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TEORIA | Dialética como apreensão dos movimentos próprios da realidade

"Tudo flui"
Heráclito de Éfeso

"O ser é, o não ser não é"
Parmênides de Eleia

sábado 8 de agosto de 2015 | 01:06

Na história da filosofia antiga a contradição entre os aforismos que marcam de forma central o pensamento desses dois filósofos pré-socráticos será um momento de crise que posteriormente marcará toda história da filosofia. De Platão a Aristóteles, de Kant a Hegel, um dos problemas centrais da filosofia e teoria do conhecimento será resolver a contradição entre uma realidade em constante transformação, em constante fluidez, e a necessidade de o pensamento formular conceitos que apreendam o que se mantém constante nesse permanente devir.

Em seus paradoxos Zenão, discípulo de Parmênides, tentará mostrar como a constante fluidez da realidade entra em contradição direta com a rigidez dos conceitos. Concluirá, então, que a realidade é mera aparência, frente a verdade do conceito imutável.

Hegel, dois milênios depois, aportará com elementos novos para esse debate.

Aproveitando o renascimento da dialética que se gestava na filosofia idealista alemã, dos quais Parmênides e Heráclito, por vias distintas, são os pais, mostrará como os próprios conceitos não são rígidos e imutáveis, como a própria lógica é histórica e tem um processo de desenvolvimento.

O limite central do grande filosofo alemão, nessa questão específica, é estabelecer uma identidade entre lógica e realidade, através de seu conceito de sujeito-objeto idêntico. Além de gnosiologicamente equivocada, pois há sempre uma distância entre o sujeito do conhecimento e a realidade conhecida, tal concepção leva a uma perspectiva conservadora sobre a realidade, ao “positivismo acrítico” de Hegel, criticado pelo jovem Marx.

Será o materialismo histórico/dialético que irá aportar com uma resolução efetiva desse que é um dos problemas filosóficos centrais. Aqui tentar-se-á esboçar, nos limites de um pequeníssimo artigo para jornal, como se responde essa questão dentro de um ponto de vista dialético e materialista.

Realidade em transformação e categorias do pensamento

Apesar de fazê-lo de forma unilateral, dogmática, metafísica, Parmênides reflete um problema real do conhecimento da realidade, pois como seria possível formular qualquer afirmação, qualquer conhecimento que correspondesse a realidade, se essa fosse um fluxo interminável, se a cada instante toda a realidade mudasse com a mesma dinamicidade? Toda afirmação sobre a realidade seria efetivamente vã, mera aparência, mera opinião, pois em nada poderia ser efetivamente provada, pois no momento seguinte tudo estaria mudado e as bases mesmas para a afirmação anterior deixariam de existir.

Seria, portanto, impossível estabelecer regras, leis, uma lógica mesmo, para o pensamento que busca refletir a realidade, pois não existiria qualquer regularidade na natureza ou na história que permitisse a formulação de tais regras.

Dessa contradição tiraram-se, em geral duas conclusões: 1) não existe lógica, ou regras de pensamento que possam refletir, mesmo de forma aproximada, a realidade, como no irracionalismo alemão moderno; 2) a realidade concreta é mera aparência, a verdade é a lógica, o conceito, com sua rigidez, como nas diferentes escolas idealistas.

O materialismo histórico/dialético supera essa contradição, pois mostra que a possibilidade de o pensamento apreender a realidade em constante transformação se dá porque essa transformação da realidade não é unívoca, igual em todas as suas partes, mas dinâmica e desigual. Nem todos os momentos que compõe a realidade concreta se movem com a mesma dinamicidade, com a mesma rapidez, digamos. Buscarei simplificar:

“O concreto é concreto, pois é síntese de múltiplas determinações, unidade do múltiplo”

Com essa afirmação genial Marx dá as bases para resolvermos o problema.
Enquanto em Heráclito, e mesmo até certo ponto em Hegel, o movimento da realidade parecia se dar como uma unidade, a partir dessa concepção de Marx podemos compreender que o movimento da realidade não se dá de forma unitária, mas de forma desigual e combinada, que toda realidade concreta é formada por diferentes complexos, diferentes “fragmentos”, que não se movem com a mesma dinamicidade (ou velocidade, poderíamos dizer).

Para dar um pequeno exemplo imagético do que quero dizer com a diferente dinamicidade de transformação de uma realidade concreta: - O corpo de um indivíduo é uma realidade concreta, que tem sua unidade e diferença com as demais realidades. O corpo está em constante transformação, mas isso não quer dizer que essa transformação tenha a mesma dinamicidade em todas as suas partes. Enquanto, por exemplo, as células da pele se renovam a cada dia (os meus parcos conhecimentos em biologia levam a que isso seja um exemplo bem abstrato, mas que penso servem ao propósito), as células de outros órgãos se renovam em um tempo muito maior, as células dos ossos um tempo maior ainda, etc.

Assim, do fato de a realidade estar em constante transformação não decorre que nada nela se mantém, que sua fluidez não permite uma apreensão racional sobre essa realidade. Nessas múltiplas transformações, em geral, existe uma estrutura, os ossos em nosso exemplo, que é mais constante e uma superestrutura, a pele em nosso exemplo, que é mais dinâmica.

É essa relativa continuidade, esse relativo manter-se, mesmo na constante transformação, que permite que o pensamento possa conhecer a realidade mesmo em seu constante devir.

Quantidade e qualidade

A essência de uma determinada realidade, tanto natural quanto histórica e social, é aquilo que se mantem na constante transformação; mas mesmo esse fator essencial está se transformando a cada momento.

Enquanto essas transformações se dão sem que esse elemento concreto deixe de ser o que é e passe a ser outro falamos de transformações quantitativas, ou seja, transformações que não mudam a essência mesma daquela realidade. Essas transformações quantitativas, no entanto, se acumulam, até chegarem a um patamar em que não podem existir em sua configuração anterior; aí há um momento de ruptura, de quebra, em que aquilo que até ali se mantinha igual se transforma em algo distinto, em uma coisa nova. Falamos nesse momento em transformações qualitativas.

As transformações qualitativas são sempre quebras, rupturas, abruptas com o momento anterior. Se dão tanto na natureza (a lagarta em seu casulo que em dado momento vira borboleta, a fervura da água que em dado momento começa a evaporar), quanto na história.

Nessa segunda as coisas se tornam mais complexas. Quando uma transformação meramente quantitativa chega a seu ponto culminante e se torna qualitativa, quando um ente social deixa de ser o que é para se tornar outro?

Na sociedade de classes essa transformação se completa quando determinada formação social (estado, os partidos políticos, etc) deixa de se basear na classe anterior para se basear em uma nova classe.

A dificuldade aqui se dá porque essa transformação, esse assumir um novo papel de classe, nunca é tão claro, mas se dá por mediação de um programa e uma estratégia diferentes. Exemplo: a social-democracia alemã, em sua passagem para ser instrumento de outra classe (algo que se dá como ruptura na votação dos créditos de guerra em 1914) não deixa de ser um partido baseado na classe operária, mas por seu programa e estratégia passa a ser um partido burguês, que cumpre uma função central na manutenção da sociedade capitalista.

Essa passagem para outra classe de uma formação social (um partido, por exemplo) pode se dar de forma muito menos clara do que se deu com a social-democracia clássica. Cabe aqueles que atuam praticamente saber compreender essa passagem.

Mas isso seria tarefa de outro artigo.

(Foto: Escher, M. C. Drawing Hands, 1948)




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