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CINEMA E AUTORIA | Em defesa do cinema de autor

Hoje em dia a câmera não só é leve como cabe no bolso da calça. Já ficou muito manjado afirmar que atualmente filmar, editar e circular a produção audiovisual tonou-se uma tarefa fácil, virou brincadeira de criança. A criação audiovisual é um fato consolidado no mundo contemporâneo. Entretanto, não podemos dizer o mesmo em relação a um sólido pensamento cinematográfico.

quarta-feira 9 de setembro de 2015 | 23:02

Se quisermos ilustrar a questionável denominação de esquerda para os governos Lula e Dilma, basta remetermo-nos ao cinema brasileiro produzido durante estes governos: filmes conservadores, extensões de programas de televisão e um culto aos componentes da linguagem cinematográfica hollywoodiana. Ou seja, estes governos "de esquerda" não assistiram ao surgimento de um cinema revolucionário. É claro que existe um cinema de resistência espalhado em nosso país, inclusive na internet e em pequenos circuitos. Afim de que esta produção se fortaleça culturalmente é que o cinema de autor surge como estratégia de reaproximação dos cineastas com o pensamento político revolucionário.

As transformações técnicas da era digital não podem se contentar com o servilismo estético presente nas centenas de vídeos que circulam por aí. As profundas reviravoltas tecnológicas dentro dos meios de produção nos últimos dez anos apontam historicamente para um fato político: os realizadores não são um clubinho fechado, mas centenas de trabalhadores que são autores em potencial e portanto podem (e devem) se expressar por meio do cinema. Cinema? Não seria vídeo? Como já tive a oportunidade de ressaltar em outra ocasião, a tecnologia define o suporte, mas o cinema enquanto linguagem está para além do suporte utilizado. Filmar, assim como pintar e escrever, é um terreno autoral, portanto radicalmente oposto ao processo de massificação (no qual o cinema comercial foi e é um tentáculo ideológico). A militância cultural revolucionária só pode responder às exigências técnicas e políticas do nosso tempo pelo projeto do cinema de autor. Esta concepção cinematográfica, muito em voga nos anos sessenta, continua a ser uma resposta política à espera de uma releitura programática.

O cineasta que reconhece na postura autoral não uma saída estilística, mas política, é aquele que não aceita a devastação mental orquestrada pelo capital. Contra o embuste que faz os cineastas de classe média acreditarem que o cinema só existe em função das leis de mercado, a postura autoral afirma-se enquanto perspectiva transformadora. O campo de liberdade pessoal do cinema de autor não pode, para os militantes de esquerda, confundir-se com esteticismo barato e falta de compromisso. Glauber Rocha foi pioneiro em politizar as implicações criadoras do cinema de autor. Para Glauber, a História do cinema não poderia ser dividida entre “mudo" e “falado", mas sim em comercial e autoral. O cinema de autor em suas potencialidades políticas não rompe apenas com procedimentos formais do cinema comercial. A perspectiva autoral rompe mais amplamente com os interesses das multinacionais, calcados na economia de mercado. Ao compreender e praticar um cinema revolucionário, o cineasta não se depara mais com a falsa dicotomia entre “cinema de arte" e “cinema comercial"; categorias estas em que a divisão não se dá por razões ideológicas mas pela “lógica de prateleira" estabelecida pelas grandes corporações capitalistas.

Para a crítica cinematográfica atual, em grande parte despolitizada e imersa em espasmos liberais, as expressões cult, alternativo, underground, independente são palavras vazias que não podem rezar fora do templo capitalista. Isto é, o cinema só poderia existir em sua diversidade estética dentro das imposições do mercado. Para o cinema de autor não ser o primo pobre da indústria, o cineasta precisa fazer uma opção de classe: o cifrão que castra a linguagem cinematográfica é o mesmo que explora a classe trabalhadora. Optando pelo proletariado, o autor cinematográfico busca novas formas de raciocínio visual para combater o cinema comercial e imperialista.

A formação liberal de muitos profissionais na área do audiovisual impede o contato mais aprofundado com estéticas revolucionárias. Sem contar que as contas no final do mês e o feijão no prato não podem ser pagos se o trabalho do cineasta se der fora das relações capitalistas de produção. Porém, se é preciso vender a força de trabalho para sobreviver, a militância audiovisual enquanto parte dos movimentos sociais não é excludente na vida do cineasta trabalhador. Uma poderosa empresa capitalista não vai querer a sua imagem vinculada a filmes revolucionários, que denunciam a miséria e criam formas livres de comunicação. Sendo assim, paralelamente às exigências econômicas de sobrevivência, o trabalho do cinema de autor precisa ser feito dentro da esquerda revolucionária enquanto esforço cultural em torno do proletariado.

Este caráter político do cinema de autor hoje, acaba por levantar o sentido da profissão do cineasta: estamos falando do profissional burguês que almeja prêmios e recordes de público ou do cineasta militante, fiel às suas determinações interiores e seu compromisso com os trabalhadores? Aliás, é preciso que o trabalhador se reconheça como cineasta. Da mesma maneira que a militância de esquerda precisa formar jornalistas, professores, romancistas, atores, etc, precisa formar cineastas dispostos a fazerem da câmera uma ferramenta de trabalho a serviço da emancipação humana.

Esta breve defesa do cinema de autor em plena realidade digital (que impulsiona o autor) estaria incompleta se não fosse levantado o problema do público. A ideia de “público" é geralmente usada por cineastas reacionários para se fazer filmes comercialescos, afinal “é o que o público quer assistir". Certo? Errado: um público progressista não surge aleatoriamente a partir de uma experiência unilateral com o filme. Este público só pode ser formado dentro de um processo histórico que conta com a mobilização de movimentos políticos e culturais que atuam pela gestação de uma cultura revolucionária: escola, teatro, literatura, música e os mais variados campos da produção cultural aonde o cinema de autor torna-se ponta de lança. O público que o cineasta revolucionário quer não é formado por consumidores passivos mas por trabalhadores em luta.


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Cinema    Cultura



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