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TEORIA | Estratégia de desgaste ou estratégia pela decisão para a revolução no ocidente?

domingo 10 de julho de 2016 | Edição do dia

Desde os balanços da revolução de 1905 na Rússia, depois com os debates entre Karl Kautsky e Rosa Luxemburgo sobre o papel da greve geral na revolução Alemã, passando pelas reflexões de Antonio Gramsci sobre as diferentes formas que assume a luta de classes no fronte “oriental” e no fronte “ocidental” é um debate presente entre os revolucionários (que tem importantes reflexos entre os “marxistas” acadêmicos) qual forma estratégica deve assumir a luta de classes nas sociedades em que predomina a “democracia” burguesa, regime esse que constitui um sistema de trincheiras e fortificações que impedem um assalto imediato do proletariado sobre o poder capitalista (mais sobre essa questão da democracia burguesa como sistema de trincheiras e fortificações em artigo próximo).

É como parte dessa discussão essencial para a retomada dos debates estratégicos entre os revolucionários no Brasil que é escrito esse artigo, como pequena contribuição para que superemos o “grau zero de debate estratégico” que a etapa anterior nos legou.

Para entendermos os diferentes contextos em que se dá a luta de classes e porque para alguns as sociedades “ocidentais” com uma democracia burguesa mais desenvolvida pressuporiam uma estratégia particular por parte do partido revolucionário teremos que esclarecer, pelo menos inicialmente, qual o papel da democracia burguesa na dominação e construção da hegemonia capitalista.

Democracia burguesa como sistema de trincheiras e fortificações, coerção e consenso

Nesse artigo faremos uma breve discussão sobre essa questão da democracia burguesa como sistema de trincheiras e a relação entre coerção e consenso, porque ambos os debates se expressam em outros artigos ligados a esse, um já publicado aqui e o outro ainda a ser publicado nesse diário. Apresentamos esse breve resumo de ambas as discussões na medida em que são essenciais para entender a questão colocada nesse artigo em particular.

Nos debates tanto dentro da social-democracia quanto posteriormente dentro da terceira internacional, debates que posteriormente Gramsci irá aprofundar e sistematizar, se estabelece uma diferença entre as formas que assume a dominação burguesa na Europa ocidental e oriental (principalmente a Rússia). Enquanto na Rússia, com uma sociedade civil menos desenvolvida o estado ganhava um peso desproporcionalmente grande no estabelecimento da dominação burguesa, dominação essa que era baseada na força e coerção diretas, nas sociedades ocidentais, com uma sociedade civil mais desenvolvida, o estado perdia parte de sua predominância na dominação, pois parte desse exercício de poder era dirigido por organismos próprios da sociedade civil (igrejas, sindicatos burocratizados, jornais, partidos, etc) e a dominação burguesa não se baseava diretamente na coerção, mas essa era mediada pelo consenso, construindo uma relação particular de exercício da hegemonia burguesa sobre as classes subalternas.

Assim, a democracia burguesa se constituía num sistema de trincheiras e fortificações que impedia o assalto imediato por parte do proletariado do poder burguês, como o que aconteceu na Rússia. Esses elementos da sociedade civil que se erigiam como aparatos hegemônicos da burguesia em coordenação com o aparelho estatal (o estado integral burguês) formavam uma série de barreiras e diques contra os movimentos rápidos do proletariado.

Como enfrentar essa nova situação, como responder as contradições novas que se colocam quando nos encontramos num novo teatro de operações, num campo de batalhas distinto? Esse problema irá se colocar para reflexão e prática dos revolucionários marxistas desde a segunda internacional, como na já citada polêmica entre Rosa Luxemburgo e Kautsky, e atravessará os debates da terceira internacional durante seus quatro primeiros congressos, antes da stalinização.

Para levar a frente esse debate os revolucionários marxistas se apropriarão das categorias do pensamento militar e dos debates que surgiram principalmente durante a primeira guerra mundial entre guerra de desgaste (ou guerra de trincheiras, naquele contexto) e guerra pela decisão.

Hans Delbruck e Clausewitz, estratégia de desgaste e estratégia pela decisão

A importância que dá Clausewitz à batalha como momento essencial da guerra, sua demonstração da impossibilidade de uma vitória estratégica apenas por meio de manobras que evitem as lutas efetivas na espera de um melhor momento, sua ênfase na necessidade da concentração das forças num ponto decisivo e de sua utilização concentrada, sua admiração pelas formas como lutou Napoleão Bonaparte construíram posteriormente o mito de que o general prussiano seria um defensor ferrenho de uma estratégia de “ofensiva permanente”, onde toda evasão e espera seriam grande erro e o objetivo imediato de todo movimento dentro da guerra era a busca pela batalha decisiva.

Nada mais longe da verdade, pois se certamente Clausewitz dá grande importância à batalha como momento decisivo da guerra e mostra a necessidade da concentração das forças no teatro de operações, mostra também que a forma defensiva é a forma inerentemente mais forte de luta; como fruto disso, da busca por uma vantagem estratégica no confronto, que lhe permita atravessar as linhas de defesa inimigas, a maior parte do tempo da guerra se dá sem lutas efetivas, mas em momentos de preparação, e mais o elemento central do pensamento clausewitiano que a “guerra é continuação da política por outros meios” mostra que o momento da batalha é mediado por diversas outras relações, a correlação de forças entre os estados inimigos, a possibilidade das ameaças de perdas nas batalhas dissuadirem um dos contendores e fazer com que ele conceda algumas das demandas impostas pelo inimigo mais forte, etc.

Contudo, essa visão de que Clausewitz seria o teórico da ofensiva permanente influenciou muito o pensamento militar alemão durante toda a primeira metade do século XX. Alguns historiadores militares (como Raymund Aron e Jehuda L. Wallach) defendem inclusive que essa apreensão equivocada do pensamento do prussiano foi um dos fatores para a derrota alemã durante a primeira guerra.

Visando combater essa visão de que a única forma legitima e apropriada para a guerra moderna seria uma guerra pela decisão que através de movimentos arrojados e da concentração das forças num único ponto buscasse a todo o momento a batalha decisiva o historiador militar alemão Hans Delbruk irá mostrar como em grande parte das guerras na história a guerra não foi uma guerra de manobra, com uma estratégia pela decisão, mas uma guerra de posições, ou com uma estratégia de desgaste, onde o exercito com forças limitadas, busca ir infringindo pequenas derrotas sobre seu inimigo, ganhando posições parciais no campo de batalha, que lhe permitam num momento posterior negociar uma paz vantajosa.

Para Delbruk quando nenhum dos contendores tem uma vantagem estratégica sobre o inimigo, quando a correlação de forças é equilibrada, essa é a forma mais efetiva de se levar a frente a batalha, a estratégia de desgaste passa a ser a mais adaptada ao plano de guerra.

Trotsky e Gramsci, guerra de posição e guerra de movimento

Uma analogia pode ser feita, penso, da relação entre Clausewitz e Hans Delbruck e entre Trotsky e Gramsci. Também Trotsky foi acusado de ser um teórico da ofensiva permanente, enquanto Gramsci seria o teórico da guerra de trincheiras.

A analogia é legitima também, me parece, porque ambos os revolucionários se apropriaram grandemente do pensamento militar para formular suas perspectivas estratégicas.

Contudo, é grande equívoco ver em Trotsky um pretenso teórico da ofensiva permanente, ou vê-lo como um teórico importante talvez para as sociedades “orientais”, onde seria possível um assalto decisivo ao poder burguês, enquanto Gramisci seria o teórico por excelência para as sociedades ‘’ocidentais”,” democráticas”.

Em diversas de suas reflexões sobre as possibilidades revolucionárias nas grandes democracias imperialistas de então (como em suas reflexões sobre a greve geral na Inglaterra na década de 20, ou no processo revolucionário na França na década de 30) ou sobre a necessidade de uma frente única defensiva contra o ascenso do nazismo na Alemanha Trotsky desvelará algumas das características centrais da democracia como forma particular do exercício do poder burguês e as forma particulares que deve assumir a estratégia revolucionária no “ocidente”.

No entanto, é evidente que a contribuição de Gramsci para esse debate sobre as peculiaridades do “fronte ocidental” e as formas particulares que deve assumir a luta nesse campo de batalha não podem ser negligenciadas, muito pelo contrário, são contribuições essenciais para o debate e construção de uma estratégia revolucionária hoje.

Os diversos conceitos desenvolvidos pelo italiano principalmente em seus Cadernos do Cárcere que buscam entender as formas próprias de objetivação da hegemonia burguesa dentro das sociedades “democráticas” (como os de coerção e consentimento, hegemonia, transformismo, revolução passiva, bloco-histórico, crise orgânica e diversos outros) são parte essencial e ferramentas fundamentais do pensamento marxista (portanto revolucionário, oposto pelo vértice ao pensamento academicista) para entender e transformar a sociedade.

Essa apropriação do pensamento de Gramsci, no entanto, deve se dar de forma crítica, tanto por conta das ANTINOMIAS próprias do pensamento do revolucionário italiano, posto as condições de extrema dificuldade em que escreveu seus cadernos (não seria aqui o espaço para entrar no debate presente hoje nos meios acadêmicos se existiriam ou não essas antinomias) quanto pela apropriação acadêmica e reformista do pensamento do italiano, que são uma pressão para que todos aqueles que utilizam de categorias forjadas por ele as utilizem dentro dessa ótica reformista.

A coordenação entre a conquista de posições no campo de batalha e a insurreição como momento decisivo

A questão que temos que ter claro para pensarmos a relação entre guerra de posição e guerra de movimento, desgaste ou decisão, na estratégia para a revolução no ocidente é que não existe uma oposição polar entre os dois momentos da luta, mas uma relação de complementaridade, com predominância do momento da decisão, ou guerra de movimento, na terminologia gramsciniana.

É nesse sentido que a guerra de trincheiras, a conquista de posições parciais, o desgaste das forças inimigas, é momento essencial de acúmulo de forças no campo de batalhas ocidental, que preparam a possibilidade de uma batalha decisiva, de um momento insurrecional.

No “ocidente”, portanto, o momento predominante de nossa estratégia é também, assim como no “oriente”, o da estratégia pela decisão, o da guerra de movimento, que significa na prática que nossa estratégia é o de uma insurreição urbana, baseada na classe operária, violenta, que se aproveitando de um momento de crise orgânica da dominação burguesa, imponha pela força aos nossos inimigos de classe nosso objetivo político, a socialização dos meios de produção, controlados de forma democrática pelos produtores associados e a realização de uma efetiva democracia operária.

A questão é que no “ocidente’’, com seu sistema de trincheiras e fortificações esse momento decisivo pressupõe um muito maior momento de acúmulo de forças, um momento mais agudo e profundo de guerra de posições, de desgaste das forças inimigas e conquista de trincheiras por parte do proletariado.

Pois apenas se a classe trabalhadora conquistou importantes posições, apenas se ela tem trincheiras e fortificações onde se apoiar e que se tornem praças de armas para sua ofensiva pode ela se aproveitar dos momentos de desorganização e confusão do exercito inimigo para lhe impor uma derrota decisiva.

Crise orgânica e estratégia pela decisão

Esses momentos de crise e confusão dentro do campo inimigo são por definição momentos fugazes, atípicos, que a classe dominante, com grande número de intelectuais e pessoal adestrado no exercício do poder e monopolizando a maior parte dos aparatos hegemônicos e de repressão, supera rapidamente. É essa a importância de que o proletariado tenha em todo o momento anterior conquistado uma série de posições e trincheiras para que possa aproveitar esse momento de desorganização da dominação burguesa e lhe infringir uma derrota decisiva.

Se o proletariado não aproveitou o momento anterior para conquistar essas posições no campo de batalha sua ofensiva será limitada e não conseguirá impor um golpe decisivo sobre seu inimigo de classe, posto o desgaste inerente e perda de força de toda ofensiva quanto mais ela se estende no tempo.

O proletariado, portanto, deve estar preparado para aproveitar esse momento de crise orgânica (momento de crise na dominação burguesa, de contestação a sua hegemonia, tanto porque essa classe falhou em uma grande empreitada para a qual solicitou apoio popular, ou por conta de uma grave crise militar ou econômica) para aproveitar da desorganização dos aparatos hegemônicos burgueses e da coordenação dos aparatos estatais e dos próprios a sociedade civil para organizar e preparar uma batalha decisiva.

Mas essa capacidade por parte de nossa classe de aproveitar esse momento de desorganização, por definição efêmero, pressupõe todas as pequenas batalhas e conflitos anteriores, cada greve e conflito de classe, que foram as escolas de guerra que prepararam o proletariado para o momento decisivo.

Vemos assim que muito longe de uma oposição polar entre dois momentos marcadamente distintos estratégia de desgaste e pela decisão, guerra de posição e guerra de movimento, são momentos complementares da estratégia proletária para a revolução no “ocidente”, com predominância do segundo momento.

Uma correta coordenação entre os dois momentos, o saber transitar entre a guerra de posição e a guerra de movimento, o saber apreender o momento em que a luta por conquistar trincheiras deve se transformar na luta decisiva pela tomada do poder, é parte essencial da arte revolucionária que apenas a experiência concreta, que certamente ainda viveremos, poderá nos proporcionar.

Conclusão

Aqui, como em uma série de outros artigos publicados nesse diário, se busca refletir sobre as formas particulares que assume a estratégia revolucionária no “ocidente”, principalmente num “ocidente” suis generis como o Brasil.

O que mais felicitaria o autor dessas linhas é que esse artigo suscitasse debates na esquerda, debates esses que são essenciais hoje, no novo momento da luta de classes que vivemos no país.


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