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Evergrande: a difícil passagem do “crescimento fictício” para o “crescimento genuíno” na China

Juan Chingo

Tradução: Alexandre Miguez.

Evergrande: a difícil passagem do “crescimento fictício” para o “crescimento genuíno” na China

Juan Chingo

O gigante imobiliário exemplifica a histórica bolha de crédito da China. Seu provável default e as preocupações que gera mostram as dificuldades de Pequim em caminhar para um novo modelo de crescimento mais equilibrado e sustentável.

A burocracia de Pequim está em uma posição difícil sobre o que fazer com a gigante imobiliária chinesa – a mais endividada do mundo – cujo lento colapso paralisou os mercados. Seu passivo no balanço equivale a quase 2% do PIB anual da China e suas obrigações fora do balanço somam mais 1%. A Evergrande deve mais de US$ 300 bilhões a bancos e instituições financeiras não bancárias, detentores de títulos nacionais e internacionais, fornecedores e compradores de apartamentos. Tem empréstimos bancários no valor de US$ 90 bilhões, incluindo os do Banco Agrícola da China, China Minsheng Banking Corp e China CITIC Bank Corp (segundo informes, há 128 bancos expostos). Milhares de fornecedores estão endividados no valor de 100 bilhões de dólares. A reestruturação da dívida da Evergrande é inevitável, até mesmo um calote é muito provável.

A Evergrande é a mais endividada de um setor altamente alavancado [1] de imobiliárias chinesas. Possui mais de 1.300 projetos em mais de 280 cidades. Emprega 200 mil pessoas e, indiretamente, ajuda a manter mais de 3,8 milhões de empregos por ano. Mas seus interesses se estendem a outros domínios além dos imóveis, como aponta Michelle Toh:

Além do negócio habitacional, o grupo tem investido em veículos elétricos, esportes e parques temáticos. Em 2010, a empresa comprou um time de futebol, que agora é conhecido como Guangzhou Evergrande. Desde então, esse time construiu o que se acredita ser a maior escola de futebol do mundo, custando à Evergrande US$ 185 milhões. O Guangzhou Evergrande continua a alcançar novos recordes: atualmente, está trabalhando na criação do maior estádio de futebol do mundo, assumindo que a construção seja concluída no próximo ano, como esperado. O recinto de US$ 1,7 bilhão tem a forma de uma flor de lótus gigante e será capaz de acomodar 100.000 espectadores. A Evergrande também atende turistas através de sua divisão de parques temáticos, a Evergrande Fairyland. Seu carro chefe é um grande projeto chamado Ocean Flower Island em Hainan, a província tropical da China comumente conhecida como o “Havaí Chinês”. O projeto inclui uma ilha artificial com shopping centers, museus e parques de diversões. De acordo com o último relatório anual do grupo, no início deste ano começou a receber clientes em uma base experimental, com planos de abrir totalmente até o final de 2021.

É também digno de nota que seu fundador e presidente Xu Jiayin foi reconhecido em 2018 pelo Partido Comunista Chinês como um dos 100 empresários privados mais proeminentes no 40º aniversário da política de “reforma e abertura”. Ao mesmo tempo, na medida em que ganhava fama no mundo dos negócios, Xu foi convidado a participar da Conferência Consultiva Política do Povo Chinês, um órgão consultivo de alto nível, voltando-se para a política.

Mas para entender as consequências do desastre da Evergrande para o futuro da economia chinesa, temos que ir além deste empreendimento, por maior que ele seja.

Um país superendividado

A Evergrande exemplifica a histórica bolha de crédito da China. Pegou emprestado e gastou de mãos abertas, no epicentro de uma extraordinária bolha de inflação de ativos, especulação e investimento imprudente financiado pelo endividamento. Como explica o economista Michael Pettis:

A relação oficial entre a dívida e o PIB da China aumentou quase 45% nos últimos cinco anos, uma das maiores altas da história dos países em desenvolvimento. O setor imobiliário é famoso por seu vício em endividamento. Esse vício tem se manifestado não só no endividamento com bancos e mercados de títulos, mas de outras formas. Construtoras regularmente pré-vendiam apartamentos com muitos meses ou até anos de antecedência, para os quais receberam o preço total ou pelo menos um depósito considerável. Pagavam empreiteiros e fornecedores com papel comercial e contas a receber em vez de dinheiro. Seus braços de financiamento chegaram ao ponto de vender produtos de crédito conhecidos como produtos de gestão de riqueza para investidores de varejo, principalmente, ao que parece, funcionários de empresas de empréstimos, seus bancos e seus fornecedores. Todo esse endividamento permitiu que o setor imobiliário se tornasse um dos principais impulsionadores da atividade econômica da China, representando 25% do PIB do país (muito mais do que é habitual em outros países). Mas essa corrida de empréstimos também ajudou a alimentar uma grande bolha imobiliária em um país onde os preços das casas são várias vezes mais altos, em relação à renda das famílias, do que os dos Estados Unidos ou de outras grandes economias. Pior, a bolha imobiliária deu origem a um grande número de casas e apartamentos vazios – entre um quinto e um quarto do estoque total de moradias, especialmente nas cidades mais procuradas – de propriedade de compradores especulativos que não têm interesse em se mudar ou alugar. Casas vazias não criam nenhum valor econômico, mesmo que tenham um custo econômico significativo.

Mas níveis excessivamente altos de dívida não são um privilégio das empreiteiras imobiliárias. Corroem todo o corpo da economia chinesa, afetando também empresas estatais, governos locais e até mesmo famílias. O drama da Evergrande e as dificuldades para sua solução devem ser vistos neste contexto de uma superacumulação de capital e superendividamento, ao qual a burocracia vem tentando colocar limites administrativamente, há alguns anos.

Uma transição traumática para setores de criação de valor

Essa superacumulação de capital e esse excesso de endividamento deram origem a enormes investimentos improdutivos. Um pouco antes da crise global de 2008/9, mas especialmente desde então, a dívida chinesa começou a subir mais rápido que o PIB, gerando uma diferença cada vez mais significativa entre os custos de serviços de dívida que estavam acelerando enquanto a capacidade de serviço da dívida desacelerava, uma amostra de investimento improdutivo sistemático, em grande escala.

Diante dessa realidade que poderia dar origem a uma crise de dívida fenomenal ou aos limites de um modelo de acumulação viciado em crescimento via dívida, a burocracia de Pequim tentou impor novas regras financeiras para tornar os credores chineses mais relutantes em financiar projetos de investimento não produtivos [2]. Esses projetos geram o que o líder chinês Xi Jinping, em um grande ensaio recente para Qiushi (principal jornal teórico oficial do Partido Comunista Chinês) chamou de “crescimento fictício”, em contraste com o “crescimento genuíno” que reivindica [3]. No entanto, esse “crescimento genuíno” para usar a terminologia de Xi, baseada no consumo – impulsionado pelo aumento da renda das famílias em vez do aumento da dívida das famílias – nas exportações e no investimento empresarial, chocam-se com metas ambiciosas de crescimento projetadas pela burocracia, que no final de 2020 prometeu dobrar o PIB até 2035. A burocracia busca a quadratura do círculo: quer evitar as terríveis consequências do superendividamento sem causar uma queda acentuada do crescimento por medo de suas consequências sociais. A menos que a China descubra um motor totalmente novo de crescimento econômico que compense o enorme superávit de crescimento gerado pela dívida agora destinada a investimentos não produtivos, não há solução não traumática para esta questão. Especialmente porque a burocracia de Pequim, apesar de seu novo discurso sobre “prosperidade em comum”, recusa-se a impulsionar o consumo através de uma redistribuição maciça de renda em favor das famílias comuns. Embora se fale há anos em “reequilíbrio”, o governo chinês nunca teve como objetivo aumentar a participação do consumo no PIB, o que mudaria fundamentalmente as bases do modelo chinês baseado na superexploração da força de trabalho. Uma mudança radical na distribuição da renda nacional só pode ser imposta com uma luta desde baixo, daí o medo da burocracia de qualquer ação independente das massas e daí seus discursos demagógicos que buscam desviar a raiva existente contra os ricos, os ritmos superintensivos do trabalho e a forte desigualdade social para mudanças cosméticas, dentro do mesmo modelo econômico.

O risco de perda de confiança

À medida que o grupo imobiliário chinês se aproxima da inadimplência, rapidamente surgiram comparações com a falência do Lehman Brothers, que desencadeou uma crise no coração do sistema financeiro global. Mas o surto do Lehman foi o ápice de 15 meses de desenvolvimento da dinâmica da crise. A crise de confiança no passivo de mercado “repo” do Lehman [4] foi o catalisador para a liquidação e deslocamento do pânico em todo o mercado de repos. Além disso, embora os laços tenham aumentado especialmente nos últimos tempos, o sistema financeiro chinês não está diretamente ligado ao sistema financeiro global. Não pode haver fuga de capital de Evergrande, devido a uma série de barreiras comerciais e até mesmo financeiras.

Neste momento, a crise da Evergrande permanece na “periferia” do sistema financeiro chinês. Embora a inadimplência e a dolorosa reestruturação possam ser permitidas, os mercados continuam confiantes de que Pequim protegerá o sistema bancário chinês. No entanto, tendo ouvido que os EUA não permitiriam o colapso do México em 1994 ou que o Ocidente não deixaria a Rússia entrar em colapso em 1998 ou, no centro do sistema, que Washington nunca toleraria um colapso imobiliário em 2007, é impressionante a fé na concorrência e no poder de um governo como o concedido hoje em dia à burocracia de Pequim, tanto na China quanto no exterior.

O risco é que isso possa começar a mudar. Como diz o geopolítico e sinólogo Francesco Sisci, que foi por anos correspondente do jornal italiano La Stampa na China, “diante do risco de uma repressão do gigante chinês, o governo ainda não interveio, não disse nada e não se sabe se e quando vai intervir”. Uma situação que “pode se tornar preocupante”. Isso “não cria uma fuga de investimentos da China, mas uma desconfiança progressiva e generalizada das ações chinesas, das empresas chinesas”. E as repercussões podem ser “sérias” porque não só a “imagem” está em jogo, já que “a China tem dezenas de empresas listadas no exterior, de Nova York a Londres, mas também em Hong Kong”, e se a dúvida sobre a ação do governo chinês se espalhar, é claro que isso teria um efeito geral em todas as empresas chinesas listadas no exterior.

Diante desse perigo potencial, a liderança chinesa deve agir rapidamente para criar mecanismos que permitam que setores altamente endividados limpem seus balanços. Como explica o analista William Pesek, radicado em Tóquio:

Pequim também precisa de um plano. Os últimos 30 anos do Japão oferecem muitas histórias sobre os malefícios de se mover muito lentamente. A equipe de Xi deve agir rapidamente para criar mecanismos que permitam que setores altamente endividados limpem seus balanços. A equipe de Xi poderia considerar a elaboração de uma estratégia de desalavancagem semelhante ao remédio de Washington para a crise de poupança e empréstimos dos anos 1980. Poderia criar uma série de entidades semelhantes à Resolution Trust Corp. A chave é chegar a um plano crível para que bancos, empresas estatais e municípios inteiros possam se livrar de empréstimos sem execução. Caso contrário, as coisas podem ficar muito complicadas para Pequim. Gigantes de investimento, de Black Rock a JP Morgan, passando por UBS e HSBC, que agora estão correndo para o caminho da China — e entoam elogios a Xi como reformista — rapidamente se tornarão vendedores líquidos. E a China simplesmente se preparará para um acerto de contas maior e pior que nunca precisou fazer.

Se romperá o pacto com a classe média?

Se se torna ou não uma crise financeira descontrolada – uma questão que, como vimos, ainda está por ver-se – é claro que a Evergrande representa um importante catalisador para uma bolha chinesa que está esvaziando. As empreiteiras imobiliárias do país há muito afirmam que o sucesso de seus negócios se deve a três elementos combinados: alta rotatividade, alto lucro bruto e alta alavancagem. Todos esses elementos estão rangendo à medida que os efeitos da crise da Evergrande se espalham pela economia. Potenciais compradores, por exemplo, assustados com o que leem nas notícias, estão se tornando relutantes em finalizar a compra, o que levou a um declínio já significativo nas vendas. Eles também provavelmente se recusarão a pré-comprar apartamentos inacabados ou títulos de depósito, exceto com descontos profundos, reduzindo a liquidez e aumentando os custos de financiamento para os desenvolvedores.

As consequências sociais desse desastre já estão sendo sentidas, especialmente em pequenos poupadores ou investidores que confiaram seus yuans à Evergrande. Na China, o setor imobiliário, além de representar um quarto do PIB nacional, também é a única opção de poupança válida e segura para as famílias chinesas, à frente de investimentos financeiros ou bancários. Os preços dos imóveis têm a reputação de não cair na China e seu peso é tão grande que o governo corre o risco de uma grande crise social se a bolha estourar. Sobre isso, é esclarecedor o relato dado à Reuters: “Centenas de milhares de unidades inacabadas... têm que ser entregues aos compradores. Eu desmaiei quando soube que a construção tinha parado. Como meu coração dói! – disse uma mulher de meia-idade do lado de fora do escritório de vendas – Para pessoas normais como nós, todas as nossas economias de vida foram investidas na casa.

Além disso, a crise estrutural do setor imobiliário na China coloca em questão a principal fonte de financiamento para os governos locais, que lucraram com terras comunitárias frente aos ávidos desenvolvedores. Isso corre o risco de se tornar um grande problema político. Como diz Sisci:

Os governos locais têm que mudar a fonte de aquisição de recursos, e seria necessário começar a tributar, mesmo moderadamente, a classe média. Mas tributar a classe média mina o consenso político e muda o contrato social existente. O contrato social atual prevê uma troca: você, a classe média, não está interessado em política, Pequim faz política, mas Pequim não tributa você e promete um desenvolvimento progressivo e seguro. Se a classe média é tributada, as pessoas também vão querer saber no que esse dinheiro está sendo gasto, sobretudo porque, embora haja confiança na administração central, há uma profunda desconfiança das administrações locais, acusadas de serem profundamente corruptas. Se os conselhos municipais aceitam dinheiro de desenvolvedores ricos em troca de licenças, é uma coisa, mas se eles querem tirá-lo da classe média, é outra.

A burocracia de Pequim está numa encruzilhada. Ou salvar a Evergrande para evitar que a empreiteira massivamente endividada danifique a maior economia da Ásia, ou a deixa cair, com efeitos incertos não apenas em termos financeiros e econômicos, mas ainda mais sérios no nível social. A primeira opção, que aumentaria o já grave “risco moral” financeiro [5] e ainda mais grave politicamente, deixaria uma imagem horrível para um líder do Partido Comunista Chinês que, de acordo com sua propaganda, visa reduzir a distância entre ricos e pobres, resgatando um bilionário que age de forma imprudente. A segunda, como vimos, poderia romper o pacto político com as classes médias, a base da estabilidade reacionária após várias décadas do regime anacrônico em Pequim. A burocracia certamente tentará, como é costume, um caminho do meio. Mas, como explico no meu longo ensaio "O Lugar da China na Hierarquia do Capitalismo Global", tanto internamente quanto internacionalmente, as margens históricas da burocracia restauracionista de Pequim estão encolhendo rapidamente. A história de onde a China está indo ainda está longe de ser contada.


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FOOTNOTES

[1Alavancagem é uma operação financeira que utiliza o endividamento para acelerar o crescimento e maximizar os lucros – nota do tradutor.

[2No verão de 2020, o Banco Popular da China traçou “três linhas vermelhas” para incorporadoras imobiliárias: uma relação dívida/ativos máxima de 70%, um limite de 100% na relação dívida/patrimônio líquido e uma tesouraria pelo menos igual a empréstimos de curto prazo. As empresas que não atendem a esses requisitos enfrentam restrições para obter empréstimos bancários. A Evergrande foi rápida em consertar suas finanças para atender a essas estipulações. Baixou o preço de seus condomínios para vendê-los com mais rapidez e conseguir dinheiro, reduzindo o preço médio de seus imóveis em 14% ao ano. Embora tenha conseguido reduzir o endividamento, a melhora ainda é lenta. A empresa ainda seguia sem cumprir duas das linhas vermelhas no final de junho, de acordo com o Instituto de Pesquisa Beike.

[3“Understanding the New Development Stage, Applying the New Development Philosophy, and Creating a New Development Dynamic”, XI JINPING, edição inglesa do Qiushi Journal, 8/7/2021.

[4Uma repo é uma operação de recompra na qual uma entidade financeira vende um ativo a um investidor com o compromisso de comprá-lo em uma data especificada a um preço especificado. O mercado de “repo” dos EUA estava no centro do sistema: um “dinheiro” percebido como seguro e líquido que de repente foi visto como um risco significativo. Como o mercado de recompra fornece uma fonte básica de financiamento para os mercados de ações e derivativos, a falta de liquidez e o deslocamento se mostraram catastróficos. O pânico resultante desencadeou uma dinâmica de desalavancagem que ameaçou um colapso financeiro sistêmico. A percepção do mercado mudou abruptamente, de “Washington nunca permitirá uma falência imobiliária” ao pânico de que a dinâmica da crise estava saindo do controle do FED.

[5Os riscos de que o “risco moral” (“moral hazard” em inglês) contribua para uma crise financeira generalizada aumentaram à medida que os níveis de endividamento da economia chinesa dispararam desde 2008, com efeitos perversos para seu modelo de crescimento, como explicamos. O próprio Banco Mundial afirma que nenhum país na história acumulou tanta dívida como a China sem sucumbir ao colapso financeiro.
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Juan Chingo

Paris | @JuanChingoFT
Integrante do Comitê de Redação do Révolution Permanente (França) e da Revista Estratégia Internacional. Autor de múltiplos artigos e ensaios sobre questões de economia internacional, geopolítica e lutas sociais a partir da teoria marxista. É coautor, junto com Emmanuel Barot do ensaio "A classe operária na França: mitos e realidades. Por uma cartografia objetiva e subjetiva das forças proletárias contemporâneas (2014) e autor do livro "Coletes amarelos: A revolta" (Communard e.s, 2019).
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