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Democracia, regime do povo ou herança da ditadura?

Observando os acontecimentos recentes em Mianmar pode parecer assustador que em pleno século XXI existam regimes autoritários e opressores. É preciso refletir sobre o regime chamado democracia e quanto de liberdade ele contém.

Zuca FalcãoProfessora da rede pública de MG

quinta-feira 1º de abril de 2021 | Edição do dia

Exército de Mianmar. Reprodução/Twitter

Assistimos recentemente o golpe de Estado em Mianmar, país do sudeste asiático conhecido por ser um dos regimes mais fechados do mundo. Na verdade este golpe nada mais foi do que a oficialização do controle das Forças Armadas que há décadas controlam o país, mas que na última década recebeu uma fina camada de verniz democrático através da eleição da LDN (Liga Nacional Democrática), partido de oposição aos militares.

Embora tenha sido eleita democraticamente por maioria expressiva dos votos, Aung San Suu Kyi da LDN, conhecida internacionalmente pelo prêmio Nobel da Paz em 1991 e por uma luta pacifista pela democracia, não pode assumir o poder nas duas últimas eleições. Na última eleição, de novembro de 2020, foi acusada de fraude eleitoral e perseguida, o que foi o início do golpe de Estado de fevereiro desse ano.

Apesar das eleições abertas em Mianmar na última década, onde os cidadãos puderam exercer seu direito de voto, a escolha democrática da população não se tornou uma realidade. Em favor das Forças Armadas do país jogam leis que permitem controlar toda a situação de maneira implícita, como por exemplo, a lei que garante 25% das cadeiras do Parlamento aos militares e que lhes permite vetar reformas constitucionais, elementar para a sobrevivência do regime, ou mesmo a escandalosa lei, feita sob medida para Suu Kyi, que proíbe que uma pessoa que tenha filhos com estrangeiros assuma a presidência ainda que eleita democraticamente. Suu kyi, principal figura de oposição aos militares desde o fim da década de 1980, teve dois filhos com um inglês com quem foi casada na Inglaterra.

Os leitores podem se perguntar como é possível que leis como estas de Mianmar existam e ainda sejam executadas? Mas os ditadores tem suas cartas na manga, e veremos adiante que Mianmar não é uma exceção.

O país asiático teve sua independência enquanto colônia da Inglaterra em 1948 quando foi proclamada a União da Birmânia, primeiro nome do país. Apenas 14 anos depois em 1962, o país sofria seu primeiro golpe militar. Mianmar seguiu sob rígido controle, até o ano de 1988, quando uma crise econômica aliada a anos de repressão deu origem a uma revolta contra o governo militar, foi quando surgiu a LDN, fundada por Suu Kyi que recém chegava da Inglaterra.

A revolta foi duramente reprimida deixando mais de 3 mil mortos. No ano seguinte Suu kyi foi submetida a prisão domiciliar, onde permaneceria por 15 anos. O regime militar teve sua estabilidade abalada a partir daí com diversos episódios de luta por democracia, mas os militares conseguiram seguir tomando as decisões no país.

E seguiram porque a nova constituição de 2008 contém leis que permitem que os militares mantenham o controle mesmo sob uma “democracia”, e só cederam a uma abertura democrática, ainda que falsa, com intenção de atrair investimento estrangeiro. A LDN ao invés de organizar a revolta dos trabalhadores contra os militares pra tirá-los do poder e elaborar uma nova constituição com leis estabelecidas pela população, aceitou as condições impostas mirando na possibilidade das eleições. A carta na manga dos ditadores é chamada de transição pactuada.

As ditaduras não podem ser derrotadas no diálogo, e não há acordo com ditadores que não seja para beneficiar ao seu regime e a quem depende dele – a burguesia. Permitem novas constituições que nas entrelinhas guardam cláusulas específicas difíceis de se perceber. Para isso contam com partidos de esquerda reformistas que mediam esse pacto, ajudando a encobrir as letras miúdas sob um emocionante discurso de vitória do bem sobre o mal e sempre de olho nas eleições, única visão possível no horizonte de quem parte desta estratégia.

Não precisamos ir para outro continente para encontrar exemplos de regimes que são considerados democráticos mas que guardam em seu DNA a herança da ditadura. No Chile, as leis herdadas do regime de Pinochet impõem a miséria e a pobreza aos trabalhadores e estudantes do país, negando o acesso a saúde, educação, a um salário e aposentadoria dignos que ainda hoje é fruto da pulverização da organização sindical. Nesse caso a transição pactuada foi mediada pela Unidade Popular (UP) uma coalizão entre o Partido Socialista de Allende e o Partido Comunista, que canalizou eleitoralmente a raiva dos trabalhadores que questionavam o regime.

Entre os muitos outros exemplos que poderiam ser mencionados, está a Constituição Brasileira de 1988, que deixou como legado para o presente a retirada da autonomia dos sindicatos, leis trabalhistas que favorecem os patrões e as demissões, a Lei de Segurança Nacional – promulgada nos anos finais da ditadura e incorporada sem mudanças à constituição de 1988, passando ilesa pelos 13 anos de governo do PT – que permite perseguições arbitrárias e que vem sendo utilizada no governo Bolsonaro, e de bônus, um artigo que permite que os militares voltem a intervir “em caso de necessidade”. A quinta roda dessa transição pactuada foram as atuações do Partido Comunista, que sendo a principal direção operária na época de 60 não organizou nenhuma resistência ao golpe, e o PT, que na década de 80 traiu as greves operárias que tiveram início em Contagem e no ABC, impedindo que os trabalhadores derrotassem de vez os militares, e em lugar disso apresentando essa constituição que mantém o DNA autoritário da ditadura firmada através de um pacto com a burguesia e os ditadores.

A herança em comum das ditaduras é a legalização dos ataques aos trabalhadores e a instituição de forças de segurança (exércitos e polícias) com carta branca pra usar a repressão na medida em que for necessário para desmontar a revolta popular e a luta dos trabalhadores. Também há em comum os interesses imperialistas e das grandes corporações capitalistas, que financiam golpes em defesa de seus interesses.

Esta é a constituição da democracia burguesa, uma democracia que faz parecer que somos sujeitos de nossas escolhas, mas que de fundo é controlada pela burguesia através das mãos de ferro militares, com a conivência de partidos reformistas de estratégia estritamente eleitoral. Em contraposição, uma democracia real só será possível a partir do momento em que as decisões sejam tomadas entre os próprios trabalhadores, com base nos interesses da sua classe e por meio de seus organismos. Enquanto isso, teremos um regime do povo restrito à etimologia da palavra democracia.




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