×

TEORIA | Dialética e marxismo: Engels e o Anti-Dühring

Continuamos a série de marxismo e dialética passando sobre a abordagem da questão no clássico livro de Friedrich Engels.

terça-feira 30 de agosto de 2016 | Edição do dia

Ainda que tenha sempre se mantido em um segundo plano em relação a Marx, o trabalho teórico, organizativo e de divulgador de Engels teve uma importância primordial tanto para o desenvolvimento do materialismo histórico como do movimento operário moderno.

Durante as três últimas décadas do século XIX dedicou parte de seu trabalho teórico a polemizar com os adversários da concepção materialista da história assim como a sistematizar algumas das ideias relativas a seus fundamentos, na tentativa de unir a teoria revolucionária com o movimento da classe trabalhadora.

A ele se devem textos como o Anti-Dühring (1878), Ludwig Feuerbach e o fim da filosofia clássica alemã (1888) ou os rascunhos de Dialética da Natureza, obra publicada postumamente e não durante a vida de Engels. Nestas linhas nos referiremos especialmente ao primeiro texto.

Anti-Dühring, que passou para a história como uma espécie de manual de marxismo, é na realidade uma obra polêmica. Seu objetivo era demonstrar a inconsistência das “doutrinas” de Eugen Dühring (1833-1921), que rivalizava com o marxismo e propunha um “socialismo” contrário à luta de classes e baseado em uma teoria eclética que combinava o materialismo mecanicista, o idealismo e o positivismo. Buscando combater esta corrente que tinha conseguido certa influência no interior do próprio Partido Operário Socialdemocrata alemão (fundado em 1875), Engels realizaria uma série de contribuições sobre a dialética.

No “Velho Prólogo” ao Anti-Dühring, que costuma estar entre os apêndices da obra, Engels destacava que o potente desenvolvimento das Ciências Naturais, do qual ele foi contemporâneo, colocava a necessidade de superar os limites do pensamento formal assim como de ordenar desde o ponto de vista teórico os resultados das pesquisas científicas. Assinalava também que a decadência filosófica alemã destes tempos, nos quais surgiam tentativas como as de Dühring, não poderia oferecer um ponto de apoio aos naturalistas, dado que estava inclusive muito para trás dos filósofos antigos como Leucipo ou Epicuro.
Engels considerava que havia duas variantes principais de pensamento dialético na história da filosofia.

Uma era a dos antigos gregos, da qual Engels realiza uma avaliação paradoxal e sugestiva. Por ser resultado da contemplação imediata, as ideias dos antigos gregos sobre os fenômenos naturais não se baseavam no isolamento de certos detalhes nem na busca de princípios por fora do mundo físico, senão que na compreensão da natureza como um todo em seus traços gerais. Assim, Engels assinala que em suas elaborações filosóficas iniciais, os gregos haviam antecipado certos desenvolvimentos que depois a ciência moderna realizaria, como a atomística.

A outra variante que Engels destacava era, como é previsível, a dialética própria da filosofia clássica alemã desde Kant até Hegel, à qual nos referimos nos artigos anteriores desta série.

Engels apontava a necessidade de que os cientistas se aproximassem conscientemente do enfoque dialético assim como a de que o movimento socialista adquirisse também uma sólida base teórica, incorporando aquilo que Marx (e o próprio Engels) tinham buscado resgatar da dialética de Hegel.

Referindo-se especificamente à dialética, Engels contrastaria a afirmação de Dühring de que a contradição era uma categoria exclusivamente da lógica e que não poderia haver contradições na realidade:

“Enquanto contemplamos as coisas como em repouso e sem vida, cada uma para si, junto às outras e depois das outras, não tropeçamos, certamente, com nenhuma contradição nelas. Encontramos certas propriedades em parte comuns, em parte diferentes e até contraditórias, mas neste caso separadas entre coisas diferentes, e sem conter, portanto, nenhuma contradição. Na medida em que se estende este campo de consideração, nos basta, consequentemente, o comum modo metafísico de pensar. Mas tudo muda completamente quando consideramos as coisas em seu movimento, sua transformação, sua vida, e em suas recíprocas interações. Então tropeçamos imediatamente com contradições. O próprio movimento é uma contradição; o simples movimento mecânico local já não pode acontecer senão porque um corpo, em um e no mesmo momento do tempo, se encontra em um lugar e em outro, está e não está em um mesmo lugar. E a contínua posição e simultânea solução desta contradição é precisamente o movimento”.

Engels demostrava por sua vez a incompreensão da dialética por Dühring, quando polemizava contra a caricatura que este realizava da explicação marxiana da transformação de dinheiro em capital, como produto da “confusa e nebulosa lei hegeliana da transformação da quantidade em qualidade”.

“Na página 313 (da segunda edição de O Capital) Marx infere de sua precedente investigação sobre o capital constante e variável e sobre a mais-valia a consequência de que ‘não toda soma qualquer de dinheiro ou valor é transformável em capital, senão que para esta transformação é preciso pressupor a existência de um determinado mínimo de dinheiro ou valor de troca nas mãos do proprietário particular de dinheiro ou mercadorias’. Marx põe então como exemplo que em algum ramo do trabalho o trabalhador trabalhe oito horas ao dia para si mesmo, ou seja, para a produção do valor de seu salário, e as quatro horas seguintes para o capitalista, para a produção de mais-valia que vai, imediatamente, ao bolso deste. Neste caso alguém tem que dispor de uma soma de valor que lhe permita pagar a dois operários matéria-prima, meios de trabalho e salário, para obter diariamente a mais-valia necessária para viver como um de seus trabalhadores. E como a produção capitalista não tem como objeto a mera manutenção, senão o aumento da riqueza, nosso homem com seus dois operários não seria ainda um capitalista. Só para viver duas vezes melhor que um trabalhador comum e para retransformar em capital a metade da mais-valia produzida teria que já poder empregar oito trabalhadores, ou seja, possuir o quádruplo do total de valor antes suposto. E só depois disto, e no curso de outras indicações mais, destinadas a esclarecer e fundar o fato de que não toda pequena soma de valor pode se transformar em capital, senão que para cada período do desenvolvimento e para cada ramo industrial existem limites mínimos determinados, observa Marx: ’Aqui, como na ciência da natureza, se confirma o acerto da lei descoberta por Hegel em sua Lógica, segundo a qual mudanças meramente quantitativas mudam em um determinado ponto em diferenças qualitativas.’”

Engels golpeava sobre um argumento “forte” de Dühring que curiosamente seria reproduzido por muitos antidialéticos. Este argumento pode ser resumido do seguinte modo: ao tomar, ainda que seja criticamente, a dialética de Hegel, Marx havia substituído as explicações dos processos concretos pela introdução forçada de um método exterior aos fatos mesmos, de modo tal que, por exemplo, a transformação de dinheiro em capital não constituía um movimento que em suas características se assemelhava à ideia abstrata da transformação da quantidade em qualidade, senão que era o resultado desta lei tomada como um a priori.

O mesmo procedimento Dühring realizaria ao tentar apresentar a noção dialética de “negação da negação” como uma “parteira” da história que na perspectiva de Marx permitiria transitar desde a acumulação originária do capital até o comunismo por meio de um processo de “negações” das distintas formas de propriedade da qual a expropriação dos expropriadores seria o resultado automático.

Engels cita profusamente O Capital, a fim de demonstrar que Marx reconstrói o processo histórico que senta as bases para a futura expropriação dos capitalistas, mas buscando explicar o processo mesmo em sua dinâmica intrínseca e que esta dinâmica se dá de uma forma prevista por uma “lei” dialética mas não porque esta seja uma lei a priori:

“... ao caracterizar o processo como negação da negação, Marx não pensa, em absoluto, em que com isto possa se provar que o processo é historicamente necessário. Antes o contrário: depois de ter provado historicamente que o processo aconteceu efetivamente em parte e que em parte tem que acontecer, o caracteriza por consequência como processo que se realiza segundo uma determinada lei dialética. Isto é tudo”.

O Anti-Dühring seria um texto de suma relevância na formação das posteriores gerações de marxistas, mais por seu caráter de “compêndio” de um conjunto de discussões sobre ciência, filosofia, economia política e história, que pelas razões polêmicas que lhe deram origem. Seu impulso polêmico e muitas de suas ideias marcaram a geração seguinte de socialistas assim como o marxismo do século XX, no qual haveria múltiplas controvérsias sobre o legado teórico de Engels.

Quanto ao tratamento da questão da dialética, um de seus principais méritos consiste em ressaltar a crítica ao apriorismo, à dinâmica “imanente” dos processos históricos e sociais (ou seja, que estes não obedecem a causas exteriores transcendentes senão que têm em sua própria dinâmica interna as razões de seu desenvolvimento) e o caráter análogo e aproximativo das relações entre os processos e as “leis” cujas formas se parecem mas não são idênticas.

Tradução: Francisco Marques


Temas

Teoria



Comentários

Deixar Comentário


Destacados del día

Últimas noticias