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LENIN | Do “velho” ao “novo” bolchevismo: o começo do giro radical de Lenin em 1917

Primeira parte. Com as “Cartas do longe”, Lenin começa a propor uma mudança dramática na estratégia bolchevique, rearmando teoricamente o partido para a conquista do poder.

quarta-feira 5 de abril de 2017 | Edição do dia

Há um mito interessado que diz que o Partido Bolchevique foi uma organização monolítica, de pensamento único, guiada infalivelmente ao longo de duas décadas por Lenin e com uma base militante que obedecia cegamente aos ditados do líder. O tempo que transcorre entre as origens bolcheviques em 1903 e a tomada do poder em Outubro de 1917 não seria mais do que uma marcha constante, sem fissuras, do líder ao objetivo final. Esse mito foi difundido, com fins opostos, tanto pelas histórias oficiais soviéticas após o triunfo da burocracia stalinista (é significativa inclusive a exceção do historiador soviético Eduard Burdzhalov, o qual, no final da década de 1950, foi duramente sancionado por mostrar, com honestidade histórica, as vacilações dos bolcheviques no início de 1917), como pela propaganda anticomunista ocidental.

O “rearmamento” do Partido Bolchevique

A voz solitária que se alçou desde o começo, completamente contra a corrente, contra este “relato”, foi ninguém mais ninguém menos do que um de seus principais protagonistas, León Trotski. Muitas décadas depois, uma camada de acadêmicos ocidentais que teve acesso aos arquivos soviéticos puderam comprovar e corroborar isso, embora na atualidade esteja se desenvolvendo um debate entre historiadores anglo-saxões especialistas no tema relacionados à revista Historical Materialism (http://www.historicalmaterialism.org/), desafortunadamente indisponível em português, sobre se o bolchevismo chegou plenamente armado à revolução de 1917 e relativizando as polêmicas das Cartas do longe e as Teses de Abril, ou se efetivamente essas polêmicas dão conta de uma importante reorientação estratégica.

Tomando partido por essa última opção, amparada em uma copiosa documentação e memórias de testemunhos, parece-nos que os bolcheviques não chegaram completamente armados, ideológica e estrategicamente, à revolução de 1917, com seus contornos teóricos completamente definidos de antemão. Não há uma continuidade sem mais entre o passado bolchevique e 1917, e sim uma dialética complexa de continuidade e ruptura, de preservação à qualidade revolucionária de um partido contemplado como nenhum outro na luta revolucionária e na intransigência contra a colaboração com a burguesia liberal, enquanto que de superação de velhas concepções “dogmáticas” que contribuem para que o partido não estivesse, todavia, à altura das circunstâncias. Lenin chamava essas antigas concepções revolucionárias que já haviam passado sua época e que se fazia imprescindível superar com o nome de “velho bolchevismo”.

As “Cartas do longe” escritas por Lenin desde seu exílio suíço, enquanto tratava incansavelmente de voltar à Rússia, são o primeiro marco nesse giro radical, em abandonar o “velho bolchevismo” e rearmar estrategicamente os bolcheviques para encarar a tomada de poder pelos sovietes. O outro passo nesse sentido foram suas Teses de Abril, sobre as quais escreveremos mais adiante. Nas Cartas de longe, com sua redefinição teórica, está o pontapé, os primeiros passos de uma elaboração teórica maior, que será o grande projeto teórico que escarará Lenin sob o fogo do ano revolucionário de 1917: sua obra “O Estado e a revolução” (neste ano, estamos celebrando também, por conseguinte, o centenário dessa obra de Lenin). Vamos explicar mais adiante essa relação entre as Cartas e uma das principais grandes obras do revolucionário russo.

As cartas eram dirigidas a seu próprio partido, o bolchevique, e as enviou em mãos por meio de Alexandra Kollontai para serem publicadas na imprensa de sua organização. Entretanto, no período que vai da Revolução de Fevereiro (8 de Março de 1917) ao retorno de Lenin à Rússia (16 de Abril de 1917, segundo o calendário ocidental), os bolcheviques se encontram, a princípio, desorientados, e logo, com a chegada a Petrogrado de Kamenev e Stálin, dirigentes do Comitê Central, giraram à direita, a uma posição próxima aos mencheviques (inclusive tentaram se fundir em uma mesma organização com eles) e de “apoio condicional” ao governo liberal surgido de Fevereiro. Como as Cartas de Lenin continham uma orientação diametralmente oposta a essa, o Pravda, em mãos da direita bolchevique de Kamenev, publicará unicamente a primeira carta, e ainda assim, cortada.

As três concepções da revolução russa

Enquanto isso, temos de explicar do que se tratava o “velho bolchevismo” que é superado pelo que poderíamos chamar de um “novo bolchevismo”, que não por um acaso incorpora León Trotski a suas fileiras, após anos de ásperas polêmicas.
As duas alas da socialdemocracia russa, bolcheviques e mencheviques, sustentaram desde suas origens que a revolução russa estaria dividida em duas grandes etapas separadas entre si por um longo período de desenvolvimento: uma primeira etapa, democrático-burguesa, e uma segunda etapa, socialista. Para fins práticos, as duas tendências esperavam e se preparavam para a primeira etapa, burguesa, da revolução. Essa ideia era considerada parte inquestionável da “ortodoxia” marxista, não apenas na Rússia, mas em todo o movimento socialista internacional; a saber, que um país atrasado e com um proletariado minoritário - como a Rússia - estava imaturo para o socialismo. O único em desafiar esse “dogma” foi León Trotski, quem já desde 1905 defendia que na Rússia, como parte integrante do sistema mundial capitalista, as tarefas imediatas da revolução seriam burguesas, mas que estas, levadas a cabo por uma ditadura do proletariado apoiado nos camponeses, combinariam-se rapidamente com as primeiras tarefas da revolução socialista, conferindo à revolução um caráter permanente e não rigidamente dividido em etapas históricas independentes.

A partir do acordo no caráter burguês da revolução russa, bolcheviques e mencheviques se colocavam estratégias diferentes. Os mencheviques defendiam que, portanto, a burguesia deveria dirigir “sua” revolução e formar um governo provisório revolucionário próprio, no qual os socialistas não deveriam de nenhum modo participar nem se comprometer politicamente com ele, mas exercendo uma “oposição revolucionária extrema”, que na realidade implicava uma pressão desde fora para empurrar a burguesia adiante, mas deixando sempre a direção da revolução nas mãos desta última classe. Pelo contrário, os bolcheviques contemplavam a possibilidade de participar em um governo provisório revolucionário junto com os camponeses (que Lenin resumia na fórmula “ditadura democrática dos operários e camponeses”) para que a classe operária dirigisse a revolução burguesa e convocasse uma Assembleia Constituinte verdadeiramente democrático-radical, levando a revolução até o final, algo que a própria burguesia não poderia fazer e que os setores intermediários, por si só, vacilariam. Uma vez que a revolução burguesa se consumasse radicalmente e o capitalismo estivesse em condições de desenvolver-se de forma plena na Rússia, sem travas nem vícios feudais, os bolcheviques se retirariam do governo e passariam a exercer a oposição extrema para preparar a etapa socialista da revolução.

Este último esquema bolchevique acabou por ser definido durante a revolução de 1905, no congresso que realizaram em Maio desse ano em Londres. Posteriormente, com o surgimento dos primeiros sovietes operários, em outubro desse ano, Lenin daria valores mais concretos à sua ideia de governo provisório revolucionário, e defenderia que essas organizações de democracia direta seriam o embrião do tal governo. Entretanto, a revolução foi derrotada em Dezembro pela reação czarista e não se estabeleceria nenhum governo desse tipo, de maneira que tal hipótese estratégica não foi posta à prova nesse momento.

Agora, diante do fato concreto do triunfo da Revolução de Fevereiro de 1917, os socialistas tomaram posições relacionadas com essa bagagem teórica, embora, particularmente no caso dos dirigentes bolcheviques, interpretando-a de maneira tal que Lenin considera como um dogmatismo estéril que localiza frequentemente o próprio por fora da vanguarda operária e das necessidades da revolução.

Nas próximas elaborações aprofundaremos isso em relação ao conteúdo das cartas.

Tradução: Vitória Camargo




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