárias as teorias acerca da opressão social para que a humanidade opusesse resistência a tais condições de existência. A resistência é um ato de insubordinação, mas, como diz lucidamente Daniel Bensaïd – “é em primeiro lugar, um ato de conservação, a defesa encarniçada de uma integridade ameaçada pela destruição”. [1]

As mulheres não foram exceção. Enfrentando as catástrofes naturais, econômicas e políticas que ameaçam a vida de seus filhos, sempre foram protagonistas de fabulosos processos de organização e resistência: onde há vítimas de terremotos ou inundações, vítimas de desocupação, despejos, carestia ou escassez; vítimas de ferozes regimes políticos, perseguições e injustiças, há mulheres resistindo na primeira fila. Mas não só lá. As mulheres também têm delineado os sinuosos contornos de um movimento amplo e diverso que, desde fins do século XVIII, percorre a história do capitalismo, proclamando – com distintas vozes – a resistência à opressão do próprio coletivo de gênero.

Em alguns momentos da História, essa resistência avançou em ensaiar uma saída ao estado de coisas. Entrou em ação, não se reduziu a ignorar os mandatos dominantes, mas sim inventar suas próprias respostas; não se limitou a impedir uma maior destruição, mas sim explorar saídas construtivas. Nesses momentos, as vítimas deixaram de ser objetos de compaixão para transformar-se em sujeitos de suas próprias histórias. Assim fizeram as mulheres que, no despertar da revolução burguesa, reivindicaram sua inclusão na Declaração dos Direitos Humanos do Homem e do Cidadão, que não as levava em conta, enfrentando as monarquias e a servidão feudal; assim fizeram as mulheres dos bairros populosos em Paris, empunhando as armas e combatendo nas barricadas para defender a Comuna, seu próprio governo operário que eliminava a desigualdade jurídica entre os sexos. Assim fizeram as mulheres que, nos radicalizados anos 70 – junto com lutas anti-imperialistas pela liberação nacional, processos revolucionários, enormes mobilizações operárias e estudantis, levantamentos de massas contra a opressão stalinista, crescimento dos movimentos antirracistas, antibélicos e pela libertação sexual -, se insubordinaram contra a ordem de morte e destruição do capitalismo heteropatriarcal.

Mas esse ascenso de massas internacional do qual fez parte a última onda feminista foi derrotado. A ausência de um horizonte revolucionário durante mais de três décadas de ofensiva neoliberal, abriu passagem as mais diversas teorizações sobre o triunfo de um poder absoluto que já não necessitaria essencialmente do controle do aparato do Estado para preservar a propriedade concentrada dos meios de produção e ser garantia da exploração da força de trabalho das maiorias despossuídas, porque esse poder permeia nossas vidas, modela nossos corpos e atravessa nossos discursos. É um poder que reprime e marginaliza; em guerra permanente contra a pulsão vital, se converte em biopoder, ao instaurar a norma, produz o abjeto.

Ceticismo sem estratégia

Essa concepção do poder compreende-se, relativamente, pelo desenvolvimento incomum que os mecanismos de controle social tiveram a partir da derrota desse período de radicalização – que poderíamos situar entre 1968 e 1982 – que mencionamos anteriormente. Como aponta Perry Anderson, “o poder perde qualquer determinação histórica: já não há detentores específicos de poder, nem metas específicas que servem a seu exercício”[2]. Na sua visão única do crescimento imensurável dos mecanismos de disciplinamento social, dilui a existência de uma classe minoritária que concentra em cada vez menos mãos a propriedade mundial, às custas de explorar o trabalho de cada vez mais mãos em todo o planeta, integrando continentes inteiros e milhões de novos (e diversos) “escravos e escravas” assalariados pela lógica do capital.

Atualmente, somente 8 pessoas (todos eles homens) são proprietárias de uma riqueza que equivale ao que, em outro extremo, recebem as 3,6 bilhões de pessoas mais pobres, nada menos do que a metade da população mundial. Os artefatos materiais e discursivos do biopoder não tem outro objetivo além de suportar e blindar essa desigualdade obscena que, legitimamente, cria as mais diversas manifestações de ódio dos despossuídos. Mas essas concepções do poder, nas quais tal finalidade se evapora, lhe dão o mesmo caráter de uma entidade onipresente e atemporal. Apresentado quase como uma divindade distópica e vingativa que tem a absoluta submissão da Humanidade desde sempre, é impossível sequer imaginar a possibilidade de enfrentá-lo, combatê-lo e vencê-lo, porque está em todos os lados, porque tudo ele controlo e por ele permeia. Somente esforçadas resistências, ainda que parciais, podem se opor à microfísica do poder. Nas palavras de Foucault

“...ele adere, golpeia contra os obstáculos mais sólidos; o sistema desmorona-se em outra parte, ele insiste, acredita ter ganhado e a instituição reconstrói-se mais longe, se começa novamente. É uma longa luta, repetida, aparentemente incoerente…”[3].

Como apontou Bensaïd no Elogio da política profana, a estratégia é reduzida à zero. As massas são condenadas a defender sua ração de subsistência, frente a cada novo saque causado pelos que acumulam extraordinárias riquezas e concentram o poder políticos pelo exercício do monopólio das armas. Mas jamais se permitiu a possibilidade de uma luta para arrancar esse poder e democratizar profundamente as fontes de economia e a administração coletiva do público, porque inclusive “imaginar outro sistema é ainda parte do sistema” [4].

Não há escapatória. As múltiplas resistências, plausíveis para além de suas amostras de abnegação e coragem, fazem parte de em um profundo ceticismo. De tal fatalismo só podemos concluir com a aceitação passiva e antecipada do fracasso anunciado ou, pelo contrário, com a imposição arbitrária de um voluntarismo idealista que, golpeado no nariz, se encolherá mais tarde em um derrotismo cínico.

Preparar a vitória

Mas embora a crise de subjetividade das massas ainda se encontre na coluna do “deve”, o ciclo neoliberal agoniza desde 2008, com a crise capitalista que teve seu epicentro nos Estados Unidos e Europa e que deixou como saldo o aumento descomunal da desigualdade que é fundamento de uma crescente polarização política. A ordem mundial da globalização neoliberal, comandado apenas pelos Estados Unidos nas últimas décadas, “está sendo dinamitado por dentro” [5]. Desde este ponto de vista, se pode dizer que “o triunfo de Trump confirma e aprofunda a tendência à crise orgânica que vem se manifestando nos países centrais a partir da Grande Recessão de 2008, e pode ser lido como esses “fenômenos aberrantes” dos que falava Antonio Gramsci, que surgem em situações intermediárias quando o velho não corresponde mais e ainda não estão claros os contornos do novo” [6]. Mas, longe de toda simplificação pseudomaterialista, o marxismo revolucionário sustenta – parafraseando a Lenin – que nenhum governo, nenhum regime nem nenhum sistema cai, ainda que em plena crise, se não o faça cair. E para isso, é necessário preparar-se com antecipação. Tempos extraordinários se aproximam. Deixaremos que nos encontrem – as massas exploradas e oprimidas – desprevenidas?

O ciclo neoliberal homogeneizou a diversidade das existências sob o chicote da exploração, enquanto introduziu a maior heterogeneidade nunca vista dos explorados no mesmo movimento. A fragmentação entre homens e mulheres não é a única: efetivos e contratados, nativos e imigrantes, formais e informais, inclusive assalariados e não assalariados, são apenas algumas das diferenciações hierarquizadas que se estabelecem entre os escravos modernos. A proposta populista de uma somatória de múltiplas resistências, no entanto, é utópica se não parte de compreender que os antagonismos criados pela classe dominante entre os explorados são o fundamento de sua fortaleza. Contrapor a luta das mulheres à luta da classe operária é não é nada condizente, é como reduzir, com uma estreita visão economicista, a questão da opressão de gênero à questão da exploração capitalista. A unidade não se produz jamais de maneira mecânica e objetiva, no caminho de enfrentar a exploração da qual os distintos setores são vítimas; entre outras coisas, porque essa exploração não afeta a todos por igual. Como assinalamos em outro texto,

“... imaginar hoje um movimento feminista anticapitalista obriga a reconsiderar o sujeito político: sem as mulheres assalariadas que constituem a metade da classe enormemente majoritária da sociedade, não há futuro [7].”

As alavancas fundamentais da economia e da geração de riquezas seguem estando nas mãos dessas massas trabalhadoras hoje fragmentadas pela sua cor de pele, seu gênero, sua identidade sexual e as múltiplas divisões criadas no mesmo mundo do trabalho. Paralisar os setores da produção e a circulação de mercadorias tanto como deter os serviços e as comunicações é a capacidade que, de se unificar faria tremer o poder que hoje detém uma minoria parasitária provida dos meios de produção, de armas, Estados, governos e partidos políticos para exercer seu domínio. Nesse silêncio ensurdecedor, as e os marginalizados do sistema conseguiram que sua voz ecoe como um trovão.

As mulheres assalariadas com o conjunto de sua classe devem conquistar essa hegemonia sustentando as demandas de todos os setores oprimidos, reconhecendo as desigualdades nas próprias fileiras, para dirigi-las contra a ordem capitalista, na luta pelo poder. Desde esta perspectiva é que as mulheres socialistas lutamos pela emancipação feminina. O dilema que hoje se cozinha no fogo da crise mundial é se as mulheres anticapitalistas nos limitaremos a organizar a resistência ocasional e episódica aos embates das direitas ou se vamos nos armar de um programa e uma estratégia para vencer. As que sempre foram escravas da História merecem que coloquemos nossos esforços em preparar a vitória.

Notas:

[1] Daniel Bensaïd, Résistances. Essai de taupologie générale, París, Librairie Arthème Fayard, 2001.
[2] Perry Anderson, Tras las huellas del materialismo histórico, México, Siglo XXI, 2004.
[3] Michel Foucault, Microfísica del poder, Madrid, Ediciones de La Piqueta, 1979.
[4] Idem.
[5] Claudia Cinatti, “Trump: la caída del relato neoliberal”, Revista Ideas de Izquierda 35, novembro-dezembro 2016.
[6] Idem.
[7] A. D’Atri, C. Murillo, “8 de março: Quando a terra tremeu”.

Traduzido por: Tassia Arcenio e Iaci Maria
Publicada originalmente na Revista Ideas de Izquierda, Número 37, maio 2017, na seção de Política.




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