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INTERNACIONAL | Estados Unidos e Coréia do Norte: uma guerra de nervos

Enquanto o furacão Harvey está devastando o sul dos Estados Unidos, outra tormenta perfeita está se formando a milhares de quilômetros de distância, no noroeste asiático.

Claudia CinattiBuenos Aires | @ClaudiaCinatti

segunda-feira 4 de setembro de 2017 | Edição do dia

As tensões alcançaram um ponto de ebulição essa semana com o lançamento de um míssil de médio alcance por parte do regime norte-coreano que sobrevoou o território do Japão. A retórica inflamada de Trump, que prometeu descarregar “fúria e fogo” como nunca se havia visto na história contra a Coréia do Norte, contrasta com as escassas opções realistas que Washington têm para tratar de conter o regime de Kim Jong-un. Mas o conflito e seus riscos vão mais além do paralelo 38. Todos sabem que a escalada norte-americana na península coreana é uma tentativa de elevação contra a China, ainda que por agora se trate de jogos de guerra e não de uma guerra propriamente dita.

Desde que se inaugurou a presidência de Trump, as tensões entre Estados Unidos e a República Democrática Popular da Coréia, mais conhecida como Coréia do Norte, foram crescendo.

O líder norte-coreano, Kim Jong-un, ameaçou lançar, a fins de agosto, um ataque de mísseis contra a ilha de Guam, ou seja, contra o território norte-americano que está mais próximo. Se pode dizer que até agora, cumpriu em parte a sua promessa. No dia 29 de agosto, lançou um míssil balístico de médio alcance, mas ao invés se ir em direção ao sul, a Guam, foi para o norte, sobrevoando a ilha japonesa de Hokkaido, sede de exercícios militares conjuntos com os Estados Unidos para se lançarem no Oceano Pacífico.

Não é a primeira vez que mísseis são lançados desde a Coréia do Norte e alcançam o território do Japão, isso sucedeu em 1998 e em 2009, episódios em que não se considerou como ataque armado, já que o governo japonês já tinha sido advertido com antecedência. O ataque de 2017 é então um salto. É o míssil de maior alcance até agora em poder da Coréia do Norte, considerado um escalão prévio à aquisição de mísseis balísticos intercontinentais, que poderia alcançar o território norte-americano. A jogada de Kim consistiu em mostrar a nova capacidade militar adquirida e enviar sua mensagem tanto a inimigos, como a aliados reticentes (China), mas sem alcançar nenhuma “linha vermelha” que deixe um território sem retorno.

O desafio de Kim colocou em destaque as divisões da Casa Branca, surgindo dilemas insolúveis para os Estados Unidos: ao mesmo tempo que não está disposto a admitir a Coréia do Norte ao clube seleto de países com armamento nuclear, também não quer se arriscar a uma guerra para evitá-lo. Enquanto Trump ameaçava com “fogo e fúria” pelo Twitter, o secretário de defesa, Jim Mattis, assegurava que a administração norte-americana nunca havia considerado abandonar a opção diplomática. O próprio secretário de Estado, R. Tillerson o fazia. O presidente mesmo oscila entre os golpes militares preventivos e o diálogo, pressionando a China para que seja um aliado.

O que é certo é que mais além das palavras proclamadas, até agora os Estados Unidos respondeu com mais do mesmo: no âmbito diplomático, endureceu as sanções contra o regime coreano impostas pelo Conselho de Segurança das Nações Unidas. E no âmbito militar, realizou com mais espetacularidade que nunca os exercícios militares conjuntos com a Coréia do Sul, os quais participaram milhares de soldados. Esse ritual anual é sem dúvida um ato obsceno de exibição de poderio militar e uma recordação de que seguem estando na mesa “todas as opções”, ainda que agora ninguém queira usá-las.

Entretanto, o fato dos Estados Unidos e seus aliados evitarem uma guerra que teria um custo elevadíssimo se fosse convencional e incalculável se fosse nuclear, sobretudo para a Coréia do Sul, não significa que a militarização da península coreana e do noroeste asiático não esteja alcançando um volume suficiente para disparar, inclusive, um conflito acidental.

Faz um tempo que o Japão decidiu deixar para trás o pacifismo assumido depois de sua derrota na Segunda Guerra Mundial. O primeiro ministro japonês, Shinzo Abe, está utilizando o clima de pânico criado para avançar com a sua política de incrementar a capacidade militar defensiva de seu país. De fato já pressionou para que os Estados Unidos reforce seus sistemas de mísseis. Provavelmente, também busca justificativas para seus planos de expansão militar ofensiva.

O presidente liberal da Coréia do Sul, Moon Jae-in, ganhou as eleições em maio prometendo retornar a uma política de negociação com seu vizinho do norte. Além disso, um dos eixos de sua campanha foi se opor à instalação da bateria anti-mísseis norte-americana (Thaad, pela sigla em inglês), que com um objetivo defensivo de interceptar mísseis disparados desde o norte do paralelo 38, dissimula o propósito de ter a China dentro de seu alcance. Entretanto, Moon abandonou o essencial dessas promessas políticas que antagonizava em parte com as pretensões norte-americanas. Uma vez mais assumiu o “realismo” de se subordinar a seu aliado maior. Seu único limite parece ser evitar ações unilaterais dos Estados Unidos.

Enquanto isso, a China trata de fazer malabarismos. Sua política é desescalar, ou seja, que todos retrocedam como que por mágica. O que menos convém é que Kim dê desculpas a seus inimigos para incrementar sua presença militar. O líder norte-coreano demonstrou ser um aliado incômodo disposto a morder a mão de quem lhe der o que comer. E não há nada que Beijing possa fazer para disciplinar mais o vizinho do que já não tenha feito, sem arriscar com desatar uma crise de dimensões em sua própria fronteira. Além disso, possui um interesse especial em preservar a Coréia do Norte, que com suas contradições, segue contendo as políticas agressivas dos Estados Unidos e seus aliados.

Esse complexo jogo de interesses configura um tabuleiro geopolítico e militar instável.

E a Coréia do Norte? Sem dúvidas, Kim Jong-un encabeça um regime ditatorial repudiavél. Entretanto, considerar que se trata de um ditador louco e caprichoso, um provocador, como faz a maioria dos analistas dos meios corporativos, é um exercício de preguiça intelectual. Isso significa, nem justificar as ações, nem dar por feito que não se tomam decisões equivocadas que podem ter um alto custo. Os exemplos mais recentes sem dúvida são as guerras, do Iraque e Afeganistão, esta última a mais prolongada na história norte-americana.

Sua aparente irracionalidade faz com que se mantenha sem ser comido por seus vizinhos, Coréia do Sul e China, nem varrido pelos Estados Unidos como sucedeu com outros regimes como o de Saddam Hussein ou Kadafi.

Kim pode ser um psicopata, mas na sua loucura há um método. Como todo bonapartista, seu poder surge de arbitrar entre as diversas frações militares e a burocracia partidária, por meio de um sistema de cassações e recompensas. Segundo alguns informes, se calcula que executou 140 militares, entre eles seu tio, além de ter ordenado assassinar seu meio-irmão na Malásia, Kim Jong-am, que mantinha boas relações com a China.

A combinação de desenvolvimento de armamento nuclear mais reformas econômicas, anunciadas por Kim no congresso do Partido de Trabalhadores do ano passado (que diga-se de passagem, foi o primeiro congresso em 30 anos), permitiu desenvolver uma base na incipiente classe média formada fundamentalmente pelos funcionários do regime.

Portanto, o programa nuclear forma parte essencial da equação de poder e dos recursos da Coréia do Norte para sobreviver. Isso se transforma em um aspecto praticamente inegociável – só esteve aparentemente em discussão durante uma breve pausa, entre 1994 e 2000, coincidindo com uma política de diálogo da administração Clinton e a pior crise de fome que o país enfrentou.

Como descreve muito bem o historiador Bruce Cumings em uma nota recente, a política dos Estados Unidos tem sido historicamente de agressão: não reconhecimento em 1948, sanções econômicas desde 1950, guerra das duas Coréias, entre 1951-53, que tecnicamente segue, suspensa por um armistício de 1957.

Essa agressão imperial, que sobre o ombro da Coréia do Norte, aponta também contra China, não é abstrata. Fazendo um breve repasso, Estados Unidos tem 40.000 soldados no Japão, localizados em 112 bases, em sua maioria na Ilha de Okinawa; porta-aviões, submarinos nucleares, defesas anti-aéreas e mísseis. Tem outros 35.000 soldados na Coréia do Sul, além de tanques e o sistema Thaad; a ilha de Guam, que é praticamente uma base militar; a sede do Comando do Pacífico no Havaí e uma presença militar discreta nas Filipinas, Singapura e Tailândia.

O pivô para a Ásia Pacífico começou sob a presidência de Obama. A diferença é que com Trump na Casa Branca, se incrementou o militarismo como estratégia para opor-se à decadência hegemônica dos Estados Unidos e com ele o risco de uma guerra, que a princípio ninguém deseja.




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