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LITERATURA | Eu receberia as piores notícias de seus lindos lábios ou a vida não é tão simples. Notas

Romero Venâncio Aracajú (SE)

quarta-feira 12 de outubro de 2016 | Edição do dia

Os trabalhos de Marçal Aquino tem se destacado pelo olhar jornalístico, crítico, trágico e contundente sobre o panorama brasileiro atual. Aquino e a geração de “novos escritores e escritoras” têm problematizado na ficção a situação da juventude.

Um tema importante e explorado nos dias atuais a partir de várias perspectivas. O romance tem sido uma forma interessante de tratar o tema. A característica marcante de Marçal é não tratar a juventude e seus relacionamentos amorosos de maneira romântica ou complacente e sim de uma maneira crua e impactante. No romance Eu receberia as piores notícias de seus lindos lábios (2005) o autor nos coloca diante de uma história que mescla vários gêneros romanescos: narrativa jornalística, trama policial, história amorosa, reportagem sobre determinada região, etc.

O livro tem claramente três partes delimitadas: a primeira, intitulada: Amor é sexualmente transmissível, onde temos a descrição poética da paixão entre Cauby e Lavínia. Há nos diálogos, nas brincadeiras, nas fotografias, certo lirismo numa região marcada pela violência extrema. Poderíamos dizer que é o momento ativo da obra e de mais encanto em termos de narrativa. No segundo, Carne-viva, temos uma digressão para sabermos a vida de Lavínia e entendermos seu ar misterioso e soturno da primeira parte. Sabemos que ela foi prostituta, violentada e marcada pela pobreza e pelo abandono e que nas ruas encontra um pastor de nome Ernani que lhe tira das ruas num processo violento de conversão e se juntam, para depois seguirem para o interior do Pará, onde ele faz um trabalho missionário com populações ribeirinhas e indígenas.

No terceiro, Postais de Sodoma à luz do primeiro fogo, temos o desfecho final e trágico do Romance. A loucura, a perda da memória e a situação de ser outro nome que não Lavínia e a violência sofrida por Cauby ao ser acusado injustamente de assassinato numa terra sem lei ou perdão. Uma obra original e implacável com o leitor. Li numa tirada só (por razões pessoais que não vem ao caso explicitar). Como se sabe, Marçal Aquino é roteirista de primeira e a partir dessa informação, imaginei como ficaria uma obra dessa natureza no cinema. Seis anos depois, a obra foi adaptada por Beto Brant e Renato Ciasca. Como toda adaptação, temos cortes e ajustes para outra linguagem. De cara, já podemos sair do falso problema: quem é melhor o livro ou o filme? Ambos. O livro é um dos melhores trabalhos ficcionais dos últimos anos e o filme é muito bom como linguagem cinematográfica adaptada. Para melhor esclarecer a quem assiste, os diretores colocaram na primeira parte do filme as situações em dois planos paralelos: um, onde temos os encontros de Cauby e Lavínia, erótico e apaixonante e sem explicação da história dos dois.

No segundo plano temos a história de Lavínia e Ernani. Sabemos que Ernani virará pastor cristão depois de uma profunda depressão ao perder a esposa. Sabemos ainda que Lavínia era prostituta e que foi tirada das ruas pelo pastor. Rouba a cena as interpretações de Camila Pitanga. Uma senhora interpretação de cenas cruas, violentas e eróticas. A cena da tentativa de tirar do corpo dela algum “espírito” que determinava aquela vida errante é de uma beleza e de um constrangimento impar no cinema nacional. Diga-se de passagem, o cinema nacional hegemônico é muito arrumadinho e muito parecido com as novelas da Rede Globo para nos arrancar sentimentos como os que o faz o filme de Brant e Ciasca. O nosso cinema nacional hegemônico é muito pobre esteticamente muito imitador da teledramaturgia contemporânea e jamais chegará a um grau de tragicidade que um cinema como o de Beto Brant ou de Cláudio Assis (A febre do rato) consegue fazê-lo de maneira extraordinária. Mas o filme de Brant e o Romance de Aquino não são apenas cenas de sexo e paixão violenta. São ainda uma denúncia direta da situação sem lei da região amazônica, denuncia da grilagem das terras indígenas por grande madeireiras ou pelo agronegócio que devasta a região. Sentimos uma região literalmente abandonada (no filme, em nenhum momento vemos alguma presença do Estado propriamente dito.

Salvo na aparição de um delegado que mais parece bandido). A região parece um lugar desolado, pobre e sempre a margem daquilo que acadêmicos e governo gostam de chamar de modernidade. Um outro mundo, é o que parece. Aquelas cenas paradisíacas da televisão e suas propagandas não existem no filme (como pouco deve existir na realidade). O filme ganha novos ares quando a paixão de Lavínia e Cauby vem a lume público e o filme se transforma numa trama policial. O marido de Lavínia aparece morto, Cauby é acusado e depois inocentado pôr o crime ter sido de encomenda. Mas nada volta ao normal. Lavínia vai para uma espécie de manicômio e perde a memória diante do trauma, Cauby perde um olho numa pedrada durante o enterro do pastor depois de sair da cadeia todo estropiado.

O filme de Brant nos leva a refletir sobre como as relações amorosas estão em sintonia com o mundo, por mais que os amantes queiram fugir do mundo. Em tudo a história sempre nos alcança, mais cedo ou mais tarde. Porém o que mais nos chama a atenção é a fragilidade com que as relações amorosas são marcadas. Às vezes parecem tão simples, mas na vida nada é simples, a começar pela própria vida. “Real e de Viés”, a vida e nossas relações amorosas dentro dela nos pregam peças, nos violentam, nos empurram para situações trágicas, alemã das tragédias que já estão a nossa disposição em “carne-via”. É notório que filme não defende nenhuma tese ao estilo dos documentários dos anos 70 ligados ao cinema novo, mas vais fundo na situação política do País, principalmente na sua forma de abandono de populações pobres inteiras por parte de governos.

Isto é um trabalho ainda por se estudar. Os filmes de Beto Brant têm feito este papel de problematizar os dramas contemporâneos na sua forma trágica. Basta lembrar O invasor, Cão sem dono ou Crime delicado, para termos uma ideia de como se faz um cinema vigoroso e crítico ao mesmo tempo. Sem perder a mão estética e sem cair em formalismo ou no estilo melodramático tão ao gosto da maioria dos diretores de plantão.


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