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ANIVERSÁRIO MORTE FRANTZ FANON | Entrevista com Deivison Nkosi sobre vida e obra de Fanon - Parte 1

sexta-feira 31 de julho de 2015 | 03:12

ED: Você poderia se apresentar para nós? Quando começou a militar, por quais organizações políticas e do movimento negro passou, falar um pouco sobre as suas experiências?

Bom o meu nome é Deivison Faustino, mais conhecido como Deivison Nkosi. Iniciei a militância política a partir do movimento hip hop em Santo André, cantando rap e desde então, componho o movimento negro. Eu cantava em um grupo chamado Amandla Awetu e integrava uma Posse (organização de Hip hop) que fazia trabalhos comunitários e grupos de estudos. Foi deste ambiente que veio o Grupo Kilombagem.

ED: O que é o Kilombagem? Qual seu objetivo, quais atividades organiza e como surgiu?

O Kilombagem é uma organização preta que procura desenvolver estudos e ações de combate ao racismo em uma perspectiva de esquerda e feminista. Já participamos de todo tipo de atividade ligada a esses três pilares (raça, classe e gênero) e atualmente, temos estimulado a criação de grupos de estudos, cursos de formação e ações diversas de intervenção social antirracista. Neste momento, estamos participando de diversas iniciativas de luta antirracistas, entre elas, a participação junto aos guerreiros da Campanha “Reaja” para a realização da III Marcha Internacional Contra o Genocídio do Povo Negro, a ser realizada no dia 24 de agosto.

ED: Quem foi Franz Fanon e por que estudá-lo hoje? Quais contribuições ele pode trazer para o debate sobre a Questão Negra?

Fanon foi mais um, como nós, que sofreu na pele a dor do racismo, mas se recusou a ser passivo diante disso. Ele nasceu na Martinica, uma ilha caribenha que pertence à França, mas quando ele viajou para a metrópole francesa, acreditando ser um francês, descobriu que para os franceses brancos ele não era um compatriota. Era negro! E por isso, por mais que quisesse, nunca seria considerado um francês e, nem mesmo, humano, em muitos casos. Esse momento da vida de Fanon foi importante para a sua reflexão sobre o racismo, pois ele percebeu, a partir das suas amargas experiências e uma rigorosa autorreflexão filosófica, que a sociedade ocidental se estrutura através de uma linha rígida que delimita quem é humano e quem não é. A relação Eu/Outro, tão importante à constituição da nossa humanidade, é na sociedade racista, interditada por uma lógica que reduz alguns (os outros) a mero objetos.

Quando a Cláudia Silva Ferreira foi arrastada viva por uma viatura policial sobre o asfalto carioca, houve pessoas que riram. Há um ditado africano que diz “ninguém ri do tombo da própria mãe”, isso porque a dor do “outro” – quando nos vemos nele - deixa marcas terríveis em nós. Mas quando esse “outro” não é considerado humano (como nós), ele deixa de ser considerado uma extensão da minha humanidade para se reduzir a uma coisa... sem significado humano para mim, mas sim, um simples objeto que manipulamos, destruímos ou descartamos caso não seja útil. Em uma sociedade colonial como a nossa, o/a negro/a, quando é visto como Ser, é quase sempre resumido a dimensão de coisa.
Assim, para o Fanon, o racismo não está presente somente no momento em que alguém diz que o negro é macaco ou é inferior, mas também nos momentos em que ele é resumido a coisa/objeto/animal, de forma que a sua humanidade (saberes, cultura, estética, espiritualidade) é sistematicamente desconsiderada.

Se perguntarmos a um professor do ensino fundamental qual é a palavra que vem em sua cabeça quando pensa em “negro” ou “África”, teremos, na maioria das vezes a representação de coisas negativas como a fome, miséria, doenças, guerras, atraso etc. Mas se refazermos a pergunta, pedindo para que nomeiem apenas os aspectos positivos destas palavras (Negro/africano), surgirão palavras como musicalidade, cores, alegria, danças, sensualidade, natureza, etc. Não é mentira que os últimos dois mil anos de história dos povos que hoje classificamos como europeus, passou por um intenso processo de repressão de sua corporeidade, lucidez e espiritualidade. Vale lembrar que a inquisição exterminou a todos os portadores de saberes humanos que poderiam se contrapor ao poder da igreja... as “bruxas” assassinadas eram na verdade as mulheres que detinham conhecimentos ancestrais sobre a natureza e sobre si. Com o surgimento do capitalismo, a corporeidade européia foi restringida e adestrada para se comportar adequadamente às necessidades da linha de produção de mercadoria.... Em outras palavras, a Europa tem um longo histórico histérico de contenção de corpos e isso é criticado pelos pensadores europeus mais qualificados. Na África, ou nas Áfricas, se preferirmos, a história caminhou em um sentido diferente, onde a própria edificação dos saberes técnicos não teve que confrontar os saberes religiosos para se desenvolver. Para além disso, a lucidez era quase sempre vista como meio - e não contraponto – ao conhecimento, oferecendo uma forma integrada de pensar o corpo e o espírito, razão e emoção, tradição e técnica. É óbvio que todo esse legado civilizatório vem sendo implodido na África desde a ocupação árabe, a partir do século VII e principalmente com a ocupação européia que iniciou no século XV, mas se intensificou no século XIX a fora. O problema, para voltarmos ao Fanon, é quando todo esse legado - que é por excelência a articulação dialética entre razão e emoção - é resumido à sua dimensão lúdico/corpórea.

Desde que existe o colonialismo, o colonizado só aparece como objeto das relações sociais, nunca como sujeito constituinte da história. Assim como o escravo era útil apenas como corpo, e mesmo o seu saber – que nunca fora rejeitado pelo sistema de dominação colonial -, quando aceito, não é identificado como se lhe fosse próprio. O negro (a) /africano (a) só é visto e valorizado como corpo. Da mulata que sacia os desejos dos senhores dos engenhos modernos ao cantor mais famoso que anima a noite fria da razão adstringida, do corredor mais veloz que representa o país nas competições ultra-humanas à dança tradicional que compõe como adereço a abertura de um seminário pseudo-intelectual em que só o branco tem algo a dizer... em todos, o negro só aparece como corpo. Quando aparece.

É exatamente por ser corpo – e o corpo, para a empobrecida mentalidade ocidental é sempre algo que precisa estar sob vigília da mente - que o negro precisa estar em constante vigília. Ele/a é suspeito/a até que se prove o contrário, e em tempos de guerra, é o depositório principal das agressividades que são próprias de nossa sociabilidade violenta: a maioria absoluta entre os assassinados pela polícia, a maioria das mortas por causas relacionadas ao parto. Em todos os casos de linchamento, é mais uma vez o corpo negro que será dilacerado com requintes de crueldade em praça pública. No elogio ou no xingamento, o/a negro/a não é humano/a, é simplesmente coisa ou (quase) animal, nas melhores situações. E por isso, a despeito de sua corporeidade bruta e atrofia moral e racional, pode ser desejado, apropriado, assassinado, estudado, mas nunca, será como “nós”, pretensos cidadãos de bem.

O Fanon tem muito a dizer sobre o Brasil que estamos enfrentando, porque ele mostra que muitas vezes, mesmo bem-intencionados, incorremos no risco de nos atolar nas máscaras brancas colocadas pelo colonialismo. Aproxima-se muito do Marx para dizer que “quando as ideias se apoderam das massas, elas se transformam em força material”, mas ele também sabe que se a militância não estiver junto ao povo – não apenas dos saberes produzidos pelo povo, mas, principalmente, dos seus produtores – as ideias que dominarão em determinados contextos são aquelas voltadas à manutenção da ordem. Entretanto, ele alerta que o entendimento das particularidades de uma sociedade colonial exigem que a militância vá além dos saberes e práticas pensadas na Europa, e se atente à realidade social que está inserida. Não é porque o racismo não apareça como elemento central na análise marxista do capitalismo que a chamada esquerda deva desconsiderar a sua relevância para a manutenção do capital. Ao contrário, as provocações que Fanon oferecem permitem pensar inclusive na necessidade de se equacionar as dimensões coloniais da modernidade, sob o risco de se ver repetindo, sem questionamento, essas contradições no seio dos projetos alternativos à atual ordem social.

Veja amanhã continuação da Entrevista com Deivison Nkosi


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