×

ANIVERSÁRIO MORTE FRANTZ FANON | Entrevista com Deivison Nkosi sobre vida e obra de Fanon - Parte 2

sábado 1º de agosto de 2015 | 00:36

ED: O que para você significa um curso como este, com tanta presença de negras e negros, motivados a debater novos rumos para o movimento negro?

O curso foi muito importante para divulgar a obra do autor. A nossa expectativa é que a partir dele, as pessoas se interessem em ler e se aprofundar nos temas produzindo novas reflexões, indo além do próprio autor, e mesmo do provocador em questão. O interessante é que uma boa parte dos participantes, já tinham contato com os textos e mesmo os que ainda não tiveram, ofereceram reflexões muito ticas, a partir das suas vivências e leituras outras. O curso foi muito legal e permitiu pensar várias coisas relacionadas à África e a Diáspora, em geral, e ao Brasil que vivemos, em particular. Foi um momento muito interessante, e isso, se deu principalmente, graças aos participantes.

Outro ponto legal, que você coloca, é que haviam muitos/as negros/as, e a maioria desses/as na universidade. Os que não estão na universidade, estão atuando nas fileiras do movimento negro e movimento de mulheres negras. Isso ajuda o alto nível das intervenções e reflexões. As provocações oferecidas por Fanon permitem pensar que as reflexões teóricas, ou mesmo acadêmicas sobre o racismo e a sociedade como um todo, são fundamentais, mas perdem o valor se não forem postos a serviço da luta pela transformação (e quem sabe superação) das contradições ao qual se debruça. Talvez por isso, esse curso, num lugar importante como a Casa de Cultura Tainã, foi tão especial.

ED: Quais são para você os desafios dos negros neste momento político em que vivemos? Qual papel eles devem cumprir?

Penso serem vários. O país está em um momento difícil e confuso e os movimentos sociais se encontram em uma sinuca de bico, posta pelo atual momento político. Este cenário está para além do movimento negro, mas o influência, diretamente. A luta para que o Estado reconhecesse o racismo e desenvolvesse políticas públicas de igualdade racial levou o movimento negro a apostar quase todas as fichas nas vias institucionais. Nós não podemos nos dar ao luxo de abrir mão dessas, mas nos limitar a elas é um equívoco que precisa ser urgentemente repensado.
Outro elemento que precisa ser repensado no movimento negro é a relação entre as categorias Universal e Específico. A crescente universalização das relações capitalistas de produção e reprodução da vida impôs ao mundo uma forma de pensar racializada de pensar o humano. Desde antes do iluminismo, o europeu é apresentado como expressão universal do ser humano e os não europeus aparecem quase sempre como não ou menos humanos. Essa episteme racializada criou a identificação do universal o branco e a Europa. O negro/africano, quando não é invisibilizado, é sempre representado como especificidade, nunca como expressão universal. Isso trouxe uma série de problemas para o movimento negro, porque na maioria das vezes, quando se pensa uma reivindicação política “universal”, as demandas que atingem o povo negro ficam invisibilizadas.

É verdade, que se pensarmos a universalização do acesso a educação ou mesmo a melhora do sistema educacional, por exemplo, todos os brasileiros se beneficiarão, inclusive os negros. O problema, para o movimento negro, ainda a título de exemplo, é que se pensarmos a melhora do sistema educacional, desconsiderando as dimensões racistas da sociedade brasileira, estaremos atuando para a manutenção do racismo, mesmo que sejamos retoricamente contra ele. Essa dura constatação levou a diversas incompreensões no campo da esquerda brasileira, levando a muito intelectual valoroso, do ponto de vista da luta de classes, se colocar contra às reivindicações legítimas postas pelo movimento negro. O outro lado do problema é que o movimento negro precisou criar espaços próprios de reflexão e articulação política que tratassem das questões “específicas” do negro em nossa sociedade. Ocorre que o racismo não é um dado específico, mas um elemento constituinte da sociabilidade capitalista e por isso, a sua problematização necessita ir além dos espaços construídos e já conquistados pelo movimento negro. Para além disso, quando se pensa a luta social, há na luta por moradia, pela mobilidade urbana, pela defesa do SUS, e principalmente, nos elementos mais gerais da luta de classe, aspectos que interferem diretamente na vida e na morte do povo preto. Deixar esse debate para os brancos, ou agir como se esse fosse um debate de brancos é aceitar a racialização do universal, como Fanon denuncia. Mas esse debate é difícil, e o racismo não é exclusividade das elites econômicas, ele também atua como barreira real ao acesso de negros e negras à cargos de poder nas organizações de luta da classe trabalhadora. Esse é um ponto que precisa ser encarado de frente por qualquer um que se diz preocupado com a transformação da sociedade.

Outro desafio importante é a relação entre unidade e diversidade. O Brasil é muito grande e as realidade não são exatamente iguais em cada canto do país ou mesmo em uma mesma localidade, quando se compara pessoas em posições diferenciadas. Isto significa que o movimento negro não pode ser pensado em um sentido monolítico. É extremamente importante que existam pessoas se organizando em todos os espaços possíveis e a mobilização em uma universidade, por exemplo, não inviabiliza a mobilização em uma fábrica, escola de samba ou em uma favela. O problema é quando não relacionamos esses vários espaços de forma a identificar o que lhes são comuns e em que aspectos uma atuação pode fortalecer a outra. A valorização da diversidade de atuação não precisa levar à fragmentação política, se não perdermos de vista o que nos é comum.

Paralelo a isso, quando se pensa a chamada cultura negra, por exemplo, o risco de tomarmos essa ou aquela expressão cultural de matriz africana como “símbolo universal de negritude” e, com isso, desconsiderarmos que os símbolos são constantemente (re) significados pela dinâmica da vida (e da luta). Isso significa que até aquilo que identificamos como “origem negra”, é passível de ser (re) significado à medida que agimos no mundo. Por isso, a ideia de Sankofa – que nos lembra a importância de sempre voltar atrás e apanhar o que ficou perdido – não deve ser tomada como um eterno retorno ao passado, mas como a apropriação crítica desse passado de forma à melhor compreensão do presente e das possibilidades futuras... para isso, seria necessário rejeitar as visões mumificadoras da cultura, e pensá-la como um elemento que está em constante negociação e disputa. Mais do que isso, entender que essas negociações e disputa se dão de formas diferenciadas a depender do tempo e espaço, mas nem por isso, menos ou mais legítimas. Do contrário, tomaremos uma experiência cultural (geralmente pensada em um contexto urbano e de grande potencial junto à indústria cultural) como símbolo universal de rebeldia e chegaremos a desconsiderar outras manifestações que caminharam por outros caminhos. Uma mulher negra que se engaja na luta contra o genocídio do povo negro, temendo pela vida do seu filho, mesmo não tendo o cabelo black power e/ou não crendo em alguma das religiões de matriz africana, pode ser tão ou mais subversiva ao racismo que um militante clássico, que por vezes se limita a um enfrentamento político mais estético. O movimento negro tem que estar atento a isso.

ED: Como levar a demanda dos oprimidos, em especial dos negros para o restante da classe trabalhadora?

Como eu disse acima, o recorrente equivoco iluminista que identifica o branco como universal e o negro como específico estão presentes tanto na dita esquerda quanto no movimento negro. Um pensa a luta de classes, quase sempre sem considerar a importância do racismo para a reprodução do capital e o outro pensa a luta negra, quase sempre, como se o racismo fosse um problema isolado das demais contradições sociais. Essa falsa polaridade tem que ser superada ou não sairemos do lugar. Em uma leitura que lembra muito o Fanon, o Caio Prado (e também o Florestan Fernandes e o José Chasin) nos lembram que o capitalismo brasileiro, de via colonial, é um tipo de capitalismo que se estruturou a partir da escravidão. Diferente da Europa clássica, a nossa burguesia não se pautou por aspirações democráticas e a consequência é um país rico e enorme que atravessou os séculos sem nenhuma transformação vinda “de baixo”. As transformações históricas pelo qual o Brasil vivenciou foram sempre articuladas “pelo alto” e o resultado é que os netos dos senhores escravistas continuam no poder. Isso significa, no nosso caso, que se a luta da classe trabalhadora não em mente essa dimensão sócio-racial do capitalismo brasileiro, qualquer esforço de luta está condenado ao fracasso.

O outro lado da história, para o movimento negro é que a rejeição à assertiva eurocêntrica do iluminismo não é a rejeição da tal da esquerda (ou de qualquer outro espaço tido como branco e/ou universal), mas sim a sua disputa. Esse assunto é delicado por que, diante das históricas incompreensões, tem muito militante do movimento negro que não mais acredita ser possível travar a luta negra a partir da esquerda... esse sentimento, embora historicamente compreensível deve ser questionado dado o risco de deixar novamente aos brancos a exclusividade de espaços que influenciam diretamente a vida dos/as negros/as. Por isso um pensador como Fanon é tão importante em nossos dias. Mas para não nos limitarmos a ele, lembremos o argumento de Clóvis Moura: “Se a esquerda não aborda a questão racial, sejamos nós mesmos a esquerda”. O problema, que vai muito além do movimento negro, em tempos de Lava à jato e fragmentações das mais diversas, é: mas de que esquerda estamos? Mas isso não é apenas o movimento negro que tem que responder.

ED: Fanon é colocado como um revolucionário que colocou a frente a população negra a frente de suas demandas, porém buscando sempre a união com os brancos árabes, que também eram explorados pelos colonizadores africanos. Para o Brasil deveria ser também esse o caminho? Uma união entre os oprimidos?

O debate da união é sempre difícil, porque o que a história mostra, é que a unidade também pode ser o espaço de ocultar as diferenças. É bastante conhecida a crítica das feministas negras ao feminismo em geral, quando as bandeiras defendidas acabam por representar apenas as reivindicações das mulheres brancas e de classe média, ocultando, assim, as dores e demandas vividas pelas mulheres negras. Olhando os movimentos sociais de uma maneira geral, nota-se que a constatação dessa crise tem levado à uma fragmentação política muito grande, porque nada garante, se quisermos seguir no exemplo do movimento feminista, que o movimento de mulheres negras também não reproduza a invisibilidade das demandas das mulheres lésbicas ou quilombolas, ou que as dimensões geracionais ou regionais não resultem na necessidade de criar um movimento específico de mulheres negras lésbicas jovens ribeirinhas... o ponto que estou colocando não é a crítica à visibilidade das demandas específicas, por que elas existem e precisam ser encaradas, mas sim, em que momento se pensa a articulação dessas diferenças nos espaços comuns. As reflexões e práticas de Fanon apontam para uma sensibilidade dessas diferenças, mas ao mesmo tempo, para uma preocupação com esse momento de articulação. Na prática esse ponto é bastante difícil, mas precisa ser pensado e perseguido ou seguiremos nos fragmentando infinitamente.

ED: Deixe um recado para a comunidade negra e para aqueles que querem se juntar a luta antirracista.

Há uma pensadora brasileira chamada Jurema Werneck que nos lembra sempre que “os nossos passos vêm de longe”. Isso significa, quando observamos os diversos projetos de extermínio em curso, que a nossa simples existência hoje, só foi possível, porque houve lutas diversas pela nossa preservação biológica e simbólica. O ponto que precisamos pensar, para retomar o Fanon, é que “cada geração tem a sua tarefa histórica” e por tanto, para ele, podemos assumi-las ou traí-las. Assumi-las, significa, nas palavras de Amilton Borges Walê, estar fora da zona de controle da casa grande.


Temas

Negr@s



Comentários

Deixar Comentário


Destacados del día

Últimas noticias