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Feminismos em debate: na direção errada

Revistas: Lorna Finlayson

Tradução de Gabriele Almeida e Iaci Maria
Imagem de Juan Atacho

Feminismos em debate: na direção errada

Revistas: Lorna Finlayson

Lorna Finlayson é uma filósofa. Ela estudou na Faculdade de Filosofia do King College da Universidade de Cambridge (Reino Unido). Atualmente, trabalha como professora de Filosofia na Universidade de Essex. Ela é autora de dois livros: An Introduction to Feminism (Uma introdução ao feminismo) e The Political is Political: Conformity and the Illusion of Dissent in Contemporary Political Philosophy (O político é político: conformidade e a ilusão de Dissidência na Filosofia Política Contemporânea), ambos publicados em 2015.

No texto a seguir, publicado originalmente na The London Review of Books, Finlayson comenta e reflete sobre três textos que abordam questões relacionadas ao feminismo. Empowered: Popular Feminism and Popular Misogyny (Empoderados: feminismo popular e misoginia popular), de Sarah Banet-Weiser, Darkness Now Visible: Patriarchy’s Resurgence and Feminist Resistance (A escuridão agora visível: o ressurgimento do patriarcado e a resistência feminista), de Carol Gilligan e o Manifesto de um feminismo para os 99%, de Cinzia Arruzza, Tithi Bhattacharya e Nancy Fraser, servem como gatilhos para uma reflexão sobre os debates em curso: o papel do feminismo liberal no capitalismo, o lugar do trabalho reprodutivo nas estratégias de mobilização e as consignas do movimento, entre outros.

O artigo de Finlayson convida à reflexão crítica em um momento em que os direitos conquistados estão ameaçados, seja devido à austeridade neoliberal ou ao embate reacionário das dreitas. Ao contrário das visões que obstruem os debates necessários, apelando para essencialismos (dos quais sempre quisemos escapar) ou relegando demandas em nome de um "mal menor" para enfrentar a direita, ela pergunta uma vez mais sobre as práticas, os discursos e as estratégias políticas de feminismo. Em suma, por qual perspectiva vale a pena lutar.

Na direção errada

Ser feminista no século 21 pode ser confuso. De um ponto de vista, o feminismo parece ter alcançado seu objetivo. No final do século passado, as mulheres em muitos países conseguiram o direito ao voto, à propriedade, ao ensino superior e de ingressar em profissões antes reservadas aos homens. No Reino Unido, foram promulgadas leis que promovem a igualdade salarial e proíbem a discriminação por gênero ou estado civil em 1970 e 1975, respectivamente. É claro que, o direito formal e a igualdade podem coexistir - e de fato coexistem - com a desigualdade e a falta de liberdade na vida real. Mas a maioria das análises sugere que a diferença salarial mundial diminuiu gradualmente até a parte final do século XX e continuou caindo; enquanto isso, a representação das mulheres em terrenos tradicionalmente masculinos tem crescido fortemente. Nos últimos anos, o feminismo focado nessa "tarefa incompleta" ganhou um certo grau de aceitação convencional. Tornou-se uma norma para partidos políticos, corporações e departamentos acadêmicos se comprometerem a melhorar a proporção de mulheres em posições de "liderança". Como aponta Sarah Banet-Weiser, a retórica do "empoderamento" feminino é agora uma ferramenta de marketing padrão. O feminismo não apenas adquiriu a aprovação do establishment, como também conseguiu se tornar moda. Como diz Banet-Weiser, "vivemos um momento na América do Norte e na Europa em que o feminismo se tornou popular, de forma bastante incrível".

Já o período após o final da "segunda onda" feminista - quase desde o início dos anos 80 - foi um período em que as coisas pioraram de muitas maneiras para a maioria das mulheres. Nos países ricos do norte global, as mulheres foram desproporcionalmente afetadas pelo desmantelamento e a privatização de serviços públicos, especialmente aqueles relacionados a cuidados infantis, de pessoas com deficiência, doentes e idosos, áreas nas quais as mulheres majoritariamente mais trabalham, sendo remunerado ou não. As mulheres do sul global, além dos problemas econômicos, precisam enfrentar os efeitos das mudanças climáticas e dos conflitos endêmicos (incluindo uma série interminável de guerras de intervenção ocidentais). Assim como a austeridade, os maiores custos dos desastres ecológicos e das guerras modernas recaem sobre as mulheres e crianças.

O confuso não é apenas que o movimento feminista tenha atingido uma aparente maturidade e sucesso justamente quando as condições de vida de muitas mulheres são desesperadoras e em constante deterioração, mas também que deveria ser necessário - embora curiosamente difícil - apresentar argumentos sobre a relevância dessas condições para o feminismo. A austeridade, a guerra e as mudanças climáticas não foram preocupações importantes nas campanhas feministas mais visíveis que, no entanto, se concentraram em um pequeno número de questões: aumentar a representação das mulheres em vários campos ou promover mudanças legais, políticas e culturais em áreas como o sexo, a sexualidade e o corpo - a lei contra o up-skirting é um exemplo recente (em inglês "levantar a saia", é uma forma de assédio na qual essa roupa é levantada sem o consentimento da mulher para ver sua calcinha [N. de T. para o espanhol]).

Aqueles que defendem essas prioridades tendem a fazê-lo com base na integridade estratégica e conceitual. Nem tudo o que afeta a vida das mulheres pode ser um problema feminista, de acordo com essa posição, a menos que o "problema feminista" seja definido de uma maneira suficientemente ampla para ser útil. Inclusive, listar as coisas que afetam a vida das mulheres de maneira desproporcional pode incluir muitas coisas, dada a tendência daqueles que pertencem às mais baixas hierarquias sociais a sofrer mais todas as conseqüências, sejam de fome, pragas ou recessão econômica . Existem todos os tipos de problemas no mundo, e as feministas devem concentrar suas energias. Não fazer isso, a partir desse ponto de vista, seria despir o feminismo do que o caracteriza e, ao mesmo tempo, torná-lo desnecessariamente divisionista. Em vez disso, devemos separar o objetivo da igualdade de gênero de outras questões de justiça social. Exigir igualdade nesses termos significa não dizer nada sobre o tipo de mundo ou sociedade que gostaríamos - exceto que mulheres e homens devem ser iguais. Isso tem a vantagem da simplificação. Também cumpre a promessa de um feminismo que transcende as oposições políticas tradicionais.

Esse modo de pensar está tão arraigado que parece senso comum. Mas uma vez que consideramos o que ele exclui e o que poderia promover a igualdade de gênero na prática, a aparência de simplicidade evapora. "Igualdade" é um conceito quase infinitamente maleável, mas é difícil defender uma interpretação dela que faz com que um tema como a austeridade seja irrelevante. Como a austeridade reduziu a renda das mulheres substancialmente mais do que a dos homens, pode-se dizer que constitui um tratamento desigual ou discriminatório. Ela aumentou a insegurança financeira das mulheres e, portanto, sua dependência dos homens. Tornou impossível para muitas mulheres combinar responsabilidades de cuidados com estudo ou trabalho. A redução no financiamento para abrigos de mulheres deixou muitas delas presas em relacionamentos com parceiros violentos e abusivos. Levou a um aumento do “sexo para sobreviver” - mulheres que se prostituem para pagar aluguel ou alimentar a si mesma e suas famílias. A austeridade, em outras palavras, causou danos em áreas onde as feministas dizem que concentram mais sua atenção.

Onde as feministas expressam preocupação com os efeitos gerados da austeridade, muitas vezes tendem a assimilar que se trata de um problema de sub-representação. Ao discutir um relatório de 2015, realizado por um grupo de instituições de caridade para mulheres chamado “A Fair Deal for Women” (Um acordo justo para as mulheres), a porta-voz Florence Burton observou: “Talvez a representação seja dolorosamente escassa nas posições de alto nível em nossa sociedade, o que faz com que as mulheres sejam as que carregam a austeridade”. Sonia Adesara, médica e embaixadora da organização 50:50 Parliament (Parlamento 50:50), disse que uma melhor representação das mulheres é fundamental para responder ao impacto da austeridade em sua saúde: “O que o 50:50 acredita é que se queremos priorizar a vida e as experiências das mulheres, precisamos... daquelas que estão em posição de fazer com que o poder seja realmente representativo da diversidade deste país”. Dessa maneira, a discussão retorna a um terreno conhecido.

A suposição subjacente a esse argumento - de que as mulheres no poder adotariam medidas que atendem aos interesses das mulheres - raramente é explícita. Mas a esta altura da história, dificilmente se pode dizer que não foi posta à prova. O período recente, em que a representação das mulheres aumentou em muitas áreas - incluindo no Parlamento - também foi dominado pelas políticas de austeridade e neoliberalismo. E, pelo menos na Grã-Bretanha, o argumento de que as líderes políticas defenderão os interesses de suas companheiras de gênero já encontrou dois contra-exemplos bastante poderosos em Margaret Thatcher e Theresa May. Está longe de ser óbvio por que devemos esperar que as mulheres no poder levem adiante uma política diferente ou mais feminista. As feministas têm sido céticas há tempos, com boas razões, em relação às abordagens essencialistas sobre as mulheres, que tradicionalmente tem servido para legitimar ou ocultar nossa submissão. A ideia de que as mulheres são intrinsecamente mais pacíficas ou empáticas não é substancialmente diferente dos estereótipos sexistas que conhecemos.

Sugerir que a experiência das mulheres, em vez de sua natureza, lhes oferece uma visão superior sobre - e simpatia com - o projeto antipatriarcal faz um pouco mais de sentido. Nossas visões sociais diferem significativamente de acordo não apenas com o gênero, mas, crucialmente, com a classe. As pessoas que ocupam posições de poder político e econômico que pretendem representar as mulheres pertencem, por definição, à classe de mulheres para quem a austeridade não é um determinante importante de suas condições e possibilidades de vida. Iniciativas para o avanço das mulheres na política ou nos negócios podem fazer a diferença para as mulheres dessa classe - mas para quase ninguém mais. Não deveria ser uma surpresa, então, que as porta-vozes de grupos feministas frequentemente vejam tudo através do prisma de uma política de representação; e da mesma forma, não deveria surpreender que as poucas promovidas ou elevadas por essas políticas frequentemente causem tanto dano e fazem tão pouco para ajudar as mulheres em geral.

Apesar de seu visível sucesso, a versão atualmente dominante do feminismo é, aos olhos da maioria dos apoiadores, frágil e está em perigo. O avanço na representação e a diferença salarial foram lentos e podem começar a estagnar. No caso da remuneração, é provável que seja uma conseqüência de uma tendência social e política mais ampla à qual as feministas parecem ter prestado pouca atenção. Para citar apenas um exemplo, em 2017 foi aprovada uma lei que exige que alguns empregadores publiquem informações sobre a remuneração relativa de mulheres e homens em suas organizações. Uma das primeiras descobertas foi que vários grandes institutos e cadeias acadêmicas - o legado do impulso dos governos do New Labour e dos conservadores de abrir o sistema público de educação à “competição de mercado” - estavam entre os maiores responsáveis pela desigualdade de gênero. Isso não se devia a um desequilíbrio no nível gerencial, onde os salários são geralmente seis dígitos. A disparidade refletia que as mulheres estavam sobre-representadas nos escalões inferiores, onde a remuneração caiu em termos reais por muitos anos.

Há também uma reação contra algumas das mudanças legislativas e culturais que essa forma de feminismo ajudou a provocar. Donald Trump a levou ao primeiro plano da política estadunidense, personificando-a de uma maneira particularmente belicosa - semelhante ao que Jair Bolsonaro fez no Brasil. Este ano, o partido Vox, anti-feminista e anti-imigrante, conquistou importantes vitórias no Estado Espanhol e prometeu revogar leis contra a violência machista, que consideram tendenciosa contra os homens. Partidos similares no Reino Unido estavam ocupados demais com sentimentos xenófobos para se incomodar com outras políticas reacionárias, mas a visão anti-aborto legal de figuras proeminentes entre os Tory (conservadores) pró Brexit, como Dominic Raab e Jacob Rees-Mogg, tal como as especulações que o então candidato ao Parlamento Europeu do UKIP (ultra-direita) Carl Benjamin fez nas redes sociais, sobre se ele estaria disposto a violar a deputada trabalhista Jess Phillips, mostram que também há potencial neste país.

No mundo, para além da política formal, as universidades recentemente privatizadas da Grã Bretanha estão cada vez mais dispostas a promover figuras controvérsias e a apoiar material para gerar clicks na internet, fazendo com que passem por pesquisas. Ano passado, a Universidade de Essex contratou Gijsbert Stoet, um psicólogo que acredita que a “biologia” explica os números baixos de mulheres que trabalham com matemática e física e que uma “inclinação relacionada aos temas femininos” esconde a verdade, que os homens são o gênero com mais desvantagens sociais.

Em março, Cambridge ofereceu uma parceria de pesquisa a Jordan Peterson na sua faculdade de Divinity (pela pressão, tiveram que tirar a oferta). As visões de figuras como Stoet e Peterson encontram uma audiência entusiasta considerável entre ativistas pelos Direitos dos Homens (Men’s Rights Activists, MRA na sigla em inglês), que defendem fortemente a noção de um vitimismo masculino. Banet-Weiser analisa o crescimento, especialmente na internet, da “misoginia popular”: os ativistas do MRA manifestam um reflexo da narrativa feminista popular, que apresenta o empoderamento pessoal como a solução para o prejuízo histórico, com uma antítese que insiste que os homens são as verdadeiras vítimas e recomenda “construção de confiança” e “técnicas de sedução” manipuladoras ou abusivas como solução.

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Muitas pessoas vêem esses fenômenos como parte de uma nova reação contra o feminismo relacionada com o populismo, uma força misteriosa e poderosa cujo surgimento repentino colocou em risco o establishment político, ao qual o feminismo lutou tanto pra se unir. O termo “populismo” não se refere a um objeto claro ou unificado. Sua principal função é insinuar uma equivalência ou continuidade entre os desafios da esquerda e da direita para o status quo, identificando supostas características comuns – como o status de “outsider”, a popularidade na classe trabalhadora ou a divisão entre a elite e “o povo”. Assim, ele se junta a teóricos da conspiração antissemita com socialistas e inclusive socialdemocratas, que também acreditam – e é razoável que acreditem, depois de tudo – que uma pequena elite acumulasse as riquezas e o poder. Nessa forma de pensar, a questão de quem deveria estar no poder – judeus, feministas ou capitalistas – é algo secundário.

Apresentar a ameaça ao feminismo como consequência da emergência do populismo permite evitar a atenção crítica à forma hegemônica do feminismo e a política a qual ela se submete. Isso é exemplificado por Carol Gilligan e David Richards em Darkness Now Visible (A escuridão agora visível), quando eles percebem a ascensão de Trump “aparentemente do nada”. Eles apresentam um complexo relato psicológico, baseado no trabalho anterior de Gilligan sobre o raciocínio moral de meninos e meninas, sobre as maneiras pelas quais a sociedade patriarcal distorce o desenvolvimento e “obscurece a inteligência moral” das pessoas de ambos os gêneros. Ainda assim, uma visão puramente psicológica é insuficiente para explicar fenômenos historicamente específicos. Com uma aparente consciência desse aspecto, discutem a fase imediatamente anterior da política estadunidense, descrevendo Obama como “um homem muito gentil”, “sábio a frente de sua idade”, casado (como apontam em várias ocasiões) com “uma mulher que é claramente sua igual” (algo parecido poderia ser dito de Trump). Obama, sustentam, personificava um modelo de homem que desafia a norma patriarcal. Isso, agravado pela perspectiva de que uma mulher, Hillary Clinton, caso se tornasse presidente, seria uma ameaça intolerável para a ordem patriarcal.

O que falta nesse cenário é a possibilidade de que tanto homens como mulheres votassem em Trump, não simplesmente por seu investimento em um patriarcado que vem sendo ameaçado, mas também associavam essa ameaça a uma ordem social e econômica que lhes nega os meios para viver de forma satisfatória. Homens brancos enojados ou amedrontados são hostis com qualquer pessoa que possam – mulheres, imigrantes e estrangeiros – numa tentativa de recuperar algo do sentido de superioridade. Mulheres brancas enojadas e amedrontadas, muitas das que não estão interessadas por um feminismo preocupado pela “representação” em uma classe política ou socioeconômica inalcançável, fazem o mesmo: a maioria das mulheres brancas votaram em Trump.

Também está ausente no livro de Gilligan e Richards qualquer crítica a Clinton ou à ordem política que representa. Tudo o que podem dizer é que a eleição foi roubada. Eles encontram tempo para repreender as apoiadoras e apoiadores de Bernie Sanders. Suas apoiadoras – as que não votam e aquelas que “desperdiçaram seu voto sem sentido” – são identificadas, junto com as eleitoras de Trump, como as vítimas de uma campanha que “utilizou o gênero para intimidar aos homens sensíveis à perda de status e empurraram as mulheres que lhes preocupam a perceber o feminismo como ameaça”. Aqui, Gilligan e Richards se juntaram às feministas que se alinharam para humilhar as mulheres que ousaram criticar Clinton ou favorecer um candidato à sua esquerda. Gloria Steinem (jornalista feminista) sugeriu que as eleitoras de Sanders só participavam “pelos garotos”; a ex-secretária de Estado Madeleine Albright ameaçou com “um lugar especial no inferno” para as infiéis.

O progresso genuíno pode causar uma reação negativa. Mas não é a leitura mais esclarecedora sobre o que aconteceu nos Estados Unidos em 2016 - ou na Grã-Bretanha. Essa leitura também é desconfortavelmente próxima das posições que dizem que os sentimentos anti-imigrantes são o resultado de uma política de imigração excessivamente tolerante e inclusiva. Hillary Clinton argumentou recentemente que "a Europa deve controlar a imigração porque esse é o pavio que acende a chama" do populismo de direita. Um ou dois passos à frente, encontramos Tony Blair explicando que, se realmente queremos frear a direita, os imigrantes devem ser forçados a "se integrar". Essas narrativas colocam as coisas de cabeça para baixo: elas assumem que o racismo contra as e os imigrantes é causado pelo multiculturalismo excessivo, e não por causa de uma continuação do racismo que já é endêmico em uma sociedade que também não serve aos interesses da maioria de sua população. O mesmo vale para o feminismo. Trump não aconteceu porque o feminismo foi longe demais, mas porque, de alguma forma, ele não fez o suficiente ou avançou na direção errada. Sua ascensão não teria sido menos provável se 50% dos CEOs fossem mulheres. Mas essa não é a única maneira de pensar sobre o avanço feminista. Em vez de aceitar as estruturas socioeconômicas atuais como fixas e exigir mais representação para as mulheres no topo, é possível perguntar que tipo de mudança social seria necessária para empoderar as mulheres em geral, a maioria das quais - junto com a maioria dos homens - estão presas em algum lugar perto do mais baixo.

"Um feminismo anticapitalista tornou-se concebível hoje", dizem Cinzia Arruzza, Tithi Bhattacharya e Nancy Fraser em Feminismo para os 99%, "em parte porque a credibilidade das elites políticas entrou em colapso a nível mundial". Elas têm razão. Mas a vasta hegemonia de uma versão do feminismo que pertence à liga política desacreditada tornou mais difícil articular alternativas. Com muita frequência, um encantamento ritual representa as tentativas sérias de alcançá-lo: o feminismo deve ser interseccional, internacional, anticapitalista, não discriminar pessoas com deficiência e assim por diante. Aumentar as listas e os acrônimos - LGBTQ+, WNBPoC (siglas em inglês para gays, lésbicas, trans, bissexuais, intersex, queer e mais e pessoas negras, respectivamente) garantem a inclusão de vários grupos de pessoas oprimidas, como se isso fosse suficiente para evitar a cumplicidade com tudo o que as feministas não deveriam ser cúmplices.

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Arruzza, Bhattacharya e Fraser às vezes caem nessa armadilha. Outras vezes, elas chegam a uma ideia desenvolvida pelas feministas marxistas na década de 1970, de que o capitalismo depende do trabalho "reprodutivo" não remunerado das mulheres: toda a atividade que contribui para manter a capacidade e a disponibilidade das pessoas que trabalham (geralmente homens) para sair todos os dias e gerar lucros para o capital. Esse trabalho geralmente não é visto como "trabalho", mas inclui uma longa lista de tarefas tradicionais e ainda realizadas de forma desproporcional por mulheres, como limpar, cozinhar, lavar, criar filhos e prestar vários tipos de cuidados. Segundo as autoras, que estão entre as propulsoras das greves internacionais de mulheres que se realizam anualmente no Dia Internacional da Mulher desde 2017, o abandono estratégico das mulheres do trabalho reprodutivo e produtivo tem a capacidade de prejudicar o patriarcado e o capitalismo em suas raízes de uma maneira que o sindicalismo tradicional não pode. Ao "abandonar não apenas o trabalho assalariado, mas também o trabalho de reprodução social não remunerado", as mulheres em greve “revelaram o papel indispensável deste último na sociedade”.

É menos claro que as greves de mulheres tenham o potencial de fazer mais do que isso. Afinal, o feriado do Dia das Mães - o dia em que “comemoramos tudo o que as mães fazem por nós”, de acordo com nossos líderes supremos de publicidade - também revela a importância do trabalho reprodutivo das mulheres. Como tentativas de abandonar a força de trabalho, essas greves são severamente limitadas em comparação às greves organizadas no local de trabalho. O abandono do trabalho remunerado atinge o capitalista com a perda permanente de lucros. O abandono do trabalho reprodutivo não remunerado é menos direto. Se o trabalho assume a forma de cuidar de outras pessoas vulneráveis, como crianças ou idosos, o abandono pode não ser uma opção aceitável. Caso o trabalho não seja uma questão de vida ou morte, como lavar roupas ou aspirar o chão, a mulher fará isso mais tarde ou outra pessoa fará. Ou ninguém vai fazer e a casa vai ficar um pouco mais bagunçada. Na melhor das hipóteses, um marido ou namorado pode sentir vergonha de fazer algo que normalmente uma mulher faz. O capitalista não sofre, nem mesmo percebe.

A ideia central – que o trabalho das mulheres é trabalho, e que o capitalismo lucra com ele, ainda que seja de forma indireta e invisível – é importante, mas nunca tive certeza do que se supõe que façamos com isso. De fato, suas propulsoras originais levaram a ideia a diferentes direções: algumas, como Silvia Federici e Selma James, fundaram o movimento pelo Salário pelo Trabalho Doméstico; outras como Angela Davis, buscaram a abolição da “escravidão” doméstica e sua substituição por serviços socializados. Para muitos, o "trabalho reprodutivo" é uma resposta suficiente à questão de por que o feminismo deve ser anticapitalista: uma vez que o capitalismo explora o trabalho não remunerado das mulheres, é incompatível com a igualdade de gênero; se elas querem se livrar do patriarcado, elas têm que se livrar do capitalismo. Mas dizer que o capitalismo se beneficia da subordinação das mulheres não é exatamente o mesmo que argumentar que o capitalismo depende da subordinação das mulheres para sua existência.

Como Davis observou em um ensaio publicado em 1977, escrito enquanto estava na prisão, o surgimento do capitalismo criou uma nova forma doméstica de subordinação das mulheres. O fato de estarem subordinadas dessa maneira não foi um acidente, mas uma função de uma história anterior, pré-capitalista, do trabalho separado por gênero, em que as mulheres, enquanto contribuíam de maneira essencial para a produção social, estavam “socialmente presas à sua papel reprodutivo” nas tarefas específicas que executavam. Davis desconfia de explicações rigidamente deterministas das relações de gênero. No entanto, vai além da observação de que o capitalismo herda e explora a divisão sexual do trabalho de uma maneira que perpetua o patriarcado, e argumenta que as contradições inerentes ao capitalismo geram e sustentam sistematicamente a subordinação das mulheres. O capitalismo, embora em princípio seja indiferente ao gênero (trata os seres humanos igualmente, especialmente como "força de trabalho abstrata"), depende da família hierárquica, na qual o trabalhador pode impor sua autoridade, para "a manutenção do trabalhador ou da trabalhadora como indivíduos”; a família serve para atender às "necessidades incontroláveis dos seres humanos que trabalham", que o modo de produção capitalista negligencia e nega.

Embora essa visão seja útil como explicação de por que o patriarcado é tão persistente no capitalismo, no entanto, poderiam argumentar que não é suficiente para demonstrar que o capitalismo envolve necessariamente o patriarcado. Certamente implica exploração de classe, e é possível que sempre sejam necessárias formas adicionais de opressão e divisões para tornar sustentáveis as privações que o capitalismo impõe aos seres humanos. Mas isso não significa que é impossível o desenvolvimento de uma forma de capitalismo que explore ambos (ou todos) os gêneros de forma igual e, portanto, que seja impossível para o capitalismo sobreviver ao fim do patriarcado. O salário para o trabalho doméstico - mesmo que esteja longe das intenções das suas propulsoras originais - poderia desempenhar um papel nesse cenário. A pergunta importante não é se é possível que exista um capitalismo sem discriminação de gênero, mas sim se essa seria uma igualdade pela qual vale a pena lutar.

***

Ainda é difícil relacionar o feminismo com outras formas de crítica e resistência sociais de tal maneira que não pareça forçado ou reducionista. Até a afirmação “a austeridade é um tema feminista” pode parecer uma crítica pré-existente. Quem aceita esse slogan sempre considera que a austeridade é ruim para todas as pessoas, especialmente as mulheres. Continuaríamos a nos opor à austeridade, mesmo que fosse neutra em termos de gênero. Há aqui um eco fraco do tipo de esquerdismo criticado pelas feministas da segunda onda: aquele que prometia que a libertação das mulheres chegaria no seu devido tempo como um subproduto do socialismo, e que colocava as demandas feministas em um lugar redundante ou secundário - questões que poderiam esperar até depois da revolução. Se tratando da derrubada do capitalismo ou do objetivo mais modesto de acabar com a austeridade, às vezes pode parecer que o feminismo foi desprezado a um papel auxiliar, o que agrega nada mais que algo de motivação.

Em contraste, um feminismo que permanece fora de outras formas de crítica política pode se apresentar como feminismo em seu estado puro e não diluído. Mas o feminismo se trata da oposição ao patriarcado, e o patriarcado sempre assume uma forma social e historicamente específica. Em nosso contexto atual, não está concentrado exclusivamente na pessoa de Donald Trump; está nas estruturas que compõem nossas sociedades, que oprimem os homens e, principalmente, as mulheres. Por esse motivo, nosso feminismo também deve se espalhar por todo o resto de nossa política - e não manter separado - se procurarmos lutar por algo mais do que uma pequena minoria de mulheres. Sua tarefa é olhar com olhos feministas – sensíveis às manifestações de mudanças da subordinação das mulheres aos homens – um mundo o qual não apenas as feministas têm motivos para mudar.

*Traduzido a partir da versão em espanhol, disponível em "Feminismos en debate: en la dirección equivocada"


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