×

FUTEBOL | Democracia Corinthiana: quando o futebol desafiou a ditadura II

Sócrates (o jogador) que era um médico recém-formado residente que colocou sua paixão por jogar futebol acima da carreira médica, ansioso por debate, (já era complicado falar de política no âmbito cotidiano, imagine-se em um vestiário) começa a discutir com o sociólogo Adílson Monteiro, e essa reunião que normalmente durava 15 minutos durou mais de três horas, marcando o começo de algo novo.

quarta-feira 6 de julho de 2016 | Edição do dia

Veja também: Democracia Corinthiana, primeira parte.

Às próximas reuniões se somaram Wladimir Rodrigues dos Santos e um adolescente chamado Walter Casagrande. Wladimir é o primeiro jogador na história do Brasil que se considera um “operário do futebol”; vinha da militância sindical e participou ativamente das greves do ABC (região industrial formada por sete municípios em São Paulo). Por ser negro sofria na própria carne a opressão dos brancos; identificava-se com “Zumbi dos Palmares” um líder guerreiro do “Quilombo dos Palmares”, território no Nordeste do Brasil caracterizado por ser uma zona livre de escravidão entre 1580 e 1710, organizado por escravos negros fugitivos e seus descendentes. O adolescente Walter Casagrande, de apenas 19 anos de idade, vinha da contracultura brasileira, da turma do rock / da vertente do rock onde um par de guitarras distorcidas, uma bateria veloz e um baixo que somente marca as tônicas dos acordes podem fazer questionar todo um sistema de opressão. Era a dose de rebeldia que se necessitava.

Chegou-se à conclusão de que como o clube estava em condições deploráveis havia que se provar algo diferente, e esse “algo diferente” era a democracia direta de todos os que participavam do processo do futebol no clube. A participação não foi somente dos jogadores, corpo técnico e a comissão diretiva; convocou-se a todos os que participavam e trabalhavam no futebol: roupeiros, os motoristas dos ônibus, pessoal da manutenção, massagistas, cortadores de grama … convocou-se absolutamente a todos, já que a engrenagem do futebol não se opera apenas com jogadores e comissão técnica. Toda opinião era válida e respeitada, e cada pessoa valia um voto. Com o desenrolar das reuniões se começa a discutir todo tipo de coisas: desde as contratações de novos jogadores, os salários, o uso do dinheiro das bilheterias, direitos de TV, as férias, quando concentravam, que dia viajar aos jogos e discutiam até que tática usar nas partidas.

Tudo se submetia a uma assembleia e era aprovado desta forma; fazer as coisas assim garantia um maior engajamento de todas as pessoas vinculadas ao clube, era um trabalho de todos. Também foi uma forma de repensar a hierarquia militar onde tudo era de cima para baixo e não se podia questionar absolutamente nada.

Nasce assim a Democracia Corinthiana. Desde meados dos anos 70 as mobilizações anti-golpistas eram parte da vida cotidiana brasileira; a democracia corinthiana foi parte desse processo de pedido de democracia que soube chegar no povo.

O Corinthians era um dos poucos clubes que não tinha patrocinador na sua camisa, assim que o diretor de marketing Washington Olivetto, ávido e rápido de ideias, decide pôr nas costas a frase “Democracia Corinthiana”. Se analisarmos a estampa podemos ver a palavra “Democracia” em uma cor escura e sóbria, a palavra “Corinthiana” copiando a simbologia da empresa Coca Cola -uma das companhias imperialistas por excelência- e ao redor destas palavras vemos manchas vermelhas que tranquilamente poderiam aludir ao sangue derramado daqueles que durante anos lutaram por essa democracia que os jogadores estão exercendo de maneira direta.

Esta mudança na forma de encarar as relações de trabalho dentro do time tiveram
consequências imediatas no plano futebolístico: os bons resultados começaram a vir e as arquibancadas do estádio voltaram a lotar de torcedores novamente.

A equipe chegou a semifinal do campeonato local em 1982 e no mesmo ano se consagrou como a melhor do campeonato paulista -considerado de igual importância que o campeonato nacional- implantando um futebol dos mais belos e emocionantes de ver. A cada gol que marcava Sócrates sua comemoração era ficar parado e levantar seu punho esquerdo fechado saudando os torcedores, seus camaradas, com essa saudação que fazemos os de esquerda quando reconhecemos um companheiro ou quando algo nos enche de orgulho, eis a saudação da classe operária internacional.

Fora dos estádios as mobilizações de massas começaram a ocupar mais frequentemente as ruas do Brasil questionando o governo de fato; as repressões por parte dos militares e da polícia passaram a ser mais violentas.

Jogadores como Sócrates, Wladimir e Casagrande entenderam que as conquistas dentro do clube ainda eram pequenas e passaram a se meter em cheio na política do país. Alteraram o logo da Democracia Corinthiana nas costas e colocaram um novo: “ Dia 15 vote” em alusão às eleições de novembro que seriam as primeiras diretas para governador acreditando de que quanto mais pessoas fossem às urnas, mais votos iriam para a oposição ao governo de fato. Alguns analistas entendem que esta simples insígnia na camiseta do maior clube São Paulo e um dos maiores do Brasil produziu uma “desalienação” dos torcedores que somente iam ver bom futebol, colocando em xeque a frase de Marx que alguns usavam a respeito do futebol, aquela de que era “o ópio do povo”.

Esta frase chegou à comissão de censura do governo militar, os censores tiveram que dizer “não misturem futebol com política, porque senão terão grandes problemas”. A titular da censura federal Solange Maria Teixeira Hernández proibiu assim o uso desta camisa.

Tradução: Rodrigo Stradiotto




Comentários

Deixar Comentário


Destacados del día

Últimas noticias