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Entre a extrema violência e o sublime: conheça o cinema e o universo de Cláudio Assis

Pedro Costa

Entre a extrema violência e o sublime: conheça o cinema e o universo de Cláudio Assis

Pedro Costa

Neste artigo apresentaremos os longas-metragens deste diretor de Caruaru, um dos grandes nomes do cinema de Pernambuco e do país.

Sempre ambientados em Pernambuco, seja em Recife ou em alguma cidade do interior ou litoral do estado, os filmes de Assis sempre trazem uma gama de personagens muito vivas envolvidas em dramas de diversos tipos, que vão desde questões mais especificamente locais, como a condição de vida a que estão submetidas as mulheres em “Baixio das Bestas” ou do jovem que aspira ser poeta em “Big Jato”, até questões chamadas de “universais” (por mais que na prática sempre assumam formas locais específicas e concretas) como de dinâmicas humanas e relacionamentos de diversos tipos, sejam amorosos, de amizade ou familiar.

Seus filmes também têm interesse especial pela reflexão sobre a vida sexual e social de minorias, como travestis, homossexuais, mulheres gordas mais velhas, trabalhadores pobres, entre muitos outros. Também sempre estão presentes em seus filmes componentes de classe, que juntamente com questões de opressão, afligem e movem as personagens em suas relações tanto com as outras personagens quanto consigo mesmas. Além disso, o mundo do trabalho é sempre representado e é fator importante para se pensar todos os filmes.

Por último, em muitos de seus longas é tematizado e tem espaço uma reflexão própria sobre a arte, e sobretudo do cinema, reflexões que vão desde o lugar da arte em um estado fora do eixo Rio-São Paulo, com diversas regiões nas quais o arcaísmo social e econômico, assim como o patriarcado se mantém praticamente idênticos ao que eram desde os tempos de colônia, até a maneira como a contemporaneidade lida com o cinema.

Feita esta pequena introdução, passemos aos longas propriamente ditos:

Amarelo Manga

Feito em 2002, quando o diretor tinha pouco mais de 40 anos, lançado no mesmo ano no Festival do Rio, veio às telas de Recife e de todo país somente em 2003. Causou espanto e desgosto na classe média culta da cidade, que se incomodou com o filme vendo em tela um lado de Recife que prefere ignorar, de uma Recife decadente, marginalizada, de baixo e dos trabalhadores comuns. O primeiro longa de Cláudio teve muito mais reconhecimento internacional do que nacional, recebendo diversos prêmios no exterior.

O filme se passa no centro histórico da cidade, local abandonado de Recife, que é ocupado por setores das classes médias somente em épocas de carnaval. Neste primeiro longa de Cláudio acompanhamos um dia na vida de diversas personagens, ambientado sobretudo entre Texas Hotel de Seu Bianor e o bar de Lígia, personagem interessantíssima que abre e quase fecha o filme com seus monólogos olhando para a câmera.

As personagens, assim como no monólogo inicial de Lígia, são sufocadas pela rotina da vida e dos costumes locais, que as aprisionam, limitam e moldam, para que sejam, no caso dos homens não possuidores, fiéis trabalhadores, que cumpram com seus afazeres e reproduzam em suas vidas particulares a mesma lógica do mundo do trabalho, assim como diversas opressões, e no caso das mulheres, que sejam ou donas de casa submissas e com sexualidade recalcada, ou trabalhadoras objetificadas sexualmente, que serão apenas “canibalizadas” (como sugere o apelido de Wellinton) pelos homens, ou ao final, quando já estiverem velhas e gordas, serem condenadas a uma solidão cruel.

Baixio das Bestas

Filmado em 2006, mas lançado somente no ano seguinte, este é sem dúvida o longa mais chocante e forte de Assis, tanto pelas situações as quais as personagens estão expostas, brutais por si só, quanto pelas cenas fortes e bastante explícitas de violência e abuso sexual.

Filme de denúncia nas palavras do diretor, a história se passa em uma cidade sertaneja real, na divisa entre Ceará, Pernambuco e Paraíba, de nome igual ao título do filme, cidade muito pobre que tem como centro econômico o trabalho em volta da cana-de-açúcar.

Neste universo no qual convivem os trabalhadores rurais, as prostitutas, os donos de terras e os agroboys, acompanhamos a trajetória de Auxiliadora, adolescente que é prostituída pelo próprio avô, e também vemos as ações do grupo dos filhos dos ricos do agronegócio, chefiado por Everardo, o mais perverso do grupo. Descrito por Matheus Nachtergaele, ator que interpreta Everardo, essa personagem é “um nada ansiando por ser ninguém, que havia uma filosofia para nada e que havia formatado uma liderança para lugar nenhum”

No meio deste cenário de tanta miséria social, entre os trabalhadores da cana surge no filme a única coisa bela daquele lugar, o Maracatu rural, amado pelos peões e desprezado completamente por seu Heitor, autoridade moral da cidadezinha que elabora em chave conservadora uma decadência por ele vista na cidade e no mundo, no qual o grande problema estaria “falta de Homem”, problema que teria solução principalmente pela via do trabalho (dos outros, obviamente).

Se em “Amarelo Manga” há uma certa imobilidade e repetição eterna do cotidiano vivida pelas personagens, em “Baixio das bestas” a imobilidade é ainda maior, chegando inclusive ao paroxismo, sendo agoniante e revoltante para o espectador, que assiste aos créditos finais incrédulo em relação ao que acabou de ver.

A Febre do Rato

Produzido em 2011 e lançado em 2012, este filme monocromático, único do diretor, é ambientado na periferia de Recife, entre mangues e favelas, no qual convive um grupo de anarquistas encabeçado por Zizo, poeta, artista, pixador e editor de um jornal de nome “Febre do Rato”.

A expressão que dá título ao filme, comum em Recife e em locais do Nordeste, mas desconhecida em outras regiões, “febre do rato”, tem sentido de algo que está fora do controle, título que por si só já descreve aquele grupo, composto por pessoas que vivem e convivem à margem do controle das normas e regras instituídas pela gramática social e sexual da burguesia, estabelecendo entre eles, por exemplo: relação profunda e duradoura entre uma travesti e um homem, relações não-monogâmicas, sexo na 3ª idade, entre outras formas não-normativas de relacionamento.

Filme mais bonito de Assis, “A Febre do Rato” é repleta de poesia e beleza, que vão desde a fotografia, as representações e relações entre as personagens, até poemas propriamente ditos, recitados por Zizo. O longa tem uma sensibilidade muito grande para a forma com que se dão os relacionamentos no capitalismo e as possibilidades (e impossibilidades) de serem diferentes em camadas menos aburguesadas da sociedade.

Big Jato

Feito em 2015 e lançado em 2016, apesar da semelhança do título e da coincidência histórica, o longa não tem nada a ver com a golpista Operação Lava Jato.

Baseado em livro homônimo de Xico Sá, este é o filme mais “infantil” do diretor, narrado pelo já adulto Francisco, acompanhamos sua transição entre a vida de criança e de adulto, no qual o menino se encontra dividido entre estudar matemática, desejo do pai, e ser poeta, sonho incentivado por seu tio Nelson, locutor de rádio local, e por um amigo do garoto que se auto intitula Príncipe. A história se passa na cidade de Peixe de Pedra, que como diz Nelson em dado momento “fossiliza em vida seus habitantes”.

Com planos próximos e uma fotografia saturada, este filme constrói um retrato íntimo, desavergonhado e em certa medida acolhedor da juventude. Diferentemente dos filmes sobre jovens, que em grande medida busca educá-los, Big Jato defende a experimentação, apresentando o jovem sem vícios e cacoetes que os mais velhos não conseguem se livrar.

Piedade

Lançado primeiro em 2019, depois relançado no Festival de Brasília em 5 de agosto de 2021, o último longa feito até o momento por Assis, produzido no Brasil de Bolsonaro e no regime pós golpe, traz pela primeira vez em seus filmes a figura do grande capital estrangeiro, na empresa multinacional imperialista da Petro green, encarnada sobretudo em Aurélio, ótimo orador paulista que representa comercialmente a empresa e que está acostumado convencer moradores de terrenos interessantes para a petrolífera a vender suas terras.

Aurélio vai até a praia de Piedade para tentar comprar o estabelecimento de Carminha e Omar Sharif, mas encontra dificuldades devido à informação que Omar obtém a partir da internet, vendo as toneladas de processo que a empresa acumula. A cidade de Piedade, que um dia já foi um ponto turístico de Pernambuco, depois da chegada da multinacional passou a ter suas praias invadidas por tubarões (à la porto de suape e os tubarões de Recife), e assim a vida de muitas famílias muda drasticamente e a cidade tem uma miséria social cada vez mais crescente.

Em meio a tudo isso, Aurélio descobre uma tragédia familiar daquelas pessoas que utilizará como moeda de troca para conseguir seus objetivos.

Neste drama social vemos as consequências da chegada da mão pesada do poder privado internacional no litoral pernambucano, espaço totalmente abandonado pelo poder público no qual os moradores ficam entregues à própria sorte, enquanto suas vidas são cada vez mais definidas pelas vontades dos imperialistas.

Como qualquer filme de Assis, Piedade traz de forma natural e sem tabu o tema da sexualidade, trazendo também mais uma vez uma reflexão sobre cinema, e nesse caso sobre sua própria produção, uma vez que Sandro em seu cinema pornô/ “motel” assiste a “Baixio das bestas” na telona.

Comentário final

Tratando-se dos longas desse diretor, algumas coisas que não poderia deixar de comentar são as atuações brilhantes de Matheus Nachtergaele, que atua nos 5 filmes fazendo ao todo 6 personagens que são irreconhecíveis entre si. As atuações impagáveis de Irandhir Santos, presente em 4 dos 5 longas, que também merece ser mencionado aqui, assim como os roteiros incríveis de Hilton Lacerda, que trabalhou com Assis em todos os seus filmes.

O universo de Assis compõe um mosaico ímpar de personagens pernambucanas, que com sua força e especificidades, juntamente com as tramas que estão envolvidas, sempre ligadas a problemas sociais, econômicos e políticos bastante verdadeiros e tratados de forma muito sensível, fazem com que seus filmes assumam um caráter de relevância singular para se compreender Pernambuco, com sua decadência, atraso, aparente eterna paralisia e reprodução do mesmo, sendo de grande valia não apenas para quem pretende conhecer mais esse estado nordestino, mas também todo o Brasil, uma vez que seus filmes refletem profundamente sobre questões estruturais de um dos estados mais antigos e que já foi economicamente o estado mais importante do país.

Além do aspecto comentado no parágrafo anterior, as personagens vivas de Assis, com diversas personalidades e caracteres, junto com os dilemas vividos por eles, superam a mera encenação de um “regionalismo”, visão com a qual a classe dominante condena no geral os filmes fora do eixo Rio-São Paulo, marginalizando-os e tratando-os como menos relevantes. Na medida que rompe com esse regionalismo e em suas histórias as personagens vivem dilemas que transcendem a mera especificidade local, seus filmes assumem um caráter também universal.

No meio da barbárie da cidade de Baixio das Bestas, vemos surgir beleza ímpar do maracatu rural. Na relação truncada e única de Zizo com Eneida (que não por acaso tem nome de epopéia), assim como na de vários personagens de “A Febre do Rato” enxerga-se a beleza das infinitas possibilidades que as relações entre diferentes pessoas pode assumir, com a encantadora singularidade de cada um. Em “Big Jato”, na atrasada Peixe de Pedra, no fogo cruzado de diversas violências e opressões, e com o quase realismo fantástico do filme, vislumbramos a sutil singeleza do olhar acolher a juventude. Os filmes de Assis, se são sim carregados de muita violência de diversos tipos, violência que brutaliza, oprime e molda em grande medida as personagens e suas vidas, também têm lampejos de Sublime, nas quais contemplamos muitas verdades sociais e das relações.


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