×

MORRE EDUARDO GALEANO | Eduardo Galeano: Uma escrita deliberadamente apaixonada

Morreu ontem, aos 74 anos, o escritor uruguaio Eduardo Galeano. Dentre suas obras, a mais famosa é "As veias abertas da América Latina", um best-seller da década de 1970, que até hoje é um livro muito lido. A linguagem que Galeano busca em suas obras é acessível, com humor e, acima de tudo, militante. Ele buscou sempre escrever para os oprimidos da sociedade e a partir de seu ponto de vista, buscando combater as injustiças sociais, num primeiro momento, voltado à América Latina, depois, em qualquer parte do mundo em qualquer tempo histórico.

Camila FarãoSão Paulo

terça-feira 14 de abril de 2015 | 00:00

"E a gente se pergunta: que imagem deslumbrante se erguerá no final dos séculos de medo, quando a realidade deixar de ser um mistério e a esperança um consolo? Quando o poder for de todos e a palavra também, nossas terras, o que dirão?"

- E. Galeano."Ser Como Eles"

Foi muito criticado, principalmente pelos intelectuais de direita, por causa do seu estilo. Tratado como maniqueísta, raso e não-científico, pouco foi falado sobre sua obra de uma forma crítica. Porém, inegavelmente, é adorado e reinvindicado por aqueles que lutam e resistem ao capitalismo (até mesmo por políticos oportunistas que, visto a dimensão de sua obra, tentam cooptá-las).

Para Galeano, modificar a linguagem é um ato de resignificação histórica. Contar o mesmo acontecimento, mas do ponto de vista do oprimido. Ele diz:

"A história oficial está contada a partir dos, pelos e para os ricos, os brancos, os machos e os militares. A Europa é o Universo. Pouco ou nada aprendemos do passado pré-colombiano da América e, quanto ao da África, melhor nem falar: o conhecemos somente através dos velhos filmes de Tarzã. A história da América, a verdadeira, a atraiçoada história da América, é uma história da dignidade incessante. Não existe um só dia do passado no qual não haja ocorrido algum ignorado episodio de resistência contra o poder e o dinheiro, mas a história oficial não menciona as sublevações indígenas nem as rebeliões de escravos negros, ou as menciona de esbarrão, quando as menciona, como episódios de mau comportamento – e jamais diz que algumas foram encabeçadas por mulheres."

Se para muitos intelectuais Galeano não tem importância, entre a esquerda sua relevância é notória. Sua influência abrangeu também os diversos setores do populismo, do nacionalismo burguês e da burocracia castrista cubana, que, mesmo sem defender consequentemente os explorados e oprimidos, viram em seu discurso um reforço de sua retórica anti-imperialista. Galeano entrevistou o guerrilheiro Cesar Montes nas selvas da Guatemala. Cuba lhe ofereceu duas vezes o prêmio “Casa de las Américas” e a Lannan Foundation o ofereceu o "Cultural Freedom Prize"; Galeano realiza a abertura do Festival Internacional “Chile Cria”, criticando o militarismo em plena ditadura do Pinochet. Participa do “Primeiro Encontro Internacional pela Humanidade e contra o Neoliberalismo”, convidado pelos zapatistas; esteve no Fórum Social Mundial em 2001. Dentre os governos pós-neoliberais, que, mesmo mantendo a política do capital sempre procuraram se camuflar sob uma camuflagem anti-imperialista, destaca-se Evo Morales, que o convidou para discursar na sua cerimônia de posse na Bolívia; e também Hugo Chávez, que deu seu livro "As veias abertas da América Latina" de presente para Barack Obama. Este reconhecimento, mesmo quando usado por puro oportunismo político, atesta sobre a popularidade de sua obra tanto entre os setores de esquerda, como os nacionalistas burgueses e populistas de retórica anti-imperialista.

A América Latina também é retratada em "Memória do Fogo", porém, a partir de "O Livro dos Abraços" (1989) Galeano decide, num ato de ousadia, retratar todas as formas de opressão e as lutas emancipatórias que ocorreram em todos os tempos e em todos os lugares. Assim ele cria "De pernas pro ar: a escola do mundo ao revés" (1999), "Bocas do Tempo" (2004) e "Espelhos: uma história quase universal" (2008).

Nesta última obra pequenas histórias são contadas através de personagens como Gandhi, Luther King, Jesus, Maome, Buda, São Francisco de Assis , Marx, Lenin, Trotski, Thomas Morus, Cervantes, Quixote, Tupac Amaru, Zumbi dos Palmares, Toussaint L`Ouverture, Mao Tsé-Tung, Ho Chi Minh, Bolivar, Zapata, José Marti, Guevara, Fidel, Allende, Lumumba, Sankara, Mandela, Rosa Parks, Rosa Luxemburgo, Rigoberta Menchu, os levantes indígenas, os panteras negras, as feministas, os sem-terra, as mães da praça de maio...

Galeano sempre se colocou ao lado dos oprimidos, este foi o seu grande recorte político. Contudo, apresentou uma visão política eclética e por vezes confusa. Assim, ele aprovou Chávez, um governo burguês de retórica nacionalista. Mas também declarou seu apoio a lutas fundamentais contra o imperialismo, como da Palestina contra o Estado de Israel. Ele podia ora ser mais progressista, ora mais populista, porém, o que sempre foi coeso dentro de sua obra foi sua militância literária.

Esta tentativa de resignificar a história pela ótica dos oprimidos, sem medo de parecer parcial, ao mesmo tempo com imagens fortes que nos fazem sofrer com as mazelas da classe dominante, como nessa passagem:

"Terra que arde. Na madrugada do dia 13 de fevereiro de 1991, duas bombas inteligentes arrebentaram uma base militar subterrânea num bairro de Bagdá. Só que a base militar não era uma base militar. Era um refugio, cheio de gente que dormia. Em poucos segundos, converteu-se numa grande fogueira. Quatrocentos e oito civis morreram carbonizados. Entre eles, cinquenta e duas crianças e doze bebês. O corpo inteiro de Khaled Mohamed era uma chaga ardente. Achou que estava morto, mas não. Abrindo caminho, apalpando, conseguiu sair. Ele não enxergava. O fogo havia grudado suas pálpebras. O mundo também não enxergava. A televisão estava ocupada exibindo os novos modelos das maquinas de matar que aquela guerra estava lançando no mercado."

Essa visão apresentada pelo autor faz com que a leitura de sua obra seja, assim como sua própria escrita, apaixonante. Quando lemos Galeano, sentimos nossa história individual se ligar à história dos rebeldes indígenas, escravos, das mulheres etc., Nos sentimos como um corpo só contra o poder que nos oprime. Nos unimos pela dor, pelo humor, pela vontade de justiça, a outros leitores.

Finalizo com uma homenagem à sua escrita apaixonada e combativa, que expressa um pouco da sua visão sobre a História e a escrita, quando coloca o escravo, sempre contado como objeto na História, com uma subjetividade, propósitos e sentimentos, do trecho "Memória do Fogo":

"A Liberdade

Há muito apagaram-se os latidos dos cães de caça e as trombetas dos caçadores de escravos. O fugitivo atravessa o campo, montes de palha brava mais altos que ele, e corre para o rio. Atira-se no campo de boca para baixo, os braços abertos, as pernas abertas. “Não sou uma coisa. Minha história não é a história das coisas”. Beija a terra, morde a terra, abraça a terra ternamente. Gruda seu corpo nu contra a terra molhada de orvalho e escuta o rumor das plantinhas ansiosas de nascer. Está louco de fome e pela primeira vez a fome é uma alegria. Tem o corpo todo cortado e não sente esses cortes. Vira para o céu, como se pudesse abraçá-lo. A lua sobe e brilha e o golpeia, violentos golpes de luz, pinceladas de luz de lua cheia e as estrelas suculentas, e ele ergue-se e busca o rumo. - Também vais a Palmares? – Pergunta o fugitivo para a formiga que anda em sua mão, e pede: - Me guia."




Comentários

Deixar Comentário


Destacados del día

Últimas noticias